Foi com espanto que receberam a notícia: a vila
seria desapropriada. O espanto, na verdade, era relativo. Um ano antes, figuras
estranhas passaram a destoar do cenário habitual da pequena e esquecida vila de
São Roque, com seus ternos alinhados e sapatos lustrados, apontavam para cima,
para baixo, para a direita, para a esquerda, como se regessem uma sinfonia sem
músicos. Cada gesto era intercalado por olhares alvoroçados para papéis que,
com o transcorrer do tempo, irrompiam em maior número naquelas mãos limpas e
intocáveis pelo areião bruto que se estendia pelas ruas, calçadas, casas, pés,
mãos e rostos da vizinhança. Seu Dedé foi o primeiro a levantar suposições
sobre as visitas:
- Isso aí, não é coisa boa, não. Ouvi dizer que
na Alemanha foi assim também, mediam aqui, mediam ali, depois colocaram muro e
pronto, todo mundo preso.
Outros
diziam:
- Que nada, isso aí é o governo que tá
preocupado com a gente. Todo mundo vai te casa nova.
Os
mais alarmistas vociferavam:
- Eu vi isso na TV. Esses homens de terno
chegam assim, de mansinho, quando vê, tão tomando conta de tudo.
Entretanto, em meio a todo burburinho
causado pelas visitas, foi no jornal que a coisa tomou forma. Era uma manhã de
sábado como toda outra quando Seu Cristovão, que recebia o tratamento de Seu
por ser o dono da principal venda da vila, anunciou aos berros, com o jornal na
mão, a notícia: construiriam um shopping na vila.
A
notícia pegou a todos de surpresa, “um shopping, aqui?”. Em pouco tempo, o fato
ganhou forma, corpo e, por fim, vida por entre as vielas alaranjadas de São
Roque. Alguns temerosos, outros desconfiados, mas a maioria eufórica por aquilo
que, segundo eles, transformaria a vida de todos.
- Um shopping aqui do ladinho de casa, já
pensou? Fim de semana, poder ficar no ar condicionado, sentado naqueles bancos
chiques, comendo sorvete. Vamos ser chiques, Seu Cristovão. Me vê meio quilo de
coxa e um quilo de salsichão que vamos comemorar.- festejava Clotilde.
Logo,
as emissoras de tevê passaram a frequentar o local para reportagens e
entrevistas. E, assim, os moradores se deram por conta do que haviam
negligenciado na reportagem do jornal: o shopping seria mesmo construído ali,
entretanto não seria com eles. Foi um pandemônio, os moradores iam em blocos ao
mercado de Seu Cristovão, indagando o que seria de todos. O pobre homem, com
lágrimas nos olhos, afirmava que não sabia nem mesmo o que seria dele. Recém
havia investido o pequeno lucro do último ano na aquisição de uma máquina de
assar frango, a primeira da história da vila, que havia vendido 34 frangos no
primeiro fim de semana de funcionamento. O fato era que os moradores seriam
transferidos para o outro lado da cidade, próximos de um bairro residencial de
classe média, onde, com o dinheiro da indenização que receberiam, teriam casas
com toda a estrutura necessária para viverem. O problema era que muitos dos que
ali estavam moravam em residências delimitadas pelo grito e vontade. Com papel passado,
eram poucos.
Enquanto
o tempo andava e a terra vermelha que cobria a vila molhava e secava, a questão
virava tema central nas discussões midiáticas. Bartolomeu, filho de Lurdes, moradora
do bairro, e que cursara, há dois anos, três cadeiras do curso de Direito,
resolveu tomar a frente da união dos moradores e passou a ser figura recorrente
na mídia. A mãe orgulhosa chamava a todos os vizinhos para assistirem o filho
na televisão e colava na parede da sala todas as reportagens de jornal em que o
filho era mencionado.
Após
um ano de discussões e pressão pública, um caso de assassinato aconteceu no
bairro, criminosos sequestraram e levaram um casal para o interior da vila, sem
piedade, assassinaram eles e queimaram os corpos. O caso chocou a todos da
cidade, inclusive os residentes na vila São Roque, que exigiram policiamento e
ação do poder público. Porém, no restante da população, a revolta gerou o
sentimento que era mais do que na hora de acabar com aquela aglomeração. E
foram às ruas exigirem a retirada daqueles casebres e uma revitalização urgente
do local. E assim, assinou-se o decreto: as casas legalizadas seriam
desapropriadas para a construção de um novo centro de compras que traria
benefícios sem fins para a cidade. Quanto aos proprietários, seriam realocados
em uma área do governo onde receberiam uma moradia digna.
Foi
assim que Seu Cristovão assistiu seu mercado ser destruído em três golpes da
enorme máquina de aço; presenciou seus vizinhos ficarem desamparados; precisou
se habituar com a casa nova, com a vila nova, com o pouco movimento no
mercadinho, pois poucos moradores realmente possuíam casas regularizadas, com a
venda da sua máquina de assar frangos e, depois, com a venda das poucas
mercadorias que restavam.
Sem
o mercado, abriu mão do “Seu” e tornou-se cristovão, apenas mais um cristovão. No
terceiro mês procurando emprego, conseguiu uma vaga nos serviços gerais do
shopping que abriu.
Agora, vez ou outra, ele vai
na sorveteria do shopping e pede um desses sorvetes enormes e leva para
Clotilde. Hoje sua colega de serviço, ela faz questão de, todo domingo, após um
longo dia de serviço, sentar em um banco, como se estivesse desfrutando daquele
ambiente como os outros que passam com suas sacolas recheadas de roupas que
valem todo o salário de um mês, sorrindo e agradecendo a existência daquele lugar.
Antes de dar a primeira colherada, ela sempre sorri, olha para Seu Cristovão e
diz:
- Eu não lhe disse, Seu Cristovão? Agora só
falta ser chique.