quinta-feira, 16 de junho de 2016

Céu no fim de tarde

            Morreria. Essa era a verdade. Sentia o lápis escorregando por entre suas mãos suadas. A fala da professora confundia-se em sua mente, fazia alguns minutos que tentava, em vão, captar alguma coisa que a mulher transmitia, mas era infrutífero. Sentia um mal-estar, um não ser no estômago, um aperto no peito, como se mãos invisíveis pudessem aperta-lhe o coração de tal forma que por duas vezes teve ímpetos de comunicar a professora que estava tendo um princípio de ataque cardíaco. Cheirava-se, cheirava-se a todo o instante, lamentava não ter o perfume do pai junto consigo. Como o pai cheirava bem, aquelas roupas inundadas do símbolo de masculinidade, homem que é homem usava perfume e fumava. Não possuía perfume e muito menos arriscara-se a fumar um cigarro – morria de medo de tomar vício -, assim, não passava em nem um dos dois requisitos. Contudo, mais do que perfume e cigarro, homem que é homem beijava na boca, abraçava mulheres, e, ao pensar nisso, o aperto do peito aumentava.
            Olhou de canto do olho para a esquerda, lá estava ela; pensou, será que estava nervosa como ele? Não parecia, mantinha o rosto sereno e tranquilo, aquilo o desesperava, ele não sabia absolutamente nada, o mais próximo que chegara de uma menina fora no último jogo de caçador, em que, ao desviar de uma bolada, esbarrara de frente com Martinha e, por uma fração de segundo, encostara os lábios nos lábios dela. Todos riram, menos os dois, ou melhor, menos ele, que ficou matutando por dois dias se Martinha não pensava naquele contato, naquele beijo. Tirou qualquer plano de contato mais efetivo com a menina depois de ver ela com Fúlvio, rapaz bem afeiçoado, recebedor de constantes cartas de amor e um conquistador de primeira linha. Estava nervoso, suava muito, e isso o desesperava, e se ela o achasse um nojento? Passou a assoprar a si mesmo com o intuito de refrescar-se, queria poder tomar banho mais do que qualquer coisa. O sinal soou mais alto do que o normal, um amigo lhe cutucou:
- Que sorte, hein!
            O estômago embrulhou mais uma vez, sentia-se observado, na verdade, sabia que estava sendo observado, vigiado por todos os olhos da sala, menos os dela, que saíram velozes em direção à porta. Simulara um esquecimento de um guarda-chuva, não queria plateia. Demorou-se um pouco mais na sala já vazia, as pernas tremiam, e o estômago teimava em se mostrar um ser com vida própria, sentiu uma leve tontura, as pernas estavam bambas. Entrou no corredor que dava para saída da escola e teve a sensação de estar em direção a um pelotão de fuzilamento. O sol já estava esparso àquela altura da tarde, criava uma bonita imagem no céu pincelado de nuvens. Um menino passava acelerando sua bicicleta, a tampa de uma margarina presa aos raios do veículo fornecia um efeito motorizado à bicicleta. Desejou estar ali, disputando um grande prêmio de esquina à esquina, os pés acelerados em um movimento sem fim, uma repetição de ações que geram a velocidade, o vento atacando os cabelos, a adrenalina entrando no corpo, acelerando o coração, tencionando os músculos para ficarem de prontidão para a brecagem a ser feita ao fim da quadra. Uma curva repentina, a bicicleta ereta novamente, o corpo prontificando-se, a sensação de poder ao ter vencido a curva, a perda repentina de velocidade e a falta de aderência. Um verdadeiro vencedor.
            Com o afastar do barulho metálico do pneu traseiro da bicicleta, voltou à sua realidade, reforçado pela visão dela ali, parada, aguardando, segurando os cadernos contra o peito, olhando para os próprios pés, desconectada do mundo, a própria personificação da beleza. A dor de barriga, o mal-estar e o desconforto cresciam na mesma intensidade que a beleza daquela cena, do olhar para o nada, dos braços firmes em torno dos cadernos, dos cabelos presos de maneira despretensiosa.   
            Caminhou até ela, sentia os braços duplicarem de tamanho, pareciam deixar-lhe com ar desengonçado, não sabia se prendia-os aos bolsos com as mãos ou se segurava as alças da mochila, “ela deve me achar um pateta” pensou antes de dar o oi. Cumprimentaram-se timidamente, ele falou algo sobre o céu estar particularmente bonito naquele fim de tarde, ela comentou sobre ter que ir embora logo. Sentiu uma ponta de desespero, estaria ele decepcionando ela? Ofereceu-se para colocar as coisas dela em sua mochila, ela assentiu. Ele a segurou pela cintura, o coração um covil de leões raivosos dentro de si, ela afastou o cabelo do rosto de forma delicada, ergueu seu pequeno queixo na direção dele, fazendo com que os olhos de ambos ocupassem a mesma linha e conversassem. Ele aproximou-se do rosto dela, podia sentir o perfume adocicado e o cheiro do chiclete que ela mascava, tinha gosto de tutti-frutti. Encostou seus lábios com os dela, era molhado, diferente, mas, principalmente, gostoso. As línguas, como valentes e impetuosos guerreiros, invadiram as bocas opostas, encontrando-se em frenéticos movimentos, uma profusão de cheiros, gostos e sensações. Sentiu pela primeira vez na vida um pedaço do céu, e ele tinha cheiro, gosto e textura.
            Permaneceram nessa rotina por aproximadamente uns 15 minutos, longos beijos, abraços mais profundos, beijos novamente. Ele não sabia o que lhe dizer, se deveria agradecer, elogiar ou calar. Resolveu calar. Ela rompeu o silêncio, estranhamente tímida ao afastar o rosto do dele e se fazer vista, informou que precisava ir, ele compreendeu. Entregou-lhe os cadernos, os dois ficaram um de frente para o outro, dois estranhos, optaram por um tímido encostar de lábios, acompanhado de um econômico tchau.

            Ele viveu e reviveu aqueles 15 minutos pelo restante do ano, ainda mais quando ela engatou um namoro com o rapaz mais bonito da turma, Flúvio. Guardou o tutti-frutti, o perfume e aquele gosto no fundo do coração, imaginou-se constantemente voltando no tempo, perguntando se ela gostaria de vê-lo no outro dia, se ela gostara de ficar com ele; imaginou, ao longo de todo ano, ela o encontrando no corredor, os dois trocando olhares, aproximando-se, tocando-se as mãos, beijando-se silenciosamente com intensidade. Nada disso ocorreu. Ela continuou de namoro em namoro, ele permaneceu em casamento constante e permanente com aquela lembrança; o êxtase primeiro, a certeza de que poderia tudo na vida, de que não haveria barreiras intransponíveis, de que a vida fora feita para ser vivida e desfrutada. O fim de tarde que ficou para sempre em sua memória como o último instante em que sentiu-se livre e poderoso, o último momento em que teve a sensação de que tudo era possível. Os 15 minutos da sua vida em que se sentiu um grande vencedor. Afinal, ela era a menina mais bonita da sala e o paraíso possuía gosto de tutti-frutti. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário