Sócrates confrontou Íon com os
problemas da sua própria lógica em uma discussão belíssima. Enquanto no bar, a
conversa também rolava solta. Já eram mais de onze horas da noite e cada membro
da mesa central tornava-se, a cada conversa iniciada, uma vítima em potencial
da base psicológica, afetiva e, em alguns casos, econômica do lar. Ninguém era
grego, e tirando Sardinha e seu esforço em ser alguém culto, o único Sócrates
que conheciam era o doutor e tinha jogado no Corinthias e na seleção de 82. Alheios
ao perigo que os aguardava, continuavam as animadas discordâncias boêmias.
Sardinha, operário de uma empresa da região e sindicalista ferrenho, defendia a
necessidade de reforma política profunda. Teodoro, militar da reserva
aposentado, retrucava: comunista! Marcelão, vendedor em uma loja de eletrodomésticos,
adorava colocar lenha na discussão e, sempre, afirmava que eram tudo farinha do
mesmo saco. Entretanto, uma coisa ele sabia, não dava para o Grêmio jogar com
três volantes. Sardinha concordava veementemente, já Teodoro dizia que se o
Grêmio quisesse jogar com dez volantes, o problema não era dele, além do mais,
o Grenal estava chegando e, com esse time, o Grêmio não ganharia nunca do
Inter. E toda vez que falava isso, o militar beijava o escudo do colorado no
peito. E assim, seguia a noite, uma conversa posta na mesa e o bar transformava-se
na sede da ONU, cada um puxando a brasa para si. Entretanto, ao final das
exaustivas discussões, cada um acrescia respeito, admiração e amizade para o
outro.
A verdade é que a coisa tá
ficando chata. Não existe mais pontos de vistas. O radicalismo, ou qualquer
coisa parecida está tomando conta. Hoje, nosso bar, para o bem ou para o mal,
são as redes sociais que todos os dias aparecem inundadas de intolerância e
falta de receptividade com a opinião alheia. Ao mesmo tempo que o país vai
tomando ares políticos e críticos, a falta de diálogo vai ganhando força,
fechamo-nos cada vez mais dentro de nosso pequeno mundo de segurança, onde
nossos argumentos ecoam eternamente, e omitimos as vozes e lógicas contrárias
aos nossos ideais. Discutir virou sinônimo de briga, quando discutir deveria
ser sinônimo de evolução, crescimento, alargamento ideológico, entre tantos
outros termos mais agradáveis.
Essa semana foi marcada pelo
anúncio por parte da direção do Internacional da concretização de um espaço
para torcida mista no Grenal. Bem, se a política está se tornando chata devido
a intolerância, o futebol já é adulto nessa área. É no mínimo lamentável ter
que haver uma iniciativa para isso, quando deveria ser algo natural. Em São
Paulo, quarenta e três torcedores corinthianos espancaram quatro torcedores são-paulinos. Foram detidos, sabe quem pagou a fiança? A própria torcida organizada que afirma que
os baderneiros são minoria. No momento em que um torcedor se acha no direito de
agredir o simpatizante do time adversário porque perdeu, o rapaz tirou sarro ou
não poderia “ter passado ali naquela hora”, perdemos toda a nossa socialidade.
Sorte mesmo teve Sócrates de
não ter nascido hoje, caso contrário, a sua discussão com o rapsodo Íon,
relatada por Platão, teria terminado com Íon excluindo Sócrates do Facebook,
exclamando o tão idiotas são pessoas que pensam como ele e, após uma semana de
intenso “diálogo”, espancando o grego em algum metrô.
Louvado
seja que Santa Cruz do Sul não tem metrô!