quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Discernimento

                Discernimento, palavra relativamente longa e igualmente pouco usual no dia a dia, porém extremamente importante para a vida. O ato de discernir, talvez, venha a ser a prova irrefutável de autoconhecimento, de tranquilidade, de se saber como indivíduo. Sim, passamos boa parte da vida - na verdade, toda a vida – procurando saber quem somos e o que realmente desejamos. Existem aqueles que não trocam por nada no mundo uma boa e velha comidinha caseira, um arroz e um feijão recém feitos são mais do que o suficiente para compor um delicioso buffet. Entretanto há aqueles que optam por pratos mais elaborados, aguardam horas ansiosamente por uma boa e recheada lasanha. Não há um certo ou errado, apenas escolhas. Logo, discernimento para realizá-las passa a ser subsídio básico para uma vida.
                O todo do mundo, em sua grande maioria, trata-se de uma questão de escolha. Apesar de parecer algo fácil, escolher exige uma gama imensa de atribuições e qualidades. Aquele que escolhe, primeiramente, precisa saber o que realmente deseja. Para saber o que realmente deseja, é preciso, antes de mais nada, autoconhecimento. Autoconhecimento é possuir claro em sua mente o que considera como prioridades para si mesmo. Nunca esquecendo de que algumas escolhas, por questões óbvias de bom convívio social, não devem entrar em pauta, como matar ou não alguém, incluindo o colega de serviço ou de aula que acidentalmente deletou todo um arquivo com um trabalho fruto de meses de esforço.
                Em inúmeros momentos, acreditamos que a resposta aos nossos problemas está na casa ao lado, no que o outro fez quando estava diante da mesma situação, no que os outros pensam que deveria ser feito nessa mesma situação ou, simplesmente, no que suspeitamos que a sociedade faria em nosso lugar. O que relutamos para entender e aceitar é que a resposta correta está dentro de nós, assistindo a nossas decisões todos os dias, vivendo nossas escolhas; esquecemos de que somos senhores de nós mesmos, arcamos com todas as consequências de nossos atos, vivemos com nossas escolhas, isolados e sozinhos. Talvez o segredo de tudo seja realmente o discernimento de compreender o que nos faz bem, o que permite que possamos seguir, nem certo nem errado, apenas o que julgamos correto para nós, não para o mundo; uma vida, uma cabeça.
                Discernir não tem idade para começar, não possui proibição, exige apenas disposição para se desnudar diante do espelho, retirar as camadas e camadas de aparências, de máscaras, de atuações, de receios, de adequações; exige sinceridade consigo mesmo. No final, sempre existirá uma predileção, um preferir, um considerar melhor; arroz com feijão ou lasanha são apenas opções, nem melhores e nem piores. Se conseguir enxergar a você mesmo, as escolhas não serão mais difíceis, as encruzilhadas deixam de ser duvidosas, tudo passa a ser um longo e plano caminho de tijolos amarelos.

                Caso alcance esse caminho, faça um favor, volte e me conte como.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Histórias curtas 9

Momento



Foi com relutância que postou-se ali, à frente do que a assustava, uma gladiadora aguardando a iminente batalha. Por dias negou-se a encarar o fato, a decisão tomada, pois desfrutava da dor do deslizar lento e suave daquelas palavras frias em seu peito, postergando o golpe derradeiro, o movimento misericordioso. Já estava a amar a dor da dúvida, pois era o único vínculo que a mantinha ligada a ele. Amava-a odiando, lamentava a vida que não possuía. Porém, naquele momento, tudo isso era passado, descortinara a verdade, entendera que de respostas não respondidas, projetos não terminados e desilusões formalizadas, estruturava-se isso a que chamava de vida. Frequentemente eram as perdas e decepções que forneciam e colocavam os tijolos mais sólidos, com os quais ela elaborava as construções mais requintadas. Sabia que desse tijolo não esqueceria e o colocaria em um ponto especial de sua estrutura. Abriu o bilhete, não se deu ao trabalho de lê-lo por inteiro, limitou-se ao “desculpe, mas não posso mais...”. Fechou-o para sempre, depositou sem raiva, sem emoção, na lixeira ao lado. Edificou-se, tornou-se mais, o milagre da vida acontecendo. Foi viver, mais experiente, mais forte, mais viva.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Quero jogos olímpicos para sempre

            Eu quero jogos olímpicos para sempre! Não, não sou um aficionado inveterado em relação a alguns esportes olímpicos, não trocaria, por exemplo, uma tarde de sol, deitado em meu sofá e assistindo a um bom filme – sim, adoro ficar em casa, mesmo em dia de sol – por uma tarde acompanhando as disputas finais do Badminton. Eu quero os jogos para sempre pelo que proporcionam e representam.
            Os jogos do Rio de Janeiro desnudaram uma faceta até então desconhecida do povo brasileiro: pessoas organizadas e seguidoras de normas, educadas e respeitosas. Demonstramos ao mundo que, sim, somos uma nação igual às demais e muito próxima das maiores nações mundiais. O país não apenas provou ser capaz de organizar, mostrou também ser um exemplo de retidão. Quando assaltos ocorreram, quem assaltava, realmente, eram os supostos vitimados, vitimados pela estereotipação do Brasil no exterior e pela habitual condescendência com a qual lidamos com nossos problemas. Pobres nadadores americanos, não sabiam que não lidavam com o Brasil de todo dia, desconheciam estar diante do País Olímpico.
            No País Olímpico não existia sofrimento, o povo caminhava tranquilo pela segunda maior metrópole brasileira, próximo à meia-noite, sem receios de ser abordado por um grupo armado ou surpreender-se com um arrastão repentino. Nesse cenário, poucos buzinavam para o carro vacilante no trânsito, pois poderia estar perdido; o Rio de Janeiro finalmente estava lindo. Mas as mudanças não terminaram por aí, o lado humano floresceu ostentosamente por todos os lados durante as competições. Esse lado brasileiro já foi demonstrado durante a Copa do Mundo, quando, mesmo tendo perdido por 7 a 1, um Mineirão abarrotado aplaudiu de pé aos vencedores Alemães. Contudo, nos jogos olímpicos, ele parecia estar à flor da pele. As cenas de atletas competindo à exaustão para, às vezes, simplesmente conseguirem completar uma prova e, mesmo assim, receberem todos o reconhecimento do público são mágicas; ainda mais se lembrarmos de que estamos falando do mesmo espectador que não aceita que seu time de futebol fique com o vice-campeonato. Definitivamente, tornamo-nos mais humanos.  

            No País Olímpico, a cor pouco importava, a nacionalidade não interferia, os posicionamentos políticos eram irrelevantes, gênero não fazia diferença. Eram todos atletas; todos jornalistas; todos voluntários; todos espectadores; todos pessoas, todos humanos! Isso tudo no Brasil olímpico. Por sua vez, no Brasil de todo dia, negros são vítimas de preconceito na internet, haitianos são imigrante ilegais e tiram empregos de brasileiros, mulheres recebem menos do que homens e são vítimas constantes de violência...definitivamente, quero jogos olímpicos para sempre! 

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Histórias curtas 8

O casaco
Recebeu o primeiro ordenado, referente ao primeiro mês trabalhado, o valor correspondente ao período de 9 horas diárias de sua vida durante o intervalo de 30 dias. Passou em frente a uma loja chique, dessas que só se entra com sobrenome, olhou na vitrine, viu um casaco bonito, sabia o que fazer: entrou na loja, pediu o casaco à atendente, ela o trouxe e perguntou se ele gostaria de prová-lo. Ele disse que não, não precisava, já o tinha experimentado e vestido de todas as formas possíveis ao longo dos últimos anos. Saiu dali satisfeito, agora era gente, com nome e casaco, não precisava de sobrenome. Ao chegar em casa, investigou os bolsos, descobriu o vazio, o que restara de seu salário. Não comeria aquela noite e nas próximas também. Sentado à mesa vazia, tendo como companhia o casaco cuidadosamente repousado na cadeira à esquerda, concluiu:
- Ser gente custa muito!
Jeferson Luis de Carvalho

domingo, 14 de agosto de 2016

Histórias curtas 7

Partida

- Posso ir junto? – perguntou o filho na esperança do sim.
            Sem resposta alguma, foi sozinho ao portão aguardar, os olhos na rua, focados na sua alma que já o aguardava lá fora. Após alguns minutos, ouviu a porta bater, o pai iria sair, não olhou, como se isso evitasse o não. Sentiu uma mão em seu ombro, o homem queria passar, relutante liberou o caminho com a tristeza no coração. Sisudo, o homem venceu o último obstáculo e chegou à calçada. De repente, deteve-se a dois passos do portão que ainda possuía como companhia o menino, olhou para trás:
- Não vai vir?

            O filho sorriu, correu em direção ao pai, o coração aos saltos, teve certeza de que era o menino mais feliz do mundo! 

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Histórias curtas 6


Caroneiro

               Ela bebia o amor em doses homeopáticas, três vezes por semana. Distanciara-se das formalidades e receitas prontas, abandonara a cartilha de como amar na sua última experiência formal quando teve as regras burladas e desvirtuadas pelo outro participante do “acordo”. Sentia-se livre, aprendera a concentrar suas necessidades básicas para felicidade em aspectos seus, levava-se a si para jantar em restaurantes quando se sentia entediada, organizava sessões de séries regadas a generosas doses de pipocas, pedaços de chocolate e outras guloseimas. Segura de si, desfilava pela vida sem beiras ou curvas, não precisava delas, andava ao seu bel prazer, linha reta e objetiva, sem desvios, colocara como meta não ter parâmetros, não olhava para o lado, não se preocupava com outros, seguia sozinha à sua velocidade, ao seu ritmo. Certo dia, chocou-se com outro assim, identificou-se, gostou, ofereceu um assento dinâmico para a viagem - um dia na carona, outro dia no volante; ele não quis, ela partiu, quem dirige uma vez sua própria vida, não aceita sentar mais no caroneiro.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Histórias curtas 5

Destruidor de Mundos

- Não! É a última vez que aviso.
                Sentou com a cara amarrada na beirada da pequena calçada que cercava a casa. Por que não podia mexer na máquina de cortar grama? Já havia bolado toda a história, todo o enredo, a Floresta Negra, uma pequena porção de ervas que haviam crescido mais do que devia, seria devastada pela máquina trituradora do Alto Império, sob tutela do Comandante-Mor General do Escuro. O pai era um destruidor de mundos, será que ele tinha ideia do que desfazia? Chutou uma pedra com raiva, durante sua trajetória, a pedra tornou-se um bólido recém-lançado de uma catapulta, passou rasante uma aeronave com receptores em forma de antena camuflada em uma profusão de cores, e chocou-se contra a cerca que protegia o castelo inimigo, repleto das mais horrendas criaturas, que se alvoroçaram com seu impacto, prontas para o eminente embate. O Cavalheiro Solitário montou seu feroz alazão, vestiu sua máscara de combate, e foi em direção à guerra.
- Pela última vez, Carlinhos. Solta o Leão, tira esse pano de prato do rosto e sai de perto da gaiola dos pássaros!
                Era um triste dia para o Cavalheiro Solitário e o General do Escuro. Ele foi para dentro de casa, mas, de repente, viu-se em uma caverna cercada de inimigos, precisava atacar imediatamente.
- Carlinhos, o sofá! – gritou, estranhamente, uma nativa do local...      

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Formigas e homens

            Navegar no Facebook virou quase um hábito inconsciente e involuntário na sociedade atual. É recorrente que, ao menos uns cinco minutos por dia, percorra-se a timeline desse aplicativo, visitando a vida pública, nem sempre real, de inúmeras pessoas. Não fugindo a regra, também estava “vasculhando” esse universo de postagens e dizeres quando me deparei com um pequeno vídeo sobre uma personagem que não queria ser uma formiga, no qual duas pessoas discutem como nosso dia a dia impulsiona-nos a ignorarmos detalhes, mantermos padrões e vivermos em um eterno piloto automático, sem encontrarmos o botão para desligá-lo.
            É fato, cada vez mais, lutamos constantemente pela tão sonhada liberdade. Exaltamos o fim de semana perfeito em meio à natureza, a tarde sentada ao sol sem influência nefasta de Cronos. Tomaz Antônio Gonzaga, em seu célebre Marília de Dirceu, versou: “Num sítio ameno,/Cheio de rosas,/De brancos lírios,/Murtas viçosas,/Dos seus amores/Na companhia,/Dirceu passava/Alegre o dia.”, é essa a satisfação que todos buscam.
            Abraçamos um ritmo alucinante em nossas vidas cotidianas, e muitas vezes lamentamos isso, porém usufruímos de suas consequências, quanto mais incessante a rotina, maiores as possibilidades de se possuir um bom carro, uma boa casa, uma “boa vida”. Perambulamos entre dois opostos, o desejo bucólico e anseio urbano e tecnológico.
            O problema é que, durante esses afazeres intermináveis, vamos esquecendo os detalhes, viciando nossas vistas, negligenciando o micro em prol do macro, aprendendo, assim, a sermos efetivos e objetivos. Nesse processo, pessoas passam a ser números quantificados e pesados conforme a proximidade, nomes são substituídos por profissões e as amizades são controladas por contagens de redes sociais; tudo muito justificável pela comodidade, uma vez que abraçar leva muito tempo e sentar para uma conversa é um luxo impensável na correria atual.

            O que todos esquecem é que somos apenas o resultado de uma negociação há muito já feita por nossos antepassados, pela sociedade do ontem. Nossas vidas, como idealizamos, foram vendidas por quantias que vão atualizando-se ou sofrendo acréscimos generosos com o passar dos anos, mas em momento algum a negociação pode ser desfeita, o contrato já foi firmado, registrado e reconhecido. Talvez, o que se possa fazer, é transformar a rotina em que vivemos em algo a mais do que um meio para algo, transformá-la no próprio algo, transformá-la essencialmente na vida, sem a necessidade de aguardar um momento bucólico que pode nunca chegar. Thoreau disse em seus versos que foi à Floresta porque queria viver, mas o que precisamos entender é que, talvez, não exista mais Floresta aonde ir, e precisamos aprender a viver exatamente no ponto onde estamos. Achar tempo para um abraço e uma conversa em meio ao sem fim de obrigações que possuímos é primordial. Sermos formigas, presos a funções e vidas extremamente controladas, não necessariamente significa não sermos humanos.

Caminhões invisíveis

            A semana que passou foi marcada pelo lamentável atentado terrorista que vitimou quase uma centena de pessoas em uma comemoração na França. Imediatamente, a notícia e o vídeo sobre o caminhão percorrendo 2 quilômetros desenfreadamente correram o mundo. Portais de notícias bombardeavam atualizações, emissoras chamavam seus correspondentes. Uma comoção, plenamente justificada, diga-se de passagem, frente à atrocidade cometida, mas quantos caminhões passam por aí e ignoramos?
            Um caminhão desenfreado, atropelando inúmeras pessoas, transita todos os dias nas fronteiras europeias quando pessoas são impedidas de ingressarem em um país sob pretexto de que ferirão a economia local, morrendo em cercas e mares. Ou seja, nesses casos, entre uma vida humana e a possibilidade de comer um McDonalds no sábado à tarde, esse último prevalece.
            Um caminhão sem freio desce, guiado por uma cultura machista, atropelando mulheres de todas as idades dia após dia, deixando órfãs de mães inúmeras crianças, assim como órfãs de felicidade milhares de mulheres vítimas de abusos. Apenas sendo interpelado, quando um vídeo e outro vazam via internet.
            Um caminhão desgovernado continua arrastando milhões de africanos em situações desesperadoras, mas é ignorado porque “eles que não se desenvolveram”. Esse mesmo caminhão percorre as ruas do nosso país até os bairros da periferia, colocando entre a pobreza e a miséria milhões de brasileiros.
            Contudo, o caminhão mais perigoso, o mais cruel de todos, é conduzido pela indiferença e pelo conformismo, e ele vai abrindo caminho para os demais caminhões, que passam escoltados por esse veículo feroz, que segue de forma firme e ininterrupta seu caminho. É esse o caminhão que deveríamos combater. Não a mídia, não os governos, mas, sim, nós, no dia a dia, nas horas cotidianas, pois, se o conformismo e a indiferença são os motoristas, somos nós com os pés no acelerador.




quarta-feira, 13 de julho de 2016

Desbravador

            Invadiu um mundo desconhecido, pronto e estruturado. Era desbravador, mas procurava manter um determinado grau de comprometido com o que desbravava. Deparou-se com espécies novas e faunas belíssimas e raras, no princípio, sentiu estranhamento e excitação, estava de passagem, desejava aquelas novidades, o verde exuberante, os sons da natureza; em sua cabeça uma obsessão fixa, desfrutaria o máximo que a breve estadia ali proporcionaria. E assim seguiu sua rotina, visitando e revisitando os mais exóticos locais, um eterno desbravador, tudo como deveria ser por vários dias, até encontrar uma fogueira no coração daquele éden. A princípio, pouca importância deu, na verdade, não era uma fogueira, e sim um vestígio do que um dia fora uma, entretanto, a partir daquele momento, em todo o lugar que chegava, perguntava-se “será que ele esteve aqui antes?”. Pensava naquele que, em algum momento do tempo, sentara ali, próximo da fogueira, como um invasor, um aventureiro aproveitador, um oportunista barato. Passou a enlouquecer, visitava e analisava aqueles troncos queimados e já curados pelo tempo constantemente; como um arqueólogo, tentava refazer os passos do antigo dono, “por que conseguira acender sua fogueira tão dentro da floresta? Se fizera isso, com certeza o fez com a permissão da minha ilha”, sim, não via mais aquele local como passageiro, mas como seu porto seguro, seu santuário, e agora sangrava por saber que alguém ali esteve, que ali acendeu uma fogueira, era uma hemorragia de sentimento, que não possuía ponto de referência, jorrava de algum lugar para todos os lugares do seu corpo. Sofria, pois no íntimo pensava: que, por ínfimo que tenha sido, esse usurpador fora acolhido fraternamente e de bom grado pelos galhos e árvores vistosos e lindos de seu atual reduto de paz. Verificava planta por planta, trilha por trilha, litoral por litoral, procurando memórias e lembranças que pudessem denunciar ou elucidar a relação daquele ser infeliz com a sua terra prometida.
            Esqueceu o mundo de fora, seu mundo era aquele agora, e havia sido maculado por um viajante aventureiro, um passante que provavelmente estivesse por aí, visitando a outros lugares, acendendo outras fogueiras. Por dias, em completo desespero, entregava-se ao mar, sempre sem fazer forças para viver, ansiava ser âncora, e, talvez, no fundo das águas, na escuridão do esquecimento, sombria o bastante para desvanecer a imagem daquela fogueira, repousar para sempre; porém, como uma infeliz brincadeira, sempre que tão logo seus pés tocavam a areia e seu mundo tornava-se água, uma onda o resgatava, cruel e impiedosa, atirando-o de volta à sua paixão. Exausto, com a água ocupando seus pulmões, a areia invadindo seu rosto, pensava se o estranho, em algum momento, estivera assim, aos farrapos, jogado à lona, a mercê daquela paixão. Quase o podia ver ao seu lado, esbelto e orgulhoso, desfrutando das maravilhas, olhando para ele ali ao chão, sorrindo despreocupadamente, sem sentir ao menos um mínimo de consideração, apenas mais uma floresta desbravada, uma de tantas outras.
            Com o passar do tempo, não conseguia mais percorrer a floresta sem achar que o caminho já não havia sido utilizado antes. E assim o sol não mais apareceu ali, a floresta-ilha, sentindo o que se passava com seu amante, passou a chorar todos os dias, transbordavam os rios, árvores eram derrubadas, tremores irrompiam. A floresta igualmente passou a sangrar, a detestar o aventureiro que fizera a fogueira que decretara a crise, não podia desfazer a acolhida que lhe dera tempos atrás, muito antes do desbravador chegar, - o tempo anda a frente, em fluxo constante, não para, não hesita, não olha para os lados, não aprecia a paisagem, não permite retorno, e se um de seus tripulantes o tentar fazer, perde o instante, entra em dívida consigo mesmo, até mesmo uma floresta-ilha no meio do mar. Ela que passara por milhões de anos, assistira um incontável desenrolar de acontecimentos e situações, vivera a gênese de tudo, era forte, inflexível, julgava-se acima de vontades alheias, mas agora corroía-se assistindo seu amante, dia após dia, como um espectro que perdera o pouco espírito que tem, caminhando perdido, a esmo, em meio às chuvas e adversidades. Desejava ter o dom de falar, de declarar seu amor incondicional, dizer-lhe que por ela, separaria o mar, erguer-se-ia até o mais alto do céu, isolar-se-ia de tudo e de todos, apenas para ficar com ele, que o estranho da fogueira nunca mais pisara ou pisaria ali novamente. Não conseguiu. E em meio a um de seus rompantes de tristeza, a floresta explodiu, jorrou sangue em forma de lava quente, lava que desceu queimando e criando sulcos profundos em sua superfície, ela suportou a dor, era preciso, precisava colocar para fora o que lhe fulminava lentamente, porém o que não esperava aconteceu, em seu desespero, por um instante, irrelevante para alguém com vidas de existência como ela, esqueceu de seu amante absorto na praia, um braço violento de lava o colheu, queimando lhe a face e o corpo. Ele não gritou, apenas olhou para o coração da floresta com ternura mais uma vez, um olhar que a floresta reconheceu, que a acalmou, que a apaziguou, ao menos até ela acordar para o que tinha feito. O braço fervente o depositou no leito do mar, longe de fogueiras, de lembranças, longe de tudo, somente escuridão e rochas. Assim, o amante virou finalmente âncora, a lava o solidificara junto a uma massa de matéria vulcânica, aos pés da floresta-ilha.
            Daquele momento em diante, a floresta-ilha ficou sombria, e os viajantes que cruzavam seu caminho nunca mais se aventuraram a ali entrar. Suas copas escondiam apenas mágoas e saudades, e assim permaneceriam pela eternidade, não fosse uma sensação estranha, um aconchego caloroso, um fervilhar interno; estranha, a floresta procurou ao seu redor, rastreou aquela fonte de alegria, não encontrou. Porém a sensação apenas crescia, tornava-se inteira, invadia todo o seu ser, desesperada, ela tentava em vão achar o porquê daquele bem-estar, do sol momentâneo que surgia teimosamente no horizonte. Sentiu um aperto mais profundo do que jamais sentira, um abraço diretamente na alma, foi aí que olhou para si, e o que viu fez do sol seu melhor amigo, transformou a chuva em uma velha e esquecida lembrança, trouxe a vida de volta àquela existência abandonada. Da fusão entre o sangue quente e a gélida e calma água, a ilha ganhava corpo, o que não esperava era que ali, em um encontro de forças, estivesse também ele, e que, daquele instante em diante, ambos fossem únicos, que não existissem mais desbravador e ilha, homem e floresta, apenas ambos.


sexta-feira, 1 de julho de 2016

A arte de conviver

            Quando estava na antiga oitava série, hoje nono ano - amanhã sei lá qual nome receberá -, desafio mesmo era aprender matemática, decifrar aquele emaranhado de números e letras, em uma mesma equação, era algo inatingível. Tanto que, nos anos seguintes, em razão de proporcionalidade, minha ignorância frente à ciência dos números crescia à medida que as contas adquiriam novos elementos. Ao final do Ensino Médio, o tamanho da conta era correspondente à minha falta de conhecimento. Contudo, com o tempo, deparei-me com uma equação muito mais complicada de solucionar.
            Não vivemos sozinhos, absortos em nosso mundo. Por incrível que pareça, diante de nossas atitudes cotidianas, dividimos o planeta com outros animais e, principalmente, com outros de nossa espécie. Por vezes, esse dividir significa compartilhar de um mesmo espaço, viver, nem que seja por alguns minutos por dia, sob um mesmo teto, compartilhando um tempo de nossas vidas. E aí surgem os empecilhos.       
            Conviver significa “viver com”, e isso implica uma gama de exigências que tornam esse exercício um desafio à razão e uma verdadeira arte. Logo de cara, encaramos um problema relacionado a um fato um tanto óbvio, mas negligenciado por muitos: não somos iguais. Não adianta, alguns gostam de Hemingway e Dostoiévski, outros, de Paulo Coelho e Augusto Cury; alguns gostam de goiabada, outros, de queijo, e muitos apreciam ambos. A falta de uniformidade é o que faz da nossa espécie algo mágico e instigante, mas também acarreta em um exercício constante e cansativo de entendimento da pluralidade.
            Sangramos, no sentido conotativo do termo, a cada imagem desconstruída, a cada expectativa não correspondida. Elaboramos e construímos nosso mundo de possibilidades baseados em nosso pequeno universo, esquecendo as peças motoras dessa engrenagem existencial: as pessoas que compartilham de nossas vidas. Peças dotadas, igualmente, de seus próprios universos, de seus próprios desígnios e planos. Em um mundo composto por mais de 6 bilhões de diferentes mentes, estabelecer um prognóstico para ações coletivas é como montar um castelo de cartas em meio a um vendaval, o risco de frustração é muito grande.
            Quem sabe, em meio a esse turbilhão, a saída seja jogar cada carta de uma vez, elaborarmos castelos somente quando recebermos outras cartas, mas, acima de tudo, quando enxergarmos no outro o desejo de construir um castelo. Segurar esse ímpeto de projetar no outro as nossas expectativas é uma questão de sobrevivência, de necessidade e, além de tudo, de justiça com o próximo, pois, ao fazermos isso, desobrigamos o outro de corresponder a expectativas por nós elaboradas e idealizadas.

            Como fazer isso? Eis uma pergunta pertinente e difícil de ser respondida, uma vez que isso implica, antes de mais, autoconhecimento e coragem para descartar aquilo que não poderá desejar e alcançar. Para conviver, é preciso saber, em muitos momentos, abrir mão do orgulho, deixá-lo em estado de hibernação sem destruí-lo, entretanto sem mantê-lo com o controle das rédeas. Aqueles que souberem a resposta já estão alguns metros à frente nessa linha, aparentemente sem fim, chamada vida.  

domingo, 26 de junho de 2016

A mulher que não gravou comerciais

           Era inegável que uma das virtudes de Sidão eram os olhos, não que a compleição física não o desse uma vantagem a mais, afinal, possuía ombros mais largos que a grande maioria dos homens e conservava um físico que fazia jus a horas de academia, mas os olhos eram vibrantes e, conforme boa parte da população feminina, afrodisíacos. E foram eles que Cidinha viu pela primeira vez, foram eles que a fizeram abrir espaço para a investida daquele conquistador, que provou desejar algo mais sério, algo mais profundo do que uma noite, e assim iniciaram um lindo romance.
          Sidão revelou-se surpreendentemente carinhoso e romântico, despendendo esforços diários através de flores, declarações e mensagens telefônicas para demonstrar seu amor. E logo, Cidinha, apesar da insegurança devido ao passado e a beleza de Sidão, que inclusive realizava alguns trabalhos fotográficos informais, sentia-se bem e extremamente realizada. Cada vez mais doava-se para aquele homem, para aquele futuro companheiro. Ele a agradava em todos os aspectos possíveis e impossíveis, viviam uma eterna lua de mel, acordavam um ao outro com carícias e beijos matutinos, carregados da volúpia dos amores frescos e recém colhidos, e a todos aparentava que naquela horta os amores sempre estariam frescos e à disposição para a colheita. Contudo, como sempre pronunciam os incrédulos, tudo possui um final, a linha de chegada é o destino de toda partida, e uma quarta-feira apresentou aos enamorados o seu fim de jornada.
            Cidinha chegara do serviço como todos os dias, um pouco depois de Sidão, que já havia deixado um simples, porém romântico botão de rosa sobre a mesa. Estava sentado na cadeira da varanda, ela o olhou e, por um instante, pensou o quanto ele era belo, sua postura corporal era invejável, se quisesse ser feio não o poderia. Sem se anunciar, deixou-se cair sobre o colo dele, que a acomodou com carinho, dando-lhe um beijo profundo e cheio de amor no pescoço enquanto sussurrava qualquer coisa, ela suspirava profundamente, ele sabia como causar isso nela. Conversaram sobre o dia, sobre os problemas, nada demais, até que ele contou o convite que recebera, a existência de um pagamento, a sua curiosidade a respeito desse tipo de trabalho e a aceitação por parte dele.
            Dali em diante, os dias viraram tormentos para ela, sentia náuseas e suores frios, passou a viver como se uma entidade estranha estivesse compartilhando de seu corpo. Contudo, logo a tormenta virou tempestade digna de registros, furacão de categoria máxima: o trabalho feito por Sidão chegara. Um comercial de cueca, uma situação simples, ele saía do banho com a toalha até a cintura, retirava a toalha e surgia nu, ela teve que olhar novamente, ele estava nu. A câmera não mostrava seu sexo, mas dava uma generosa visão do físico que tanto o destacava. Ele caminhava até a gaveta do quarto, apanhava uma cueca, colocava-a, e então a câmera mantinha a atenção na roupa íntima preenchida pelo corpo do rapaz, que sorria ao mesmo tempo que uma bonita voz explanava o quão vantajoso era vestir aquele adereço.
            O coração de Cidinha disparou, olhou do vídeo para ele, e dele para o vídeo algumas incontáveis e repetitivas vezes. Perguntou-lhe quantas pessoas estavam na gravação, pois, embora a nudez não tivesse passado para a câmera, ficara evidente a todos que lá estavam. Sidão explicou que eram profissionais, mas o coração de Cidinha a lembrava de que o noivo não era - sim, já eram noivos – de que a equipe de filmagem era composta por conhecidos de ambos, de que, fatalmente, vez ou outra, encontravam-se todos em um dos tantos ambientes noturnos da cidade. Passou a sofrer.
            Foi com enorme esforço que, após um tempo, deixou de dormir, todas as noites que estava no quarto com Sidão, acompanhada da equipe de filmagem, das brincadeiras que deveriam ter feito no dia, dos pensamentos de cada membro daquela equipe. Parecia que conseguiria viver com tudo, aquilo passaria. Pobre Cidinha, não conseguira identificar os avisos de que haviam chegado à reta final. Em uma sexta-feira, alguns meses após a revelação, enquanto trocava de canal lentamente após um dia cansativo, incrédula, viu o noivo na tv, a nudez presumida, a exposição com a roupa íntima. Deixou o controle cair de suas mãos, berrou, gritou, desesperou-se, não dormiram juntos naquela e na noite seguinte. A cidade inteira agora via seu noivo em roupas íntimas, da mesma maneira que ela via ele no santuário de amor de ambos. Uma amiga tentou consolá-la, argumentar que as coisas não eram assim tão graves, mas Cidinha estava arrasada, o noivo de roupa íntima era um segredo dos dois, até compreendia aqueles atores e modelos, mas Sidão era representante comercial. Lembrou-se de uma amiga solteira que sempre lhe contava as aventuras sexuais ressaltando que nunca se exibia com suas roupas íntimas para os amantes casuais, pois aquilo guardava para o dia que conhecesse o marido.
            Foi assim que Cidinha perdeu sua paz, perdeu seu sorriso. Não havia mais flores que fizessem com que seu jardim voltasse a brilhar, ficava por horas olhando a paisagem, sentada junto à janela, desejando poder retornar no tempo, convencer o noivo a não aceitar o trabalho, desistir daquela experiência. Sidão tentava, em vão, demonstrar que, infelizmente, não existia nada a ser feito.
            Dois dias passaram sem que Cidinha reclamasse ou mencionasse o assunto, todos juravam que as coisas estavam retornando ao normal. Uma tarde, os dois caminhavam de mãos dadas pelo centro lotado da cidade, era domingo, todos estavam lá, inclusive a equipe que participara da gravação, ela pediu um sorvete, ele prontamente foi buscá-lo, ela caminhou lentamente mas decidida, passos seguros, olhando fixamente o seu destino, parou em frente à equipe, os olhos brilhando, sorriu levemente, eles sorriram de volta, ela retirou a blusa, seguida da calça e, por fim, de toda a roupa íntima que a diferenciava do noivo. A cidade parou atônita, ela exibia sua nudez enquanto gritava satisfeita que estavam quites, que voltavam a ser iguais, que ali estava de alma limpa e pura. Sidão correu para acudi-la, contudo era tarde, aquela alma já estava despedaçada, estava doente, infectada, alcançara seu fim.

            Daquele dia em diante, Cidinha cerrou seus dias olhando pela janela de uma instituição destinada a almas feridas e perdidas como a sua, sob constante atenção de seus mantenedores para os frequentes rompantes de nudez que a acompanhavam. Seus olhos sempre voltados para um distante outdoor, a três quadras de distância, com a foto do ex-noivo de roupa íntima, sorrindo e feliz. Nunca mais esqueceu Sidão, que casou com uma das fotógrafas do ensaio e vive um relacionamento aberto e moderno. Não virou modelo ou autor, porém participou de mais algumas gravações ousadas. Ele não mais visitou Cidinha. 

sexta-feira, 24 de junho de 2016

No meio do caminho


            Carlos Drummond de Andrade escreveu: no meio do caminho tinha uma pedra. Essa pedra poética de Drummond, em diversos momentos, surge imponente diante de nós, ofuscando qualquer luz de esperança e alento, sufocando nossas vontades, nossos ânimos, fazendo com que, no transcorrer da trajetória, desejemos sentar à beira da estrada e lá perecer ou, em outros casos, retroceder, dar meia volta e retornar para o local de partida. Entretanto, não está aí a saída de tudo.
            Atualmente, como uma voraz e insaciável Esfinge, partimos em nossas jornadas com duas saídas possíveis: decifra-me ou te devoro. Não abrimos espaços para um revés momentâneo, somos movidos pelo empurrar neurótico da vitória eterna, pelo dever para com o sucesso perene e irreversível, pelo ascender soberano e irrevogável. Somos ensinados a sempre olharmos à frente, visarmos ao início da fila, desejarmos ao cume final, ignorando o que ocorre em nosso interior; preocupamo-nos tanto com o labirinto de vida que nos rodeia, que esquecemos do labirinto de vida que somos.
            Vivemos vidas de tensões, em que o primeiro a sair da estrada é o perdedor, uma ode à competição. Transformamos um passeio em um desafio de velocidade. Excluímos de nossas contas vitalícias alguns fatores fundamentais para a solução correta do cálculo da felicidade, enquadramos a derrota no rol dos troféus destinados aos fracos.
            Ignoramos que, em certos pontos, precisamos sair da pista, sentar à beira da estrada, aceitarmos o revés instantâneo e aprendermos com ele. Enxergarmos que ser um perdedor no agora não significa ser um derrotado eterno. Às vezes, é na beira da estrada que conseguimos olhar as pedras por outro ângulo, encontrar formas de transpô-las e visualizar, nem que seja de relance, a recompensa que elas escondem, e assim ganhamos forças, realimentamos nossos ânimos.

            Abandonar a competição, desistir da disputa insana, dedicar um tempo para lambermos nossas feridas sem culpa, recuperarmos nossas energias, alcançarmos a paz e a tranquilidade, por vezes, é o segredo para atingirmos o final desejado. E, assim, na linha de chegada, com o percurso vencido, agradecermos por termos encontrados as nossas pedras no meio do caminho.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Céu no fim de tarde

            Morreria. Essa era a verdade. Sentia o lápis escorregando por entre suas mãos suadas. A fala da professora confundia-se em sua mente, fazia alguns minutos que tentava, em vão, captar alguma coisa que a mulher transmitia, mas era infrutífero. Sentia um mal-estar, um não ser no estômago, um aperto no peito, como se mãos invisíveis pudessem aperta-lhe o coração de tal forma que por duas vezes teve ímpetos de comunicar a professora que estava tendo um princípio de ataque cardíaco. Cheirava-se, cheirava-se a todo o instante, lamentava não ter o perfume do pai junto consigo. Como o pai cheirava bem, aquelas roupas inundadas do símbolo de masculinidade, homem que é homem usava perfume e fumava. Não possuía perfume e muito menos arriscara-se a fumar um cigarro – morria de medo de tomar vício -, assim, não passava em nem um dos dois requisitos. Contudo, mais do que perfume e cigarro, homem que é homem beijava na boca, abraçava mulheres, e, ao pensar nisso, o aperto do peito aumentava.
            Olhou de canto do olho para a esquerda, lá estava ela; pensou, será que estava nervosa como ele? Não parecia, mantinha o rosto sereno e tranquilo, aquilo o desesperava, ele não sabia absolutamente nada, o mais próximo que chegara de uma menina fora no último jogo de caçador, em que, ao desviar de uma bolada, esbarrara de frente com Martinha e, por uma fração de segundo, encostara os lábios nos lábios dela. Todos riram, menos os dois, ou melhor, menos ele, que ficou matutando por dois dias se Martinha não pensava naquele contato, naquele beijo. Tirou qualquer plano de contato mais efetivo com a menina depois de ver ela com Fúlvio, rapaz bem afeiçoado, recebedor de constantes cartas de amor e um conquistador de primeira linha. Estava nervoso, suava muito, e isso o desesperava, e se ela o achasse um nojento? Passou a assoprar a si mesmo com o intuito de refrescar-se, queria poder tomar banho mais do que qualquer coisa. O sinal soou mais alto do que o normal, um amigo lhe cutucou:
- Que sorte, hein!
            O estômago embrulhou mais uma vez, sentia-se observado, na verdade, sabia que estava sendo observado, vigiado por todos os olhos da sala, menos os dela, que saíram velozes em direção à porta. Simulara um esquecimento de um guarda-chuva, não queria plateia. Demorou-se um pouco mais na sala já vazia, as pernas tremiam, e o estômago teimava em se mostrar um ser com vida própria, sentiu uma leve tontura, as pernas estavam bambas. Entrou no corredor que dava para saída da escola e teve a sensação de estar em direção a um pelotão de fuzilamento. O sol já estava esparso àquela altura da tarde, criava uma bonita imagem no céu pincelado de nuvens. Um menino passava acelerando sua bicicleta, a tampa de uma margarina presa aos raios do veículo fornecia um efeito motorizado à bicicleta. Desejou estar ali, disputando um grande prêmio de esquina à esquina, os pés acelerados em um movimento sem fim, uma repetição de ações que geram a velocidade, o vento atacando os cabelos, a adrenalina entrando no corpo, acelerando o coração, tencionando os músculos para ficarem de prontidão para a brecagem a ser feita ao fim da quadra. Uma curva repentina, a bicicleta ereta novamente, o corpo prontificando-se, a sensação de poder ao ter vencido a curva, a perda repentina de velocidade e a falta de aderência. Um verdadeiro vencedor.
            Com o afastar do barulho metálico do pneu traseiro da bicicleta, voltou à sua realidade, reforçado pela visão dela ali, parada, aguardando, segurando os cadernos contra o peito, olhando para os próprios pés, desconectada do mundo, a própria personificação da beleza. A dor de barriga, o mal-estar e o desconforto cresciam na mesma intensidade que a beleza daquela cena, do olhar para o nada, dos braços firmes em torno dos cadernos, dos cabelos presos de maneira despretensiosa.   
            Caminhou até ela, sentia os braços duplicarem de tamanho, pareciam deixar-lhe com ar desengonçado, não sabia se prendia-os aos bolsos com as mãos ou se segurava as alças da mochila, “ela deve me achar um pateta” pensou antes de dar o oi. Cumprimentaram-se timidamente, ele falou algo sobre o céu estar particularmente bonito naquele fim de tarde, ela comentou sobre ter que ir embora logo. Sentiu uma ponta de desespero, estaria ele decepcionando ela? Ofereceu-se para colocar as coisas dela em sua mochila, ela assentiu. Ele a segurou pela cintura, o coração um covil de leões raivosos dentro de si, ela afastou o cabelo do rosto de forma delicada, ergueu seu pequeno queixo na direção dele, fazendo com que os olhos de ambos ocupassem a mesma linha e conversassem. Ele aproximou-se do rosto dela, podia sentir o perfume adocicado e o cheiro do chiclete que ela mascava, tinha gosto de tutti-frutti. Encostou seus lábios com os dela, era molhado, diferente, mas, principalmente, gostoso. As línguas, como valentes e impetuosos guerreiros, invadiram as bocas opostas, encontrando-se em frenéticos movimentos, uma profusão de cheiros, gostos e sensações. Sentiu pela primeira vez na vida um pedaço do céu, e ele tinha cheiro, gosto e textura.
            Permaneceram nessa rotina por aproximadamente uns 15 minutos, longos beijos, abraços mais profundos, beijos novamente. Ele não sabia o que lhe dizer, se deveria agradecer, elogiar ou calar. Resolveu calar. Ela rompeu o silêncio, estranhamente tímida ao afastar o rosto do dele e se fazer vista, informou que precisava ir, ele compreendeu. Entregou-lhe os cadernos, os dois ficaram um de frente para o outro, dois estranhos, optaram por um tímido encostar de lábios, acompanhado de um econômico tchau.

            Ele viveu e reviveu aqueles 15 minutos pelo restante do ano, ainda mais quando ela engatou um namoro com o rapaz mais bonito da turma, Flúvio. Guardou o tutti-frutti, o perfume e aquele gosto no fundo do coração, imaginou-se constantemente voltando no tempo, perguntando se ela gostaria de vê-lo no outro dia, se ela gostara de ficar com ele; imaginou, ao longo de todo ano, ela o encontrando no corredor, os dois trocando olhares, aproximando-se, tocando-se as mãos, beijando-se silenciosamente com intensidade. Nada disso ocorreu. Ela continuou de namoro em namoro, ele permaneceu em casamento constante e permanente com aquela lembrança; o êxtase primeiro, a certeza de que poderia tudo na vida, de que não haveria barreiras intransponíveis, de que a vida fora feita para ser vivida e desfrutada. O fim de tarde que ficou para sempre em sua memória como o último instante em que sentiu-se livre e poderoso, o último momento em que teve a sensação de que tudo era possível. Os 15 minutos da sua vida em que se sentiu um grande vencedor. Afinal, ela era a menina mais bonita da sala e o paraíso possuía gosto de tutti-frutti. 

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Campinho de areia

            Dia desses, em mais uma aula de interpretação textual, estava lendo com os alunos o texto Futebol de rua de Luis Fernando Verissimo. No meio da leitura, bateu uma saudade daqueles compromissos inadiáveis no campo da vila, com as goleiras de chinelo ou, quando a preparação prévia havia ocorrido, de postes de madeira. Mais uma das inúmeras saudades que sentimos ao longo da vida.
            Saudade é presença constante, vigia nossos passos, visita nossos sonhos, guia nossa trajetória. É com a saudade que deixamos nossos mais caros sentimentos, é ela que guarnece tudo que consideramos de mais valioso na vida, os tesouros que acumulamos guardamos sob sua tutela, e para vê-los novamente precisamos evocá-la. Ela suporta o peso de uma vida nos ombros, desobriga-nos do fardo constante de carregarmos a tudo que nos foi, é e será importante.
            Entretanto, em determinadas ocasiões, nem mesmo ela, com toda a sua força, consegue suportar o peso, transfere, sem consentimento algum, um pouco do que carrega para seu antigo dono. Por vezes, através de uma fragrância, outras vezes por uma música, surge a imagem nítida do que foi, a sensação, o sentimento, tudo revivido através dos olhos do que já fomos. A saudade é uma espécie de portadora de tempos de outrora, mas os olhos e a mente que armazenaram e confiaram a ela aquele momento eram outros. Lembramos através de nossos outros, revisitamos nossos eus que já nos deixaram por intermédio da nostalgia. E lá, sentimos segurança novamente, uma fuga da vida presente, um desejo de vivenciar novamente; o pai que lembra do filho, hoje adulto e no mundo, em seu colo e, nem que seja por um milésimo de segundo, imagina-se ali, com aquela figura frágil e pequena em seus braços; um amor, há muito passado, beija a alma do apaixonado que não esqueceu; um ente querido que já partiu abraça a existência daquele que permaneceu.

            A saudade dá rosto, cheiro, forma, sabor e sentimentos às lembranças guardadas. Naquela tarde, enquanto lia e trabalhava o texto com os meus alunos, senti a areia do campinho invadindo meus kichutes, a dor do joelho “lanhado” da queda recente, a alegria de recém sair do gol, sabendo que não voltaria sem que os outros cinco fizessem seu revezamento, mas, acima de tudo, experimentei novamente um pouco da liberdade de uma época em que uma bicicleta, uma bola com a sentença “oficial de campo” e um simples conjunto de palavras como “hoje pode ficar até mais tarde”, proferido pelos pais, bastavam para eu ficar de mãos dadas com a felicidade plena.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

11 minutos

O que precisamos entender, antes de qualquer coisa, é que 33 homens não violaram o corpo de uma mulher. 33 monstros violaram o corpo e alma de uma mulher – filha de um pai que prometeu sempre protegê-la e terá que viver com o sentimento de ter falhado em sua mais importante missão, filha de uma mãe que a carregou junto ao peito em noites em claro e que, agora, vê que mentiu ao afirmar que o mundo é seguro. Foi uma alma que 33 dilaceraram rindo, vangloriando-se, filmando. Foi uma alma que foi exposta para deleite de muitos através de um vídeo.
            Não choro apenas pela menina. Choro pelas mulheres, pelos estupros silenciosos que ocorrem a cada 11 minutos no país, pelo silêncio de muitas mulheres após serem molestadas em locais públicos, pela sociedade que afirma que a mulher é a culpada pela roupa que usou ou como se comportou. Ela não estava sozinha e exposta diante de 33 marginais, ali, ao seu lado, sofrendo do mesmo crime, estavam todos nós, toda uma sociedade que fecha os olhos diariamente a barbáries. Os 33 dilaceraram a alma de todos que ainda possuem um pouco de dignidade no coração.
            As roupas não deitam sobre ninguém de maneira forçada e nem decidem passar a mão nas nádegas de alguém. Elas não gritam “elogios” ofensivos para alguém passando na calçada. Não é a inconsciência – por bebidas ou drogas em excesso – que resolve dar uma “esticadinha” após prometer uma inocente carona solidária.
            O que faz tudo isso é o machismo encravado dentro da sociedade. O machismo que ensina de forma velada que não devemos evoluir, que precisamos urinar em postes para marcar territórios, urrando como selvagens, que as mulheres precisam se darem ao respeito diante de nossa “justificável e natural” irracionalidade masculina hormonal.

            Hoje, sinto-me violentado e envergonhado por ser, biologicamente falando, homem como os 33 covardes. O pior de tudo é que não há punição suficiente. Os sonhos não poderão ser devolvidos àquela jovem. A cicatriz dificilmente poderá ser fechada. Como explicar para ela que o mundo pode ser bom? Como mostrar que um homem pode ser carinhoso? Como lhe devolver dignidade, vida e esperança? Não existe prisão, não existe punição, não existem respostas. Existe apenas uma mulher jovem, no início de sua vida, aos pedaços, dilacerada em 33 partes, um reflexo fiel da triste realidade que vivemos. 

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Quanto vale a educação de seus filhos?

            É imperioso, isso precisa ser interrompido. Os vazamentos de ligações são uma afronta ao nosso direito constitucional de não termos escrúpulos ou posicionamentos profundos e fundamentados.  Felizes aqueles brasileiros de outrora que, diante de uma crise qualquer, podiam eleger seus “messias” sem medo de eles aparecerem ligados a uma construtora, empreiteira, mercearia ou carrocinha de pipoca. Naquela época, mantinham-se intactas a moral e a ordem dos novos heróis. Hoje não se respeita mais nada, a televisão insiste em mostrar esses mecanismos políticos, exibe em horário nobre a destituição de nossos heróis, que desabam como castelos de cartas.
            O que vai ser mais à frente? Gravações? Gravações mostrando como o povo deixa de atravessar na faixa de segurança por alguns metros; ou como estacionam em vagas proibidas e não utilizam o cinto; quem sabe os abusos em coletivos públicos; os jeitinhos para obter um lugar privilegiado em algum serviço público. Essa onda de gravações pode cometer o maior dos crimes: demonstrar que grande parte da política brasileira preenche suas horas de expediente na capital nacional, lindamente arquiteta pelo saudoso Oscar Niemeyer, cosendo acordos políticos – como diria minha avó e a velha e esquecida gramática –, engenhando coligações e estabelecendo maneiras de perpetuar-se no poder, negligenciando toda e qualquer atividade destinada ao bem-estar social.

            Precisamos combater essa onda de revelações danosas, manter a integridade de nossa gente, validar toda nossa recente indignação para com “alguns” mandatários políticos. As recentes gravações ameaçam a todos, se não combatermos essa atrocidade, corremos o risco de, em uma noite qualquer, descobrirmos que a política brasileira é reflexo direto de seu povo. Afinal, ninguém quer ter vazadas as reclamações em ter que sair do almoço do domingo para ter que votar.

Está na hora de parar

            É imperioso, isso precisa ser interrompido. Os vazamentos de ligações são uma afronta ao nosso direito constitucional de não termos escrúpulos ou posicionamentos profundos e fundamentados.  Felizes aqueles brasileiros de outrora que, diante de uma crise qualquer, podiam eleger seus “messias” sem medo de eles aparecerem ligados a uma construtora, empreiteira, mercearia ou carrocinha de pipoca. Naquela época, mantinham-se intactas a moral e a ordem dos novos heróis. Hoje não se respeita mais nada, a televisão insiste em mostrar esses mecanismos políticos, exibe em horário nobre a destituição de nossos heróis, que desabam como castelos de cartas.
            O que vai ser mais à frente? Gravações? Gravações mostrando como o povo deixa de atravessar na faixa de segurança por alguns metros; ou como estacionam em vagas proibidas e não utilizam o cinto; quem sabe os abusos em coletivos públicos; os jeitinhos para obter um lugar privilegiado em algum serviço público. Essa onda de gravações pode cometer o maior dos crimes: demonstrar que grande parte da política brasileira preenche suas horas de expediente na capital nacional, lindamente arquiteta pelo saudoso Oscar Niemeyer, cosendo acordos políticos – como diria minha avó e a velha e esquecida gramática –, engenhando coligações e estabelecendo maneiras de perpetuar-se no poder, negligenciando toda e qualquer atividade destinada ao bem-estar social.

            Precisamos combater essa onda de revelações danosas, manter a integridade de nossa gente, validar toda nossa recente indignação para com “alguns” mandatários políticos. As recentes gravações ameaçam a todos, se não combatermos essa atrocidade, corremos o risco de, em uma noite qualquer, descobrirmos que a política brasileira é reflexo direto de seu povo. Afinal, ninguém quer ter vazadas as reclamações em ter que sair do almoço do domingo para ter que votar.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Histórias curtas 4

          Medidas

      Ela era um rio caudaloso e inconstante, embriagava-se com os acontecimentos e possibilidades da carne e da existência; ele, um riacho que corria por vias seguras e protegidas, distantes dos turbilhões, sorvia a vida aos poucos, lentamente, em doses sociais e controladas, através das chuvas e resíduos das folhas das árvores que o cercavam. Um dia, como qualquer outro, bateram-se, cruzaram-se e, assim, experimentaram o outro lado, o desconhecido. O rio invadiu o pequeno riacho, que sentiu a força e vivacidade; ela, o rio, ao adentrar naquele mundo estranho, experimentou a segurança e a tranquilidade. Os sentimentos se confundiram, o rio desejou ser riacho, e o pequeno riacho teve sonhos de grandes mundos, de experimentar a vida em plenitude. Permitiram-se. Contudo, descobriram que não podiam abandonar suas naturezas, o riacho sentia-se deslocado, perdido, não sabia como ser rio, afogava-se com o fluxo descomunal. Já para o rio, aquela zona de segurança e conforto não comportava seu ímpeto para correr livre e forte. Assim, antes que pudessem perceber, desdenhavam um ao outro, esbravejavam, magoavam-se. E, assim, com o fim das épocas de chuvas, foram recuando para seus lugares, seus territórios originais, feridos e despidos da inocência original, pois agora sabiam da existência um do outro, do sabor daqueles lugares e das suas possibilidades. Ela, agora, era um rio com uma alma de riacho; Ele, um riacho com sonhos de rio, ambos limitados a olhares distantes e transbordados de saudades e carinhos.

domingo, 15 de maio de 2016

Visita noturna

           A fumaça aqueceu uma vez mais sua garganta naquela noite, aspirava as decisões tomadas por ela. Tragava os nãos recebidos, as exigências não atendidas, as perguntas mal respondidas. Sentia-se péssimo. Olhava pela janela, a noite que amadurecia lembrava-o dos beijos não dados, mas, também, de tudo vivido. Torturava-se com aquela tempestade que se alojara dentro de si, podia escutar os trovões abafando seus pensamentos, os lampejos de imagens que desejava desvanecer confundiam-se com a noite. Levou a mão ao cinzeiro que transbordava sua mágoa, mas o cigarro encontrou a beirada da janela, um erro a mais em um emaranhado de equívocos.
            Um som suave rompeu a melancolia do lugar. Olhou para trás e de sobressalto desequilibrou-se para trás. A figura a sua frente ostentava um par de asas, asas brancas e enormes, que repousavam sobre o seu dorso, ocultando a cadeira na qual acomodava-se. Vestia vestes surradas, uma espécie de túnica de comprimento pouco abaixo da cintura que, pela aparência, há tempos não era limpa ou reformada, a calça, de estado semelhante, contrastava com os pés limpos e puros. O rosto era disforme, confuso, uma profusão de matizes indissociáveis. Antes que pudesse fazer algo, a figura estendeu a mão em direção a carteira de cigarros sobre a mesa. Ele entendeu, retirou um cigarro, acendeu-o e colocou-o entre os dedos do ser. Assistiu imóvel e silencioso a fumaça ser exalada após cada ponto incandescente brotar da ponta do alvo tabaco que sumia de forma assustadoramente veloz.
- Problemas?
            A voz emitida era etérea, não corporal, inexistente, contudo estranhamente acolhedora. Teve ímpetos de lhe contar das exigências que fez, da negativa em relação a elas, do que havia passado por Ela, do quanto a amava. Entretanto sentia-se idiota e irrelevante, afinal ele possuía asas, nem rosto para rir ou chorar aquela figura, terminando o cigarro, tinha. Desejou também não ter rosto para não chorar, olhos para não vê-la, desejava ter asas para voar a algum lugar longe dali, quem sabe assim não teria também as lembranças que não desejava, os julgamentos que detestava, as imagens que não vivera e que estavam vivas como armadilhas no seu mais profundo íntimo.
- Não é possível.
            A figura largou o cigarro no chão sem cerimônia alguma.
- Obrigado pelo cigarro, fazia anos que não experimentava. Na verdade, talvez, tudo resume-se a isso: experimentar, provar, decidir se é bom ou ruim, escolher repetir ou não e aceitar quando há algo que se possa fazer e quando não há. E o que se sente após isso é o mais perto de realmente experimentar a vida em plenitude. A dor é subvalorizada, ela é a prova que há vida, que há existência dentro de si. E, na pior das hipóteses, sempre há um cigarro e uma janela. Lembre-se, não fume.
            Antes que pudesse indagar alguma coisa, a figura sumiu tão rápido quanto surgiu. Ao olhar no espelho, chorava copiosamente, não sabia por quê, mas as lágrimas estavam ali e, pelo desenho que formavam em seu rosto, já residiam sua face algumas horas, talvez o tempo do cigarro da criatura. Desistiu de controlá-las, deixou cada uma cair, levando um pouco de tudo que carregava, seus erros e acertos. Teve prazer em seu choro, libertou o que guardava em seu peito como um animal enjaulado ao experimentar a liberdade pela primeira vez, soluçou como não fazia desde de sua infância. Se a dor era a plenitude da vida, vivia como poucos viveram. A noite seria longa, acendeu mais um cigarro.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Em um reino muito distante

                Era uma vez, em um reino muito, mas muito distante. Cinderela, então já comemorando seu sétimo ano de casamento com o príncipe, o mesmo do sapatinho de cristal, apoiava-se no parapeito de seu quarto, mirando o horizonte onde, há poucos instantes, estivera ele montado em seu poderoso alazão branco, antes de sumir da visão, com destino a mais uma de suas inúmeras missões. Suspirava um tanto quanto despontada, não pensara que colocar o pé naquele sapato lhe traria esta rotina. Ficava a maior parte do tempo perambulando pelo castelo, vistoriando construções desnecessárias, averiguando jardins pouco utilizados, experimentando mais de mil vezes vestidos para as inúmeras festas de retorno do rei. Sim, agora já eram rei e rainha.  Por vezes, no íntimo de seu coração, lamentava que aquele sapato tivesse servido, imaginava a sua vida longe dali, distante das formalidades da corte, despida do imenso vestido que a cobria. Imaginava-se correndo pelos campos, deslizando sobre a relva verde oliva que banhava os montes à esquerda de seu reino. O rei a amava com devoção, mas a devoção, por incrível que possa parecer, já estava a chateá-la. Eram sempre os mesmos comentários, as mesmas mesuras, sofria da falta de novidades, da falta de vida própria, de alegrias ou tristezas novas, até mesmo suas tristezas eram velhas senhoras que viviam percorrendo seus aposentos. Foi com esse desejo de liberdade que seus olhos encontraram os de um jovem arqueiro desavisado que ignorou os avisos de nunca olhar nos olhos da rainha.
            Os olhos passaram a se encontrar de forma cada vez mais constante, como uma força de atração irresistível que insistia em fazer-se presente, e, com tempo, as idas às compras pela própria rainha tornaram-se recorrentes. Em um dos raros momentos de presença do marido, alegando estar sob um pressentimento ruim, solicitou uma guarda pessoal para proteger seus aposentos. Essa guarda pessoal virou, com o tempo, a guarda de uma pessoa só, tornando-se, logo em seguida, presença constante em vigílias noturnas no quarto da rainha. E o povo começou a falar, comentar, e logo os rumores caíram no ouvido do rei que, de longe ainda, ordenou que o arqueiro fosse executado. Sabendo dos resultados possíveis, e da vontade do marido, Cinderela implorou para que o jovem fugisse do reino e pra lá nunca mais voltasse. Cansada e amargurada, aguardou a chegada do marido, que ficara mais 2 meses afastado do lar. Ele, logo quando a avistou, tratou de xingá-la e acusá-la de ter trocado o amor que dera a ela por um aventureiro qualquer. Ela, cansada de tudo, respondeu que sabia de tudo, das viagens de meses, das duas amantes que ele cultivava em paragens distantes, do fato de todos no reino saberem da infidelidade do marido. Ele vociferou que proporcionava a ela a vida que toda mulher sonhava e que ela lhe devia gratidão, que a amava do seu jeito, que a amava por saber que ela estava em casa, pura, sempre à prontidão. Por fim, ajoelhado diante dela, pediu perdão, disse que ela era a mulher perfeita, porém tinha receio de não saber como lidar com a aventura com o arqueiro. Ultrajada, ela disse que iria embora; ofendido, ele disse que ela responderia por traição; certa de não ser a única a cometer o crime, ela aceitou o julgamento.
            No dia do julgamento, contudo, o que ela viu a deixou sem esperanças, famílias nas ruas a apontavam, mulheres abraçadas em homens que acompanhavam as cavalgadas de seu marido a chamavam de meretriz, viu-se perdida e atordoada, por que só ele podia? Maldisse aquele maldito sapato, aquela maldita fada madrinha, aquela festa infeliz. Ainda olhou para o seu ex-amor enquanto ajustavam a corda em torno do seu alvo e delicado pescoço, não reagiu, sentiu o desânimo da vida. Diante de si, apenas enxergava os dias de sombra e privações aos quais se entregou após o casamento, a corda apertou, o ar lhe faltou e a escuridão lhe dominou.
            Despertou com a vassoura na mão, as irmãs adotivas gritando que ela não podia dormir no serviço, que onde já se vira uma trabalhadora dormir durante os afazeres? Olhou para si, estava com os velhos trapos surrados e sujos, acompanhada de sua velha vassoura de palha. Nunca se sentiu tão feliz e livre na vida. À noite, escutou um barulho em sua janela, era a fada madrinha lhe prometendo o amor do príncipe e uma vida de riquezas. Ela prontamente fechou a janela, naquele truque não cairia mais. Passou a noite ouvindo os sons do baile enquanto flutuava em uma dança silenciosa e só sua entre artigos e mais artigos. Não casou, formou-se na Universidade e virou professora de filosofia. Namora, viaja, lê e não fica mais em casa esperando ninguém.

            E viveu feliz para sempre.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Batidas, riffs e salto alto

               Demorou-se um pouco mais com o garfo na mão, criava com ele um ângulo fechado em relação à mesa, transformando-o em alavanca e erguendo levemente a lateral do prato vazio em sua frente. Já se passavam dez minutos e ele ainda não chegara. Nem ao menos tivera desejo ou vontade de sair com ele, aceitara apenas como maneira de fazer algo diferente do que vinha fazendo nas últimas cinco semanas. Impressionante o que se pode fazer, com a mente aberta, em uma cidade tão grande como Porto Alegre. Em suas caminhadas pelas noites – noites com cheiro e essência das fumaças e vapores que oscilam entre a luz e a escuridão, verdadeiros encontros do desconhecido com o conhecido -, conhecera uma “pá de gente” legal, descobrira que mulheres conhecem mulheres muito melhor do que homens, que beijos podem ser tickets gratuitos para o paraíso, que o álcool pode ser uma etapa para o transcendental ou para um dia seguinte de ressaca infinita, mas, antes de tudo, aprendera que as pessoas eram vazias; ou será que ela tornara-se vazia? Não sabia mais. Alternava entre as noites sem leis e as leituras cada vez mais vorazes. E a única coisa que conseguia ter certeza era de que nada era como antes. O conhecimento gera a incerteza sobre tudo.
            Sentia-se, nos últimos dias, como em Crime e Castigo, remoendo-se de pensamentos e conjecturas, comentou isso com sua colega que não entendeu a referência. Lembrou que teve ímpetos de lhe socar a face e berrar: como assim não leu Dostoievsky? Contudo, o desejo do golpe foi logo substituído pelo impulso do vômito quando a moça comentou sobre o último lançamento de uma famosa marca de sapatos. Tentou controlar o fluxo, mas, antes que pudesse fazer algo, despejara um líquido amarelo e viscoso no colo da apavorada menina, que a olhava incrédula com o ocorrido. Não conseguiu pedir desculpas, manteve-se imóvel, olhando a colega coberta por parte de sua essência interna enquanto um último fio escorria de sua boca, sentia o amargor, não do vômito, mas, sim, da aquela preocupação com um mero sapato; poxa, falava sobre uma inquietação existencial, um questionamento muito maior. Não conseguira mais trabalhar aquele dia.
            Agora, nesse restaurante, novamente sentia-se uma estranha, uma extraterrestre, perdida em um mundo distante do seu, asfixiada, presa em uma bolha de gestos e posturas. Olhou a mulher à sua esquerda, que sorria satisfeita ao lado do marido, um vestido elegante, o cabelo no seu devido lugar, mais parecia uma estátua, um monumento à beleza eterna, como se tivesse sido transportada por uma empresa para aquela mesa em especial. Não, na verdade, a família toda parecia uma imensa obra de arte, representando a contemporaneidade, o estereótipo de família do século XXI. Uma ode aos bons costumes, aos homens de bem. O que pensariam aquelas pessoas puras e imaculadas se soubessem que ali, a três passos de sua mesa perfeita, estava ela, a antítese de todas as ideias representadas naquela mesa, a prova viva de que a vida opera por linhas tortas ou, até mesmo, no seu caso em especial, sem linha alguma? Imaginou aquelas pessoas nos lugares que frequentou, nos becos escuros, e como se chocariam ao presenciar o que os becos e barzinhos de porões reservam aos seus visitantes. Como beberiam o líquido ardente que servem nesses lugares? Como aspirariam os odores adocicados da atmosfera negra e inebriante, quase que etérea? Onde estacionariam seu carro importado e eternamente encerado sem correr o risco de tê-lo arranhado pelos botões das calças rasgadas dos jovens de cabelos espetados e coloridos que se apoiariam nele? Divertiu-se a imaginar a moça, com seu salto de quase 30 centímetros de altura, sendo levada de um lado para o outro ao som de batidas e riffs constantes.

            Olhou para o lado, nada do rapaz chegar, aceitara o encontro, principalmente, porque, pela primeira vez em meses, conseguira discutir um bom livro com alguém. Além disso, ele demonstrara um brilho diferente no olhar, talvez por pertencer a um mundo diferente do seu, algo que lhe despertava a curiosidade, uma vez que, até mesmo o seu mundo subterrâneo, por vezes, apresentava uma realidade monocromática. Contudo a verdade era que se sentia deslocada naquele ambiente, e a demora dele apenas a fazia arrepender-se mais ainda de estar ali. Lembrou de Natália, lembrou do cheiro de aventura e desafio que brotava dela, do frescor dos cabelos soltos. Repentinamente aquele lugar, aquela situação, trouxeram-lhe uma monotonia, um desânimo, a mesma sensação de mal estar do sapato, olhou uma vez mais para o lado e sentiu o estômago revirar, precisava sair dali, empurrou a cadeira para trás, a moça do sapato alto a olhou espantada, como se a paz de um templo religioso houvesse sido interrompida, quase derrubou o garçom, que não compreendeu nada, abriu a porta ofegante, precisava da fragrância das ruas. Por coincidência, o rapaz chegava naquele instante, aos tropeços, roupa alinhada, mas um rosto que denunciava o caráter involuntário do atraso, a boa convivência aconselhava uma breve resposta, um contato ou uma satisfação. Foda-se os bons modos pensou, deixou apenas um sinto muito no ar, recebido por um atônito e perdido rapaz. Natália a esperava em algum canto perdido da noite. Feliz, encheu os pulmões, o ar exalava perfumes, fumaças e todos os espíritos da noite. 

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Histórias curtas 3

Instantes       

          Pensou na noite passada. Reviveu as perguntas e as respostas. Revisitou as réplicas, as tétricas, os gestos ruidosos, o copo, a parede, os estilhaços. Repensou a porta batida, a volta, a desistência, a porta batida, o som no último volume, as pancadas no volante, a indignação, a incompreensão e o travesseiro. Argumentos foram dados, corações foram feridos, não deveria ter falado aquilo, não deveria ter tomado aquela atitude. Jogara fora tudo que poderia ter sido, desfizera o sonho antes de ele poder acontecer, antes de ele ser possível. Abortara seu futuro de uma forma que nem ela entendia como. Derramava as mais sinceras e profundas lágrimas que existem: as solitárias, as individualistas, aquelas que são propriedades únicas de seu autor ou autora, que só existem para o mundo porque são testemunhadas por quem as chora. Um toque. Uma vibração. Um sobressalto. Uma mensagem: “Não posso viver sem você, vamos tentar novamente?”. A resposta rápida e imediata “Desculpa, foi um erro. Te juro! Nunca mais!”. “Não fala mais nada, não importa, importa nós! E só!”. Reviveu duas noites atrás. Reviveu os beijos e as carícias. Sorriu o mais sincero dos sorrisos. 

domingo, 1 de maio de 2016

A carteira e o travesseiro

A manhã chegou nervosa naquele dia. Seu pequeno coração descompassava com batidas aleatórias que lhe davam a sensação de alguém tentando abrir o seu peito. Olhava para a janela e o que via eram pequenos raios de sol que lutavam contra a escuridão que predominava no quarto, queria levantar, mas a casa ainda estava silenciosa, a mãe não havia levantado e o café não o esperava sobre a mesa. O pai já devia ter saído para o serviço. Tinha no serviço do pai um grande inimigo, feroz e insaciável. Imaginava o serviço como um daqueles buracos que surgiam no céu de seus desenhos animados e sugavam tudo ao redor. Pobre pai. Era sugado todos dias para aquela imensidão. Queria possuir os poderes do seu personagem favorito que, com um carro preto, cheio de engenhocas tecnológicas, poderia explodir qualquer coisa que ameaçasse sua tranquilidade. Na verdade, se fosse o Batman, nem precisaria combater o Serviço, pois, apesar da idade, sabia que o pai recebia uma recompensa financeira para estar lá, e o Batman é rico. Sua cabecinha interrompeu o raciocínio ao ver o seu boneco do homem-morcego com a perna direita destroçada devido a uma mordida poderosa de Leão, o feroz cachorro da família. Leão era seu melhor amigo e único a nunca abandoná-lo, na verdade, Leão nem existia sem ele, ficava na porta da sala, esperando ele abrir a porta para então ganhar vida e correr pelo jardim. Olhou para a janela, a luz aumentava de intensidade, iluminando mais ainda a cortina repleta de pequenos Homens-Aranha nas mais variadas poses de combate. Remexeu-se na cama, o lençol escorregou pelo corpo, levando a colcha junto de si. Sentiu um arrepio gelado e procurou recolar as cobertas em seus lugares. Onde estava a mãe para lhe chamar? Precisava alinhar as tropas para a maior batalha que aquela casa já vira.
            Aninhou uma vez mais a cabeça no travesseiro, afundando-a naquela imensidão macia e reconfortante, por um segundo cerrou novamente os olhos, deixando-se levar pelo transe que lhe tomava conta, sentia o corpo leve, etéreo, deslizando para longe da cama, para longe de si, até ser interrompido da viagem, ser puxado de volta para a cama, pelo contato de dedos invadindo os seus cabelos. Explorando-os de uma forma conhecida e já familiar. Virou-se rapidamente para trás e o que estava diante de seus olhos era o que sonhava e idealizava: seu pai sorria por trás de seus óculos apoiados no nariz levemente curvado para a direita. Exibindo o sorriso que tanto encantava o garoto, aproximou-se o bastante para que o garoto pudesse confundir as respirações e sussurrou:
- Preparou os guerreiros?
            O menino, de sobressalto, pôs-se sentado na cama, as cobertas acumuladas, pesando sobre suas pernas. Explicou, detalhadamente, a disposição de cada soldado no cenário de guerra, alguns protegidos em trincheiras revestidas com a camurça do tênis no meio do quarto, outros acompanhados por ursos armados com canetas esferográficas que detinham, naquele universo, o poder supremo de derrubar inúmeros soldados. Informou ao pai quais soldados lhes pertenciam e quais soldados compunham a armada inimiga.
            Ainda em transe pela presença do pai, ignorou o horário incomum para a presença do pai em sua casa, era jovem demais para compreender que todo aquele conforto, a coberta aconchegante, a legião de Comandos em ação por todo o quarto, os ursos, a roupa quentinha que vestia, a comida sempre à disposição e a bola costurada à mão com a inscrição “Oficial” em torno do ventil cobravam como taxa uma dedicação quase exclusiva de seu herói, um importante contabilista de uma multifuncional, fazendo com que passasse a maior parte do tempo entre números e relatórios, que invadiam os fins de semana, a sala de estar, o quarto do casal e roubava de seu pai boa parte das horas de vida. Brincou como nunca com o ele, a guerra não tinha fim, ursos perderam suas vidas de forma honrosa, soldados foram soterrados por avalanches de cobertas, um batalhão foi dizimado por uma bola lançada pelas tropas inimigas, mas, no fim, o exército inimigo finalmente foi derrotado, exatamente alguns minutos após o pai informar que precisava ir.
            Lentamente, ainda em êxtase, foi para cama conduzido pelas mãos fortes e seguras do pai. Aconchegou-se no travesseiro, colocou uma das mãos sob aquele pequeno mundo de flocos e olhou para o pai. Como ele era grande, pensou, será que um dia seria como ele?
- Posso usar óculos, pai? – perguntou.
- Um dia, quem sabe, irá precisar, hoje ainda não.
- Eu quero ser como você. Poder olhar tv até tarde e ter uma carteira. – o pai riu diante da ambição do filho. Acariciou o cabelo do pequeno da maneira que sabia que o filho gostava.
- Um dia, um dia. A carteira talvez possamos dar um jeito, mas apenas para brincadeira. Agora descansa, brincamos demais, já. O pai te ama.
- Também te amo, pai!
            E, aos poucos, sob embalo dos dedos que roçavam sua cabeça por entre seus cabelos, sentiu os olhos pesarem, o corpo ficar leve, a imagem do pai sumir e surgir, até desaparecer completamente e o sono assumir o controle.
            Despertou com o sussurro da mãe em seu ouvido, “acorda, meu amor. Que bagunça é essa no seu quarto?”. Com os olhos e o pensamento ainda confusos, respondeu que brincara com o pai e não conseguira guardar todas as coisas. A mãe começou a soluçar baixinho, o choro fez o garoto voltar ao mundo real, virou-se para a mulher que o olhava com ternura.
- Filho, eu sei que dói, mas papai está bem, está em um lugar melhor e, com certeza, está cuidando de nós.
            O choro começou a vir mais forte e a mulher tentou debilmente controlá-lo. Abraçou o filho forte e o choro irrompeu mais forte ainda.
- Não chora, mamãe.
- Tudo bem, às vezes chorar faz bem.
- Papai foi embora mesmo, né? – e de repente as lembranças trouxeram a imagem da família reunida, do pai dormindo em uma caixa de madeira, de falarem algo sobre ir para o céu, de estar sozinho, de ficar com a avó, das caras de tristeza e pena que todos o olhavam. Das lamentações que não deveriam ser ouvidas por uma criança tão nova: “tão novo, tão novo, e essa pobre criança agora sem pai?”. Contudo não sentia tristeza, o pai esteve ali naquela manhã, com os óculos, com o sorriso, brincara como nunca conseguira antes devido ao trabalho. Contou para a mãe, relatou como fora a brincadeira, como se divertiram, porém isso apenas fazia a mãe chorar cada vez mais, ela o apertou contra o peito, disse o quanto o amava mais quatro vezes, levantou da cama e avisou que faria leite com achocolatado bem quentinho para espantar o frio, que as coisas dariam certas e que nunca o abandonaria. Abriu a janela do quarto e o sol iluminou o campo de batalha, revelando as cenas do combate recém travado. “Arruma isso para a mãe, tá?”. O menino assentiu com a cabeça, a mãe lhe deu um beijo na testa e disse que o amava, ele também disse o mesmo, ela apanhou algumas peças de roupa no chão e sumiu pela porta.

            O menino deitou novamente no travesseiro, mas sentiu um incômodo, investigou com as pequenas mãos entre o travesseiro e o lençol. Ali estava uma carteira, na verdade, a carteira. Com aquele cheiro característico, o couro levemente gato na ponta e um bilhete. Lamentou não poder compreender o que estava escrito, mas sabia que o coração significava coisa boa.