sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O melhor presente de todos



                Era com a ansiedade e as primeiras chacoalhadas do pano contra a água do balde que o Natal comunicava sua presença. Acordei com as promessas daquela noite povoando a minha mente, imagens de presentes que ainda não eram evocavam feitos jorros de imaginação que me impeliam a saltar da cama com a disposição de um leão.  Foi ao sair do quarto que a realidade desfez a todos esses sonhos, era véspera de Natal, o que significava que a casa estava em trabalho, trabalho árduo e incansável. Mamãe já iniciara seu ritual costumeiro na tentativa de deixar o velho chalé com o mesmo aspecto dos mais nobres castelos europeus. Erguia aquele cabo de madeira com um pano encharcado na ponta como um maestro defronte a orquestra, abaixando o com força e o balançando para um lado e para o outro, em um movimento frenético que, aos poucos, por incrível que pareça, davam uma pontinha de nobreza ao velho chalé que morávamos.
- Passa guri, passa guri.
            Passei correndo, na ponta dos pés, segurando os chinelos para não macular aquele chão que se transformava. E ela, pouco influenciada, voltava aos seus movimentos frenéticos: ergue, esfrega, ergue, coloca no balde, torce o pano e recomeça tudo novamente. Morávamos em um chalé com dois quartos, uma cozinha, uma pequena sala e um banheiro. Nada luxuoso, mas nada tão ruim. Na verdade, naquele dia, o que importava realmente era o fato de ser véspera de Natal. Por isso, precisava marcar um jogo, uma brincadeira, um passeio de bicicleta, pois, mais cedo ou mais tarde, achariam um afazer para mim naquele mutirão natalino. Papai estava lá fora, serrava, media, pregava, voltava a serrar. Fazia uma mesa de madeira para abrigar aos convidados para a ceia da noite que envolveria uma grande e sadia galinha que faria o papel do Peru, ave um tanto metida a nobres costumes e que não frequentava aqueles ambientes. Nunca sentia falta de seu sabor porque não podemos sentir falta do que não conhecemos, fato era que a galinha era imensamente desejada por aquelas bandas. Meu pai deu bom dia e mandou que lhe alcançasse o saco com pregos que estava próximo do velho moerão, meu dia já estava destinado. Entreguei-lhe o prego e acompanhei o martelar de cada um deles, nos seus devidos lugares, sem erros, sem medo, batidas firmes e fortes, admirava meu pai.
- Já escolheu o presente? – disse entre dentes enquanto equilibrava com a boca alguns pregos.
- Já sim. – respondi de forma apressada.
- Merece ganhar?
- Não sei.
- Como não sabe?
- Sei lá, simplesmente não sei. – respondi. Na verdade, sabia muito mais do que transparecia. Sabia que não seria visitado por um velho de vermelho, mas que era aquele sujeito me questionando que colocaria, bem no horário da missa, o presente, que eu tanto desejava, sob a árvore. Adorava tudo aquilo, permitia que me enganasse para que, talvez, desse modo, pudesse ter um dia especial e resguardado das dificuldades de todos os dias. Ajudei de forma obediente meu pai na confecção do que viria a ser nosso altar de oferendas para uma boa janta em família. Ajudá-lo possuía seu prêmio: não precisar ajudar a mamãe. Ajudá-la significaria estar frente a frente com os meus desleixos semanais como acusadores em prontidão para dedurar-me a uma inquisitora, por vezes, maldosa, que não trabalhava com misericórdia.  Em compensação, se eu não estivesse por perto quando ela encontrasse as evidências, apenas ouviria uma bronca mais tarde. Foi o que fiz naquele dia.
            Paramos de trabalhar para almoçarmos, eu estava suado, e minha mãe, piedosa, preparou uma deliciosa limonada gelada para nós, homens da casa. A conversa no almoço foi em torno da ceia da noite e, como não poderia deixar de ser, das visitas que chegariam para comemorar o dia de festa. Papai comentava que, possivelmente, meu tio, irmão da minha mãe, não traria nada e diria que esquecera. Mamãe repreendia-o. Na verdade, a família que estaria sentada à mesa que estávamos construindo seria a de minha mãe, pois meu pai não trouxe, junto consigo, uma bagagem familiar, perdera sua mãe, minha avó, um tanto cedo, e o pai, meu avô, se perdera de meu pai mais cedo ainda. Sozinho, órfã de família, assim chegou meu pai para o casamento com minha mãe.
            Após o almoço, meu pai retirou-se para sua estada particular, em seu recanto sagrado. Fui incumbido de auxiliar minha mãe na retirada das louças e restos do almoço. O término da refeição diurna, deixava no ar o cheiro e a promessa de que a hora estava aproximando-se. Involuntariamente, flertava com a, ainda, vazia árvore de Natal na esperança de que, em um dos segundos que os olhos haviam perdido a árvore de vista, um pacote misterioso pudesse ter sido acrescido ao cenário, um pacote quadrado, aproximadamente com meio metro de altura, com um daqueles papéis coloridos que embalam os sonhos mais bonitos. Meu sonho era relativo ao futebol, ao mais recente lançamento. Eu, acostumado a gastar tardes de joelhos disputando campeonatos que se decidiam em um “à gol” ou “dois toques”, tendo como astros jogadores achatados que não podiam se afastar do campo de jogo, agora, somente visualizava aqueles jogadores eretos, como os reis que via nos livros de história, jogadores que chutavam de verdade, chutavam uma bola, em miniatura, mas redonda como toda bola deve ser. Todos os garotos do colégio desejavam esse jogo, desejavam poder disparar uma pancada ao estilo Roberto Carlos, assistir a bola viajar para o ângulo das enormes goleiras que acompanhavam o conjunto; eu não era diferente, era isso que comentava como se fosse assunto banal com meu pai e minha mãe, na esperança que eles compreendessem e, como bons pais, propiciassem ao filho a oportunidade de poder se divertir de forma ilimitada. Era com impulso da possibilidade que meu dia passava.
Trabalhei com meu pai, finalizamos a mesa e mamãe finalizou a limpeza da casa. Arrumamo-nos, coloquei minha camiseta mais nova e o tênis que havia ganho há alguns meses, mas que só usava em situações especiais, parecíamos membros das castas mais elevadas, assim fomos à missa. Passei todo o tempo pedindo perdão a Deus por desejar que o padre terminasse o sermão, que meus pais realizassem a comunhão e que o padre nos mandasse realizar o sinal da cruz e irmos todos em paz.
            A saída da igreja, por incrível que pareça, era o momento mais tenso. Saíamos em sintonias diferentes, meus pais caminhando, discutindo os preparativos da ceia que se aproximava, eu, corria por dentro, o coração desejando estar em casa defronte a árvore, desembrulhando o presente que me aguardava.
            Cheguei em casa alguns passos antes de meus pais que, providencialmente, haviam depositado, sorrateiramente, antes de sairmos, o embrulho mágico sob a guarda da pequena, mas bonita, árvore de Natal. E lá estava ele, a promessa de alegria corporificada, um mundo de possibilidades envolto em papel mágico vendido a rolo. As dimensões não eram as esperadas, uma ponta de frustração apertou um tanto o peito. Será que não ganharia o presente? A esperança é ilógica, luta contra as evidências, luta contra os fatos. Mesmo sabendo que ali, diante de mim, não estava o jogo que tanto almejava, ainda assim violei o embrulho como se minha vida dependesse daquilo. As nuvens da dúvida abandonaram o céu do conhecimento e revelaram um Jogo de botão. Nada de jogadores com pernas flexíveis, nada de bolinhas redondas, eram apenas times novos, ou melhor, fichas achatadas com adesivos novos para serem fixados. Entretanto, aquele Natal seria diferente, e iniciou quando olhei o pequeno espelho pendurado no pinheiro em forma de bola de natal e vi o rosto de meu pai. Demonstrava ansiedade, apreensão, a não possibilidade de aquisição do presente ideal e a necessidade de tentar compensar com algo mais simples. Foi naquele instante que despertei para a verdade, quem estava esperando o presente, mais do que eu, era ele. E tudo que ele pedia e esperava era poder proporcionar ao filho o melhor Natal do mundo, mesmo sem poder lhe conceder o presente sonhado.
            Então, de forma repentina, mais rápido que qualquer coisa, aquele brinquedo presente passou a significar mais do que qualquer outra coisa. Quis exclamar para ele o quanto aquilo fazia com que meu Natal se tornasse algo maravilhoso e especial. Corri para meu quarto, sem olhar para meus pais que aguardavam como um réu o veredito. Voltei com o velho campo de botão nos braços, meu pai abriu um dos sorrisos mais alegres que já vi em minha vida. Um sorriso que atestava sua felicidade enquanto pai. Olhei para ele e disse “Vamos jogar? Temos times novos!”. Ele, no mesmo instante, como se entrasse em um túnel do tempo, imediatamente agachou-se junto de mim indagando quais os times que constavam naquela caixa, quais as possibilidades que surgiam diante daquele novo objeto na casa. Estava feliz, havia ganho o melhor presente de todos, a felicidade do filho.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A árvore



            Nasceu sem um propósito ou motivo aparente. Na verdade, pouco sabia do processo que envolveu sua concepção. Foi com alguns meses de vida que ouviu: “essa é a árvore do Fred!”. Pronto, desvendara seu mistério, era a árvore do Fred, seria a melhor em sua missão, não descansaria um só dia se quer até conseguir alcançar altura necessária para propiciar a Fred a melhor sombra do mundo.
            Com esse intuito e essa razão de ser, passou a não desperdiçar uma só gota de água, um só nutriente oriundo da terra. Bebia como alguém sedento, alimentava-se como o mais desprovido, na ânsia por se fazer imensa, terminava por acompanhar cada milímetro de desenvolvimento, comparando os tamanhos dos ainda frágeis galhos dia após dia. Assim, apostava uma corrida incansável com Fred, quanto mais ela crescia, mais assistia ao crescimento do garoto que ganhava pelos, ombros, braços e, principalmente, altura. Na verdade, a pista de corrida do tempo inclinava-se de forma desfavorável a ela, que não conseguia alcançar seu adversário ao final de cada dia.
            Entretanto, o destino passou a sorrir-lhe. Repentinamente, a ordem se invertera, como um corredor cansado e enjoado de competir, o garoto parou de crescer e a árvore passou a olhá-lo de cima e, orgulhosa, a fazer-lhe sombra. Esperava os dias de sol para poder protegê-lo, alegrava-se de vê-lo sob seus cuidados, mas era quando o ouvia comentar como era boa a sua sombra que sentia o orgulho subir-lhe pelas raízes até o alto da sua copa.
            O tempo passou a fazer de Fred um homem e dela uma árvore forte e vigorosa, o bastante para sustentar em seus galhos o balanço que embalava o filho de seu dono em viagens para o céu infinito, mesmo que não compreendia como o menininho ia ao céu sem se desprender dela. Por vezes, sentia ímpetos de se abrigar um pouco mais próxima da casa, compartilhar das risadas internas durante os almoços e jantares da família, mas nunca conseguiu sair do lugar no qual fora gerada há incontáveis anos. Passava seus dias admirando “sua família” e divertindo-se com uma família de pássaros que insistia em manter seu lar em seus galhos, eram leves os seus dias no jardim, sentia a felicidade plena
            Um dia, porém, sem o menor aviso, perdeu o balanço que já encarava como uma extensão de seu corpo. Acompanhado desse ato, sentiu, pela primeira vez em sua existência, o contato gelado de uma lâmina em seu interior, a dor irrompeu dentro de si, urrou, mas o som não saiu. Assistiu, passivamente, galho após galho ser decepado. Por que estavam fazendo aquilo? Não havia sido uma boa árvore? Será que deixara a luz passar no momento inadequado? Talvez não tivesse sustentado o balanço como deveria. Em um esforço descomunal, berrou por misericórdia, porém o máximo que obteve foi o surgimento de um pequeno broto, imperceptível, em um dos troncos recém descobertos pela ação da impiedoso motosserra. Uma representação visual de sua agonia.
            Era com terror que ouvia o som estridente daquele instrumento trabalhando com todo o vigor, queria implorar por sua vida, ajoelhar-se, prometer ser uma boa árvore, garantir que cresceria mais forte com uma copa fechada, que não deixaria passar, nem mesmo, uma gota de chuva que fosse, apenas queria a chance de viver. A máquina assassina tocou-lhe na base, sentia-a esmigalhando sua essência, fazendo sua alma transformar-se em serragem, tentava resistir, manter-se em pé, não entregar sua existência, seu ser. Em um último esforço, concentrou todas as suas forças em conseguir emitir um único som que fosse, uma clemência, uma súplica, sugou todo o resto da seiva de seu interior, sorveu todo o nutriente que suas raízes puderam captar e, de maneira inesperada, um ato impossível de ser concebido, berrou:
- Desculpa!
            Fred interrompeu o corte, olhou para o filho:
- Falou alguma coisa?
- Não, pai. Por quê?
- Parecia ter ouvido alguma coisa.
            Ligou novamente a motosserra e terminou de cortar a árvore. A piscina chegaria naquela tarde, precisaria retirar as raízes ainda, havia muito a ser feito.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Incompreendido



            Falou Shakespeare que “Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”. Renato adorava dizer isso. Em todas as conversas ou discussões que travava, sempre encontrava um jeito de encaixar a citação, uma espécie de titulação de intelectualidade. Ruth caíra nessa estratégia na festa de aniversário de Flavinha há anos, em uma cobertura no centro da cidade. Bebera demais e, mesmo estando combinada com Rogério, acabou cedendo aos encantos intelectuais de Renato. Um ano depois, estavam casando, mas a sensação de ter cometido um engano se reforçou com o beijo fortuito em Rogério na saída do banheiro da festa.
            Com o tempo, os beijos foram evoluindo, Rogério evoluiu para Denílson, Adroaldo, Marcinho, entre outros. Não conseguia controlar os impulsos, eram mais fortes que ela. Porém, que não a acusem os moralistas de não ser uma boa esposa, tratava Renato com devoção comovente para os que presenciavam a rotina do casal. Estava sempre disposta e atenciosa, nunca lhe negligenciava os afetos de uma esposa amorosa. A família fechava os olhos para as inúmeras viagens de negócio e ausências não justificadas, diziam que não podiam negar a Renato a felicidade, pois, na verdade, ele exalava felicidade por todos os poros do seu corpo. O amor o fazia ver um mundo por meio de um caleidoscópio. Foi com apreensão que a família ouviu a notícia:
- Ruth está grávida. Teremos um filho!
            A mãe desmaiou, o pai teve um ataque de tosse, a irmã uma crise de risos, na mente de todos, havia um só pensamento: como saber se o herdeiro a caminho fosse mesmo fruto concebido junto a Renato. Com dúvidas ou não, a gestação transcorreu de forma tranquila como qualquer outra, e envolveu desejos noturnos, massagens providenciais nos pés e nas costas, reuniões com as amigas para discutirem assuntos inerentes a mulheres grávidas, tudo organizado e prontamente realizado por Renato. A todos, além do desejo natural de ver a criança, havia o desejo de saber como aparentaria aquele ser que estrearia nesse mundo.
            Foi em uma manhã de terça-feira que Renato, de forma apressada e beirando o desespero, anunciou aos familiares que estava indo a caminho do hospital. Dois entraram, três saíram. Lá estava, Renato uma linda menina, um retrato da fragilidade e, ao mesmo tempo, milagre da vida humana. Todos, sem exceção, empoleiravam-se na esperança de vislumbrar aquele pequenino rosto. “Ai, deixa eu ver essa coisa fofa!”, “Então esse é o herdeiro?”, as mais típicas frases pronunciadas por pessoas próximas ao se depararem com novos integrantes de uma casa. Entretanto, toda a ingênua curiosidade em relação à maternidade servia como disfarce para a dúvida da traição, a esperança de visualizar nos olhos, no sorriso, no formato do rosto ou no esparso cabelo algum vestígio que denunciasse algum ato ilícito por parte da esposa no tocante ao matrimônio. E todos, sem exceção, após conseguirem pôr os olhos na criança, encontravam uma menina linda, saudável, que, não raramente, arrancava sentenças como “são os olhos do Renato”, “ Viu a boca? Igualzinho a do Renato quando pequeno”, “ela sorriu quando estava mexendo em sua barriguinha, igualzinho ao sorriso do Renato”. Parecia óbvio, a filha era mesmo do casal, dessa feita, Ruth era inocente.
            Os meses foram passando, e a filha cada vez mais se parecia com Renato, e todos da família aprenderam a amar e venerar aquela criança. Tê-la em casa era motivo para júbilo, tal era a alegria que trazia junto de si a menina. Ruth, ficava mais em casa, esperava o marido com um sorriso e uma devoção exemplar. Foi no décimo terceiro mês após a gestão que ela informou o marido em tom formal enquanto admirava seu reflexo no espelho:
- Preciso de uma academia.
- Precisa nada, meu amor. Está linda assim. E mais, sabe o quanto gosto de sustância.
- Para, Renato. Estou falando sério, estou com no mínimo uns 10 quilos acima do peso. Preciso de um milagre.
            Renato achava linda a mulher, achava linda como ela estava, mas, como sempre fazia, no dia seguinte a matriculou em uma academia nova que abrira no centro da cidade, dessas academias que só entram quatro alunos por vez, todos acompanhados individualmente por um personal trainee que dedicava todos os seus conhecimentos para propiciar aos frequentadores a magia do corpo simétrico e sem saliências indesejadas socialmente. Não poupava esforços, financeiros e pessoais, para agradar e mimar a esposa. Afinal, ela merecia, era uma mãe exemplar além de uma mulher que, mesmo com uma criança para cuidar, manteve suas atenções sempre focadas ao marido.
            Um ano passara e Ruth estava mais bela do que nunca. Na verdade, era comum as pessoas duvidarem que tivera um filho há dois antes, os exercícios diários e a alimentação balanceada começara a fazer efeito. Tudo estava tranquilo até o dia em que Renato voltou mais cedo de uma viagem de negócios para casa, como havia ficado de levar a mãe para lhe auxiliar a cultivar algumas coisas novas na horta, uma de suas paixões, passou na casa dela para aproveitar a folga surpresa para resolver aquela questão.
            Foi ao estacionar o carro que algo indicou que havia um erro naquela paisagem normalmente monótona. O carro negro, estacionado em frente a garagem da casa, proporcionava a cena um odor de problemas, Renato questionou se a mãe não gostaria de tomar um café com o objetivo de tirar a mulher de lá, mas ela relutou, seja por um instinto de mãe que deseja fazer seu filho acordar, seja para poder saciar a sede por assistir aquela meretriz (e sempre pedia perdão a Deus quando pensava isso) fosse pega no ato. Por fim, entraram os dois, um com coração ansioso pelo que poderia ver, o outro com a tristeza como companheira ao prever, sem precisar de auxílios místicos, o que veria na parte interna da casa. Abriram a porta.
            Os que se fizeram presentes aos alarmes emitidos pelos primeiros gritos da mãe afirmaram presenciar um homem escapando o mais rápido possível da cena de um crime; uma mulher acuada como um animal selvagem pego em uma arapuca esperando o golpe de misericórdia; uma mulher cuspindo cólera à adúltera; e um homem sentado na cama, prostrado, olhos perdidos e buscando o inalcançável, não demonstrava emoção alguma, na verdade, parecia não estar ali, presente, compartilhando o mesmo espaço com os demais atores da tragédia. E foi assim que ficou até a expulsão da Dalila, da meretriz, que cuspiu na santidade do matrimônio.
            Antes de sair, mal postas as roupas sobre o corpo pecaminoso, Ruth olhou nos olhos de Renato, profundamente, como mandam as canções melosas das rádios AM’s durante as tardes, e disse:
- Eu nem sei o seu nome, não sei nada, ele não era nada para mim, você, só você sempre, você sabe, meu amor, você...
            E antes que pudesse continuar, com o que a mãe de Renato classificou de ser cara de pau em sua essência, foi interrompida pela senhora por um tapa repentino que a derrubou na calçada em frente ao portão que refletia de forma fantástica a luz, ainda plena, do Sol no alto da tarde. A queda foi assistida com total dedicação pelos presentes, que já somavam uma considerada, interativa e entusiasmada plateia, fazendo com que uma espécie de som de espanto coletivo irradiasse pela rua. Ajudaram a levantar a moça, que não chorava, apenas olhava fixamente para Renato, como se argumentasse com os olhos, discussão que ele visivelmente perdeu ao baixar os olhos em sinal de submissão.  
            E foi acompanhada do silêncio daqueles que estavam no palco, das balbúrdias dos espectadores e da tristeza, que a dignidade abandonou a Renato. Foi acompanhando o pôr do Sol que ele sentiu a vergonha escorrer por todo o seu corpo. No fim daquele dia, na solidão do quarto da casa, compreendeu o inevitável: o quarto nunca seria dele, já fora dela, não importava se há algumas horas um outro homem estivesse ali e todos tivessem visto, o quarto continuava dela, o cheiro, as risadas, era tudo dela, nada dele.
            A família passou a se preocupar, Renato era a corporificação da tristeza, não vivia, apenas sobrevivia. Ninguém entendia, ainda mais após os escândalos anteriores vieram à tona, pois, com o desenlace da relação, todos acharam por direito relatar os inúmeros casos de adultério cometidos por Ruth. Entendia-se, dessa forma, que assistiriam a um período de uma espécie de luto sem velório, algo natural, afinal, um homem traído era um homem traído, entretanto, por esse mesmo motivo, acreditava-se que, assim que se recuperasse do luto, partiria para a desforra porque possuía uma condição financeira favorável, uma aparência que, segundo muitas mulheres, lembravam um galã de novela das oito. Contudo, contrariando a todas as expectativas, não só abriu mão da desforra como não se recuperou do luto. Manteve-se fiel, enlutado, um viúvo de uma não morta. Trabalhava normalmente, ia ao supermercado, ao jogo de futebol, mas nunca era visto com uma mulher, reservara seu corpo como um templo, onde se venerava a apenas uma religião: o culto Ruth.  
            Se o comportamento de Renato trazia inquietação, o comportamento de Ruth não se distinguia muito dessa anormalidade. Simplesmente, não havia mais notícias de transgressões sociais ligadas as práticas amorosas de Ruth. Na verdade, ela poderia, muito bem, adentrar um convento sem que lhe fossem negadas a comunhão e a unção tais eram a sua condição imaculada. Seria a vergonha ou um acesso de consciência? Disso poucos sabiam, o que se tinha conhecimento é que havia ali uma nova Ruth, que alternava entre casa e trabalho sem intervalos.
            Foi em um intervalo forçado, em uma ida ao supermercado, que Ruth foi avistada por Renato. Imediatamente, o coração dele reconheceu nela seu anseio, assim como, apesar do que possam dizer as más línguas, o dela também. Cumprimentaram-se discretamente, a vergonha berrando aos seus ouvidos, mas a semente da reconciliação já estava plantada nos jardins da paixão, e ela foi regada por conversas telefônicas, trocas de e-mails e bate-papos da internet. Antes que familiares e amigos pudessem protestar, Ruth e Renato estavam juntos outra vez, e a felicidade retornava aos seus convívios. Renato voltou a sorrir, a estar presente na vida, desfilava pelas ruas com a mesma altivez e confiança de antes, comprou roupas novas, não parecia ter existido aquela tarde, aquele homem ou aquele adultério. Ruth, por sua vez, para desespero da família de Renato, voltou a ter comportamentos condenáveis. Estendia-se no trabalho, viajava constantemente, desfilava pelas ruas da cidade. Contudo, dentro de casa, transformava a vida do marido em um paraíso na terra. Foi com o coração partido que a mãe foi ter com o filho, não aceitava mais tê-lo como motivo de chacota.
- Meu filho, não sei nem como dizer, mas acho que a Ruth está te enganando.
- Como assim, mãe?
- Enganando, traindo, saindo com outro. Pelo amor de Deus, você sabe!
- Mãe, a Ruth é maravilhosa para mim. Tenho a mulher que sempre sonhei e desejei. Não estrague isso pela segunda vez.
- Não acredito no que estou ouvindo. Não criei filho para ser corno na vida!
- Não criou para o quê? Francamente, mãe. Nunca pensei ouvir isso de você.
            A mulher titubeou, cuspira de forma acidental o que ouvia de todos, de toda a cidade. Largara ali, sem nenhuma preparação, o que estava a sufocando há muito. A culpa, repentinamente, reclamou seu espaço e fez com que se sentisse muito mal com o que havia dito.
- Renato, eu não quis...
- Olha mãe, tudo que posso pedir para mim é a felicidade. E posso lhe garantir, Deus atendeu minhas preces.  
- Mas Renato...você não vê que...- interrompeu seu raciocínio, era feliz seu filho com a realidade que vivia, e mais, era também feliz Ruth com seu Renato.
- Tem café, meu filho?
- Não tem, mãe.
- Vou passar um rapidinho. Ficou sabendo do Vadão?
- Vadão? Não. O que tem ele?
            Talvez fosse pela possibilidade de fugir de um problema ou de um sermão mais profundo da mãe, Renato aceitou a mudança repentina de assunto.
- Perdeu o emprego outra vez.
- Esse nunca foi muito de trabalhar mesmo.
- Com açúcar?
- Não, não. Sem açúcar.
- Faço pra três?
- Não, só para dois. A Ruth está em viagem, está viajando muito ultimamente. Coitada, muito atarefada.
- É...coitada. – apertou com força a colher contra xícara como se fosse possível perfurá-la com o objeto. Um estopim estourara em sua cabeça: o filho era corno, mas era feliz; a nora o traía compulsivamente, mas só fazia isso com seu filho, no fim, era fiel em sua pouca vergonha. Afrouxou a colher, liberou a tensão.
- Pouca vergonha, tudo isso.
- O que mãe?
- O Vadão.
- Ah...
- Pensou que estivesse falando do quê?
- Nada, deixa pra lá.
- É...deixa pra lá.
- Mas o que a mãe acha disso?
- Do quê?
- Ora, do Vadão. Estamos falando de quem?
- Do Vadão, é claro.
            A tarde seguiu leve e proveitosa. Assim como a vida.