Vocação
Jeferson Luis de Carvalho
Todos sempre acharam Adamásio um
sujeito sem sal. Foi criado pelos avós devido a um acidente fatal sofrido pelos
pais. Logo cedo, a avó, mulher de forte fervor religioso, sentenciou: será
padre!
Daquele discurso em diante,
todas as ações do garoto corroboravam com a ideia da avó. Em um almoço da
família, o tio veio aos pulos chamar a todos para assistirem a brincadeira dos
pequenos. Então assistiram atônitos os pequenos em ordem militar, solenemente
dirigindo-se a Adamásio enrolado em um lençol azul proferindo bênçãos. Eu não
disse?! exclamou orgulhosa a avó.
Os anos passaram e o futuro
padre teve seu caminho à vida celestial interrompido por dois eventos
inesperados. Ambos ocorreram no mesmo dia e mudaram a vida do pequeno
sacristão. O primeiro era loiro, pés e braços de anjo, rosto de santa e
chamava-se Juliana. E ali, naquele momento, a hóstia e a batina sua alma abandonou ali mesmo. Amou
Juliana por 3 anos, o tempo que dura as paixões juvenis, que desejam mais do
que nunca um entrelaçar de mãos e um beijo roubado e repentino. Nenhum dos dois
aconteceu, mas o desejo sacristão não sobreviveu em sua alma. Do corpo, quem
cuidou foi outra coisa, e somente aqueles que presenciaram podem asseverar o
que ocorreu. Foi aquele momento em que uma metade encontra a outra, que ambas
se conhecem intimamente sem nunca terem sido apresentados. Assim foi o encontro
do garoto com a bola. Se a alma já havia descido dos degraus mais altos da
santidade, agora o corpo viera lhe fazer companhia.
A avó reprovava veementemente
essa relação. Demoníaca! Onde já se viu, um menino que tinha um futuro
brilhante dar-se a jogar futebol, dizia a velha senhora quando alguém exclamava
a extrema habilidade que possuía o rapaz. Colégio interno sentenciou a avó. O
avô até tentou argumentar, mas contra a voz daquela que a boca alimenta não há
o que contrapor.
E para o colégio interno foi
Adamásio. Com o coração ocupado por Juliana, e a vergonha de não ter se tornado
o que o destino sentenciou, dedicou-se com afinco aos estudos. Logo era tratado
como pequeno gênio pelos professores do educandário. Não aceitava menos que a
perfeição, e assim as notas máximas tornaram-se sua segunda família. Formou-se
com louvores, dois anos antes do que o padrão e com três taças de melhor
jogador do campeonato interno de futebol. Para orgulho da avó, foi convidado
para estudar física na Universidade de Harvard. Para orgulho do avô, foi
convidado para jogar no juvenil do Botafogo. Amava ambos, mas optou por jogar
no Botafogo. No dia em comunicou a decisão, a avó desmaiou e teve de ser
hospitalizada. Mesmo diante de tal indício de inconformidade, não voltou atrás,
mas fora obrigado a prometer que usaria o conhecimento que possuía no futebol.
E assim o fez. Antes de cada partida,
questionava a velocidade do vento, a temperatura ambiente, peso da bola. Além
disso, percorria o campo em várias direções contando os passos e anotando tudo
na palma da mão. Quando o jogo iniciava, lá estava ele com as mãos com uma
multidão de números. E realizava jogadas impossíveis, passes precisos, chutes
incríveis. Os repórteres o apelidaram de Doutorzinho, devido a precisão, idade
e cultura que demonstrava nas entrevistas. Andava sempre lendo, nas entrevistas
por vezes utilizava um intérprete.
- Vai jogar nesse sábado?
- Reputo ser prerrogativa de nosso treinador.
Todos
se olhavam com olhos esbugalhados. Alguns, com vergonha de admitir o
desconhecimento, tiravam suas conclusões apressadas. “Adamásio afirma que
respeita o pregado pelo treinador”. Com o tempo, e as excessivas erratas dos
dias seguintes, solicitaram que o Botafogo contratasse um intérprete. Tiveram
que chamar um professor de uma universidade federal com pós doutorado no
exterior.
E
assim seguiu o doutorzinho, com seus cálculos, vocabulário complexo e mãos
rabiscadas. Conquistou o carioca, brasileiro e chegou a seleção brasileira. Foi
à Copa do mundo. Em dias de jogos da seleção, a avó saia da sala, não vou
assistir essa perda de tempo sentenciava. Mas é a seleção argumentava o avô. Na
verdade, a avó secretamente ligava a pequena televisão preto e branco na
cozinha e assistia ao jogo do neto. Foi um sucesso, a seleção ganhou todos os
jogos e chegou invicta a final. O país parou.
No
dia do jogo, Adamásio fez todo seu procedimento padrão. Entrou no campo, anotou
as medidas exatas, verificou a velocidade do vento, a umidade relativa do ar. O
jogo era contra a Itália. Quanta honra para Adamásio, fazer a final contra os
conterrâneos de Galileu, Da Vinci e tantos outros. Há quem diga que uma lágrima
escorreu de seu olho direito na troca de flâmulas, era capitão apesar da idade.
Os italianos trataram de marcá-lo em cima, ou melhor, confundi-lo. O volante
responsável pela marcação, fez curso intensivo de português e passou o jogo
inteiro berrando números aleatórios no ouvido do brasileiro para atrapalhá-lo
com os cálculos. Contudo, assim como era soberba a velocidade de Adamásio em
calcular variáveis enquanto a partida rolava, a sua concentração era digna de
nota. Os números estavam sempre limpos e claros para ele, e antes dos 30
minutos do primeiro tempo o placar indicava 2x0, incluindo um chute em que a
bola foi pega por uma corrente de ar quente simplesmente alçou voo na frente do
goleiro que nada pode fazer. A física, puro cálculo matemático. Entretanto, aos
36 minutos de jogo, Adamásio foi cobrar mais um de seus mágicos escanteios, mas
surpreendentemente a bola passou longe da área, na verdade armando um
contra-ataque que resultou em um gol italiano.
Daquele
jogo poucos gostam de lembrar. Alguns pelo placar de 4 a 2 para os italianos,
mas a grande maioria pelo fim de uma carreira. Adamásio ficou alguns minutos
parado junto a bandeirinha de escanteio, olhando para a mão esquerda toda
rabiscada e coçando a cabeça com a direita. Olhou para o banco pediu para sair.
Foi noticiado no dia seguinte que ele havia sofrido uma lesão gravíssima,
entretanto, a verdade é que errara um cálculo. Colocara um sinal invertido.
Nunca mais se perdoou. Dado a perfeições, não admitia ter cometido tão
grosseiro equívoco. Por mais que amigos e conhecidos tentassem dissuadi-lo,
convencê-lo de que havia mais a ser feito, estava irredutível, abandonaria o
futebol, em respeito à ciência.
Foi
com lágrimas nos olhos que a avó recebeu a notícia, iria ser padre. Estudou
durante oito anos, alheio aos folhetins, às reportagens sobre o craque que
largou tudo pela vida religiosa. Foi com igreja lotada de curiosos, imprensa e,
claro, sua avó, dentro de um vestido floreado parecendo um jardim em toda sua
plenitude, que rezou a primeira missa. Rezou em latim, sem nenhuma palavra em português,
nem ao menos um espirro. Latim clássico, em sua essência. O rito durou exatos 60
minutos, cronometrados perfeitamente, inclusive nas voltas velozes dos
segundos. A quantidade de pães consagrados foi exatamente a necessária. Ao final
da cerimônia, saiu em direção a sacristia sem levar em consideração os pedidos
de fotos.
Após
se despedir da avó orgulhosa, viu-se sozinho dentro da imensa igreja, e sorriu
novamente após 8 longos anos. Cálculos perfeitos, temperatura ambiente
devidamente regulada com aberturas de janelas...não havia perdido a mão.