sexta-feira, 27 de maio de 2016

11 minutos

O que precisamos entender, antes de qualquer coisa, é que 33 homens não violaram o corpo de uma mulher. 33 monstros violaram o corpo e alma de uma mulher – filha de um pai que prometeu sempre protegê-la e terá que viver com o sentimento de ter falhado em sua mais importante missão, filha de uma mãe que a carregou junto ao peito em noites em claro e que, agora, vê que mentiu ao afirmar que o mundo é seguro. Foi uma alma que 33 dilaceraram rindo, vangloriando-se, filmando. Foi uma alma que foi exposta para deleite de muitos através de um vídeo.
            Não choro apenas pela menina. Choro pelas mulheres, pelos estupros silenciosos que ocorrem a cada 11 minutos no país, pelo silêncio de muitas mulheres após serem molestadas em locais públicos, pela sociedade que afirma que a mulher é a culpada pela roupa que usou ou como se comportou. Ela não estava sozinha e exposta diante de 33 marginais, ali, ao seu lado, sofrendo do mesmo crime, estavam todos nós, toda uma sociedade que fecha os olhos diariamente a barbáries. Os 33 dilaceraram a alma de todos que ainda possuem um pouco de dignidade no coração.
            As roupas não deitam sobre ninguém de maneira forçada e nem decidem passar a mão nas nádegas de alguém. Elas não gritam “elogios” ofensivos para alguém passando na calçada. Não é a inconsciência – por bebidas ou drogas em excesso – que resolve dar uma “esticadinha” após prometer uma inocente carona solidária.
            O que faz tudo isso é o machismo encravado dentro da sociedade. O machismo que ensina de forma velada que não devemos evoluir, que precisamos urinar em postes para marcar territórios, urrando como selvagens, que as mulheres precisam se darem ao respeito diante de nossa “justificável e natural” irracionalidade masculina hormonal.

            Hoje, sinto-me violentado e envergonhado por ser, biologicamente falando, homem como os 33 covardes. O pior de tudo é que não há punição suficiente. Os sonhos não poderão ser devolvidos àquela jovem. A cicatriz dificilmente poderá ser fechada. Como explicar para ela que o mundo pode ser bom? Como mostrar que um homem pode ser carinhoso? Como lhe devolver dignidade, vida e esperança? Não existe prisão, não existe punição, não existem respostas. Existe apenas uma mulher jovem, no início de sua vida, aos pedaços, dilacerada em 33 partes, um reflexo fiel da triste realidade que vivemos. 

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Quanto vale a educação de seus filhos?

            É imperioso, isso precisa ser interrompido. Os vazamentos de ligações são uma afronta ao nosso direito constitucional de não termos escrúpulos ou posicionamentos profundos e fundamentados.  Felizes aqueles brasileiros de outrora que, diante de uma crise qualquer, podiam eleger seus “messias” sem medo de eles aparecerem ligados a uma construtora, empreiteira, mercearia ou carrocinha de pipoca. Naquela época, mantinham-se intactas a moral e a ordem dos novos heróis. Hoje não se respeita mais nada, a televisão insiste em mostrar esses mecanismos políticos, exibe em horário nobre a destituição de nossos heróis, que desabam como castelos de cartas.
            O que vai ser mais à frente? Gravações? Gravações mostrando como o povo deixa de atravessar na faixa de segurança por alguns metros; ou como estacionam em vagas proibidas e não utilizam o cinto; quem sabe os abusos em coletivos públicos; os jeitinhos para obter um lugar privilegiado em algum serviço público. Essa onda de gravações pode cometer o maior dos crimes: demonstrar que grande parte da política brasileira preenche suas horas de expediente na capital nacional, lindamente arquiteta pelo saudoso Oscar Niemeyer, cosendo acordos políticos – como diria minha avó e a velha e esquecida gramática –, engenhando coligações e estabelecendo maneiras de perpetuar-se no poder, negligenciando toda e qualquer atividade destinada ao bem-estar social.

            Precisamos combater essa onda de revelações danosas, manter a integridade de nossa gente, validar toda nossa recente indignação para com “alguns” mandatários políticos. As recentes gravações ameaçam a todos, se não combatermos essa atrocidade, corremos o risco de, em uma noite qualquer, descobrirmos que a política brasileira é reflexo direto de seu povo. Afinal, ninguém quer ter vazadas as reclamações em ter que sair do almoço do domingo para ter que votar.

Está na hora de parar

            É imperioso, isso precisa ser interrompido. Os vazamentos de ligações são uma afronta ao nosso direito constitucional de não termos escrúpulos ou posicionamentos profundos e fundamentados.  Felizes aqueles brasileiros de outrora que, diante de uma crise qualquer, podiam eleger seus “messias” sem medo de eles aparecerem ligados a uma construtora, empreiteira, mercearia ou carrocinha de pipoca. Naquela época, mantinham-se intactas a moral e a ordem dos novos heróis. Hoje não se respeita mais nada, a televisão insiste em mostrar esses mecanismos políticos, exibe em horário nobre a destituição de nossos heróis, que desabam como castelos de cartas.
            O que vai ser mais à frente? Gravações? Gravações mostrando como o povo deixa de atravessar na faixa de segurança por alguns metros; ou como estacionam em vagas proibidas e não utilizam o cinto; quem sabe os abusos em coletivos públicos; os jeitinhos para obter um lugar privilegiado em algum serviço público. Essa onda de gravações pode cometer o maior dos crimes: demonstrar que grande parte da política brasileira preenche suas horas de expediente na capital nacional, lindamente arquiteta pelo saudoso Oscar Niemeyer, cosendo acordos políticos – como diria minha avó e a velha e esquecida gramática –, engenhando coligações e estabelecendo maneiras de perpetuar-se no poder, negligenciando toda e qualquer atividade destinada ao bem-estar social.

            Precisamos combater essa onda de revelações danosas, manter a integridade de nossa gente, validar toda nossa recente indignação para com “alguns” mandatários políticos. As recentes gravações ameaçam a todos, se não combatermos essa atrocidade, corremos o risco de, em uma noite qualquer, descobrirmos que a política brasileira é reflexo direto de seu povo. Afinal, ninguém quer ter vazadas as reclamações em ter que sair do almoço do domingo para ter que votar.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Histórias curtas 4

          Medidas

      Ela era um rio caudaloso e inconstante, embriagava-se com os acontecimentos e possibilidades da carne e da existência; ele, um riacho que corria por vias seguras e protegidas, distantes dos turbilhões, sorvia a vida aos poucos, lentamente, em doses sociais e controladas, através das chuvas e resíduos das folhas das árvores que o cercavam. Um dia, como qualquer outro, bateram-se, cruzaram-se e, assim, experimentaram o outro lado, o desconhecido. O rio invadiu o pequeno riacho, que sentiu a força e vivacidade; ela, o rio, ao adentrar naquele mundo estranho, experimentou a segurança e a tranquilidade. Os sentimentos se confundiram, o rio desejou ser riacho, e o pequeno riacho teve sonhos de grandes mundos, de experimentar a vida em plenitude. Permitiram-se. Contudo, descobriram que não podiam abandonar suas naturezas, o riacho sentia-se deslocado, perdido, não sabia como ser rio, afogava-se com o fluxo descomunal. Já para o rio, aquela zona de segurança e conforto não comportava seu ímpeto para correr livre e forte. Assim, antes que pudessem perceber, desdenhavam um ao outro, esbravejavam, magoavam-se. E, assim, com o fim das épocas de chuvas, foram recuando para seus lugares, seus territórios originais, feridos e despidos da inocência original, pois agora sabiam da existência um do outro, do sabor daqueles lugares e das suas possibilidades. Ela, agora, era um rio com uma alma de riacho; Ele, um riacho com sonhos de rio, ambos limitados a olhares distantes e transbordados de saudades e carinhos.

domingo, 15 de maio de 2016

Visita noturna

           A fumaça aqueceu uma vez mais sua garganta naquela noite, aspirava as decisões tomadas por ela. Tragava os nãos recebidos, as exigências não atendidas, as perguntas mal respondidas. Sentia-se péssimo. Olhava pela janela, a noite que amadurecia lembrava-o dos beijos não dados, mas, também, de tudo vivido. Torturava-se com aquela tempestade que se alojara dentro de si, podia escutar os trovões abafando seus pensamentos, os lampejos de imagens que desejava desvanecer confundiam-se com a noite. Levou a mão ao cinzeiro que transbordava sua mágoa, mas o cigarro encontrou a beirada da janela, um erro a mais em um emaranhado de equívocos.
            Um som suave rompeu a melancolia do lugar. Olhou para trás e de sobressalto desequilibrou-se para trás. A figura a sua frente ostentava um par de asas, asas brancas e enormes, que repousavam sobre o seu dorso, ocultando a cadeira na qual acomodava-se. Vestia vestes surradas, uma espécie de túnica de comprimento pouco abaixo da cintura que, pela aparência, há tempos não era limpa ou reformada, a calça, de estado semelhante, contrastava com os pés limpos e puros. O rosto era disforme, confuso, uma profusão de matizes indissociáveis. Antes que pudesse fazer algo, a figura estendeu a mão em direção a carteira de cigarros sobre a mesa. Ele entendeu, retirou um cigarro, acendeu-o e colocou-o entre os dedos do ser. Assistiu imóvel e silencioso a fumaça ser exalada após cada ponto incandescente brotar da ponta do alvo tabaco que sumia de forma assustadoramente veloz.
- Problemas?
            A voz emitida era etérea, não corporal, inexistente, contudo estranhamente acolhedora. Teve ímpetos de lhe contar das exigências que fez, da negativa em relação a elas, do que havia passado por Ela, do quanto a amava. Entretanto sentia-se idiota e irrelevante, afinal ele possuía asas, nem rosto para rir ou chorar aquela figura, terminando o cigarro, tinha. Desejou também não ter rosto para não chorar, olhos para não vê-la, desejava ter asas para voar a algum lugar longe dali, quem sabe assim não teria também as lembranças que não desejava, os julgamentos que detestava, as imagens que não vivera e que estavam vivas como armadilhas no seu mais profundo íntimo.
- Não é possível.
            A figura largou o cigarro no chão sem cerimônia alguma.
- Obrigado pelo cigarro, fazia anos que não experimentava. Na verdade, talvez, tudo resume-se a isso: experimentar, provar, decidir se é bom ou ruim, escolher repetir ou não e aceitar quando há algo que se possa fazer e quando não há. E o que se sente após isso é o mais perto de realmente experimentar a vida em plenitude. A dor é subvalorizada, ela é a prova que há vida, que há existência dentro de si. E, na pior das hipóteses, sempre há um cigarro e uma janela. Lembre-se, não fume.
            Antes que pudesse indagar alguma coisa, a figura sumiu tão rápido quanto surgiu. Ao olhar no espelho, chorava copiosamente, não sabia por quê, mas as lágrimas estavam ali e, pelo desenho que formavam em seu rosto, já residiam sua face algumas horas, talvez o tempo do cigarro da criatura. Desistiu de controlá-las, deixou cada uma cair, levando um pouco de tudo que carregava, seus erros e acertos. Teve prazer em seu choro, libertou o que guardava em seu peito como um animal enjaulado ao experimentar a liberdade pela primeira vez, soluçou como não fazia desde de sua infância. Se a dor era a plenitude da vida, vivia como poucos viveram. A noite seria longa, acendeu mais um cigarro.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Em um reino muito distante

                Era uma vez, em um reino muito, mas muito distante. Cinderela, então já comemorando seu sétimo ano de casamento com o príncipe, o mesmo do sapatinho de cristal, apoiava-se no parapeito de seu quarto, mirando o horizonte onde, há poucos instantes, estivera ele montado em seu poderoso alazão branco, antes de sumir da visão, com destino a mais uma de suas inúmeras missões. Suspirava um tanto quanto despontada, não pensara que colocar o pé naquele sapato lhe traria esta rotina. Ficava a maior parte do tempo perambulando pelo castelo, vistoriando construções desnecessárias, averiguando jardins pouco utilizados, experimentando mais de mil vezes vestidos para as inúmeras festas de retorno do rei. Sim, agora já eram rei e rainha.  Por vezes, no íntimo de seu coração, lamentava que aquele sapato tivesse servido, imaginava a sua vida longe dali, distante das formalidades da corte, despida do imenso vestido que a cobria. Imaginava-se correndo pelos campos, deslizando sobre a relva verde oliva que banhava os montes à esquerda de seu reino. O rei a amava com devoção, mas a devoção, por incrível que possa parecer, já estava a chateá-la. Eram sempre os mesmos comentários, as mesmas mesuras, sofria da falta de novidades, da falta de vida própria, de alegrias ou tristezas novas, até mesmo suas tristezas eram velhas senhoras que viviam percorrendo seus aposentos. Foi com esse desejo de liberdade que seus olhos encontraram os de um jovem arqueiro desavisado que ignorou os avisos de nunca olhar nos olhos da rainha.
            Os olhos passaram a se encontrar de forma cada vez mais constante, como uma força de atração irresistível que insistia em fazer-se presente, e, com tempo, as idas às compras pela própria rainha tornaram-se recorrentes. Em um dos raros momentos de presença do marido, alegando estar sob um pressentimento ruim, solicitou uma guarda pessoal para proteger seus aposentos. Essa guarda pessoal virou, com o tempo, a guarda de uma pessoa só, tornando-se, logo em seguida, presença constante em vigílias noturnas no quarto da rainha. E o povo começou a falar, comentar, e logo os rumores caíram no ouvido do rei que, de longe ainda, ordenou que o arqueiro fosse executado. Sabendo dos resultados possíveis, e da vontade do marido, Cinderela implorou para que o jovem fugisse do reino e pra lá nunca mais voltasse. Cansada e amargurada, aguardou a chegada do marido, que ficara mais 2 meses afastado do lar. Ele, logo quando a avistou, tratou de xingá-la e acusá-la de ter trocado o amor que dera a ela por um aventureiro qualquer. Ela, cansada de tudo, respondeu que sabia de tudo, das viagens de meses, das duas amantes que ele cultivava em paragens distantes, do fato de todos no reino saberem da infidelidade do marido. Ele vociferou que proporcionava a ela a vida que toda mulher sonhava e que ela lhe devia gratidão, que a amava do seu jeito, que a amava por saber que ela estava em casa, pura, sempre à prontidão. Por fim, ajoelhado diante dela, pediu perdão, disse que ela era a mulher perfeita, porém tinha receio de não saber como lidar com a aventura com o arqueiro. Ultrajada, ela disse que iria embora; ofendido, ele disse que ela responderia por traição; certa de não ser a única a cometer o crime, ela aceitou o julgamento.
            No dia do julgamento, contudo, o que ela viu a deixou sem esperanças, famílias nas ruas a apontavam, mulheres abraçadas em homens que acompanhavam as cavalgadas de seu marido a chamavam de meretriz, viu-se perdida e atordoada, por que só ele podia? Maldisse aquele maldito sapato, aquela maldita fada madrinha, aquela festa infeliz. Ainda olhou para o seu ex-amor enquanto ajustavam a corda em torno do seu alvo e delicado pescoço, não reagiu, sentiu o desânimo da vida. Diante de si, apenas enxergava os dias de sombra e privações aos quais se entregou após o casamento, a corda apertou, o ar lhe faltou e a escuridão lhe dominou.
            Despertou com a vassoura na mão, as irmãs adotivas gritando que ela não podia dormir no serviço, que onde já se vira uma trabalhadora dormir durante os afazeres? Olhou para si, estava com os velhos trapos surrados e sujos, acompanhada de sua velha vassoura de palha. Nunca se sentiu tão feliz e livre na vida. À noite, escutou um barulho em sua janela, era a fada madrinha lhe prometendo o amor do príncipe e uma vida de riquezas. Ela prontamente fechou a janela, naquele truque não cairia mais. Passou a noite ouvindo os sons do baile enquanto flutuava em uma dança silenciosa e só sua entre artigos e mais artigos. Não casou, formou-se na Universidade e virou professora de filosofia. Namora, viaja, lê e não fica mais em casa esperando ninguém.

            E viveu feliz para sempre.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Batidas, riffs e salto alto

               Demorou-se um pouco mais com o garfo na mão, criava com ele um ângulo fechado em relação à mesa, transformando-o em alavanca e erguendo levemente a lateral do prato vazio em sua frente. Já se passavam dez minutos e ele ainda não chegara. Nem ao menos tivera desejo ou vontade de sair com ele, aceitara apenas como maneira de fazer algo diferente do que vinha fazendo nas últimas cinco semanas. Impressionante o que se pode fazer, com a mente aberta, em uma cidade tão grande como Porto Alegre. Em suas caminhadas pelas noites – noites com cheiro e essência das fumaças e vapores que oscilam entre a luz e a escuridão, verdadeiros encontros do desconhecido com o conhecido -, conhecera uma “pá de gente” legal, descobrira que mulheres conhecem mulheres muito melhor do que homens, que beijos podem ser tickets gratuitos para o paraíso, que o álcool pode ser uma etapa para o transcendental ou para um dia seguinte de ressaca infinita, mas, antes de tudo, aprendera que as pessoas eram vazias; ou será que ela tornara-se vazia? Não sabia mais. Alternava entre as noites sem leis e as leituras cada vez mais vorazes. E a única coisa que conseguia ter certeza era de que nada era como antes. O conhecimento gera a incerteza sobre tudo.
            Sentia-se, nos últimos dias, como em Crime e Castigo, remoendo-se de pensamentos e conjecturas, comentou isso com sua colega que não entendeu a referência. Lembrou que teve ímpetos de lhe socar a face e berrar: como assim não leu Dostoievsky? Contudo, o desejo do golpe foi logo substituído pelo impulso do vômito quando a moça comentou sobre o último lançamento de uma famosa marca de sapatos. Tentou controlar o fluxo, mas, antes que pudesse fazer algo, despejara um líquido amarelo e viscoso no colo da apavorada menina, que a olhava incrédula com o ocorrido. Não conseguiu pedir desculpas, manteve-se imóvel, olhando a colega coberta por parte de sua essência interna enquanto um último fio escorria de sua boca, sentia o amargor, não do vômito, mas, sim, da aquela preocupação com um mero sapato; poxa, falava sobre uma inquietação existencial, um questionamento muito maior. Não conseguira mais trabalhar aquele dia.
            Agora, nesse restaurante, novamente sentia-se uma estranha, uma extraterrestre, perdida em um mundo distante do seu, asfixiada, presa em uma bolha de gestos e posturas. Olhou a mulher à sua esquerda, que sorria satisfeita ao lado do marido, um vestido elegante, o cabelo no seu devido lugar, mais parecia uma estátua, um monumento à beleza eterna, como se tivesse sido transportada por uma empresa para aquela mesa em especial. Não, na verdade, a família toda parecia uma imensa obra de arte, representando a contemporaneidade, o estereótipo de família do século XXI. Uma ode aos bons costumes, aos homens de bem. O que pensariam aquelas pessoas puras e imaculadas se soubessem que ali, a três passos de sua mesa perfeita, estava ela, a antítese de todas as ideias representadas naquela mesa, a prova viva de que a vida opera por linhas tortas ou, até mesmo, no seu caso em especial, sem linha alguma? Imaginou aquelas pessoas nos lugares que frequentou, nos becos escuros, e como se chocariam ao presenciar o que os becos e barzinhos de porões reservam aos seus visitantes. Como beberiam o líquido ardente que servem nesses lugares? Como aspirariam os odores adocicados da atmosfera negra e inebriante, quase que etérea? Onde estacionariam seu carro importado e eternamente encerado sem correr o risco de tê-lo arranhado pelos botões das calças rasgadas dos jovens de cabelos espetados e coloridos que se apoiariam nele? Divertiu-se a imaginar a moça, com seu salto de quase 30 centímetros de altura, sendo levada de um lado para o outro ao som de batidas e riffs constantes.

            Olhou para o lado, nada do rapaz chegar, aceitara o encontro, principalmente, porque, pela primeira vez em meses, conseguira discutir um bom livro com alguém. Além disso, ele demonstrara um brilho diferente no olhar, talvez por pertencer a um mundo diferente do seu, algo que lhe despertava a curiosidade, uma vez que, até mesmo o seu mundo subterrâneo, por vezes, apresentava uma realidade monocromática. Contudo a verdade era que se sentia deslocada naquele ambiente, e a demora dele apenas a fazia arrepender-se mais ainda de estar ali. Lembrou de Natália, lembrou do cheiro de aventura e desafio que brotava dela, do frescor dos cabelos soltos. Repentinamente aquele lugar, aquela situação, trouxeram-lhe uma monotonia, um desânimo, a mesma sensação de mal estar do sapato, olhou uma vez mais para o lado e sentiu o estômago revirar, precisava sair dali, empurrou a cadeira para trás, a moça do sapato alto a olhou espantada, como se a paz de um templo religioso houvesse sido interrompida, quase derrubou o garçom, que não compreendeu nada, abriu a porta ofegante, precisava da fragrância das ruas. Por coincidência, o rapaz chegava naquele instante, aos tropeços, roupa alinhada, mas um rosto que denunciava o caráter involuntário do atraso, a boa convivência aconselhava uma breve resposta, um contato ou uma satisfação. Foda-se os bons modos pensou, deixou apenas um sinto muito no ar, recebido por um atônito e perdido rapaz. Natália a esperava em algum canto perdido da noite. Feliz, encheu os pulmões, o ar exalava perfumes, fumaças e todos os espíritos da noite. 

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Histórias curtas 3

Instantes       

          Pensou na noite passada. Reviveu as perguntas e as respostas. Revisitou as réplicas, as tétricas, os gestos ruidosos, o copo, a parede, os estilhaços. Repensou a porta batida, a volta, a desistência, a porta batida, o som no último volume, as pancadas no volante, a indignação, a incompreensão e o travesseiro. Argumentos foram dados, corações foram feridos, não deveria ter falado aquilo, não deveria ter tomado aquela atitude. Jogara fora tudo que poderia ter sido, desfizera o sonho antes de ele poder acontecer, antes de ele ser possível. Abortara seu futuro de uma forma que nem ela entendia como. Derramava as mais sinceras e profundas lágrimas que existem: as solitárias, as individualistas, aquelas que são propriedades únicas de seu autor ou autora, que só existem para o mundo porque são testemunhadas por quem as chora. Um toque. Uma vibração. Um sobressalto. Uma mensagem: “Não posso viver sem você, vamos tentar novamente?”. A resposta rápida e imediata “Desculpa, foi um erro. Te juro! Nunca mais!”. “Não fala mais nada, não importa, importa nós! E só!”. Reviveu duas noites atrás. Reviveu os beijos e as carícias. Sorriu o mais sincero dos sorrisos. 

domingo, 1 de maio de 2016

A carteira e o travesseiro

A manhã chegou nervosa naquele dia. Seu pequeno coração descompassava com batidas aleatórias que lhe davam a sensação de alguém tentando abrir o seu peito. Olhava para a janela e o que via eram pequenos raios de sol que lutavam contra a escuridão que predominava no quarto, queria levantar, mas a casa ainda estava silenciosa, a mãe não havia levantado e o café não o esperava sobre a mesa. O pai já devia ter saído para o serviço. Tinha no serviço do pai um grande inimigo, feroz e insaciável. Imaginava o serviço como um daqueles buracos que surgiam no céu de seus desenhos animados e sugavam tudo ao redor. Pobre pai. Era sugado todos dias para aquela imensidão. Queria possuir os poderes do seu personagem favorito que, com um carro preto, cheio de engenhocas tecnológicas, poderia explodir qualquer coisa que ameaçasse sua tranquilidade. Na verdade, se fosse o Batman, nem precisaria combater o Serviço, pois, apesar da idade, sabia que o pai recebia uma recompensa financeira para estar lá, e o Batman é rico. Sua cabecinha interrompeu o raciocínio ao ver o seu boneco do homem-morcego com a perna direita destroçada devido a uma mordida poderosa de Leão, o feroz cachorro da família. Leão era seu melhor amigo e único a nunca abandoná-lo, na verdade, Leão nem existia sem ele, ficava na porta da sala, esperando ele abrir a porta para então ganhar vida e correr pelo jardim. Olhou para a janela, a luz aumentava de intensidade, iluminando mais ainda a cortina repleta de pequenos Homens-Aranha nas mais variadas poses de combate. Remexeu-se na cama, o lençol escorregou pelo corpo, levando a colcha junto de si. Sentiu um arrepio gelado e procurou recolar as cobertas em seus lugares. Onde estava a mãe para lhe chamar? Precisava alinhar as tropas para a maior batalha que aquela casa já vira.
            Aninhou uma vez mais a cabeça no travesseiro, afundando-a naquela imensidão macia e reconfortante, por um segundo cerrou novamente os olhos, deixando-se levar pelo transe que lhe tomava conta, sentia o corpo leve, etéreo, deslizando para longe da cama, para longe de si, até ser interrompido da viagem, ser puxado de volta para a cama, pelo contato de dedos invadindo os seus cabelos. Explorando-os de uma forma conhecida e já familiar. Virou-se rapidamente para trás e o que estava diante de seus olhos era o que sonhava e idealizava: seu pai sorria por trás de seus óculos apoiados no nariz levemente curvado para a direita. Exibindo o sorriso que tanto encantava o garoto, aproximou-se o bastante para que o garoto pudesse confundir as respirações e sussurrou:
- Preparou os guerreiros?
            O menino, de sobressalto, pôs-se sentado na cama, as cobertas acumuladas, pesando sobre suas pernas. Explicou, detalhadamente, a disposição de cada soldado no cenário de guerra, alguns protegidos em trincheiras revestidas com a camurça do tênis no meio do quarto, outros acompanhados por ursos armados com canetas esferográficas que detinham, naquele universo, o poder supremo de derrubar inúmeros soldados. Informou ao pai quais soldados lhes pertenciam e quais soldados compunham a armada inimiga.
            Ainda em transe pela presença do pai, ignorou o horário incomum para a presença do pai em sua casa, era jovem demais para compreender que todo aquele conforto, a coberta aconchegante, a legião de Comandos em ação por todo o quarto, os ursos, a roupa quentinha que vestia, a comida sempre à disposição e a bola costurada à mão com a inscrição “Oficial” em torno do ventil cobravam como taxa uma dedicação quase exclusiva de seu herói, um importante contabilista de uma multifuncional, fazendo com que passasse a maior parte do tempo entre números e relatórios, que invadiam os fins de semana, a sala de estar, o quarto do casal e roubava de seu pai boa parte das horas de vida. Brincou como nunca com o ele, a guerra não tinha fim, ursos perderam suas vidas de forma honrosa, soldados foram soterrados por avalanches de cobertas, um batalhão foi dizimado por uma bola lançada pelas tropas inimigas, mas, no fim, o exército inimigo finalmente foi derrotado, exatamente alguns minutos após o pai informar que precisava ir.
            Lentamente, ainda em êxtase, foi para cama conduzido pelas mãos fortes e seguras do pai. Aconchegou-se no travesseiro, colocou uma das mãos sob aquele pequeno mundo de flocos e olhou para o pai. Como ele era grande, pensou, será que um dia seria como ele?
- Posso usar óculos, pai? – perguntou.
- Um dia, quem sabe, irá precisar, hoje ainda não.
- Eu quero ser como você. Poder olhar tv até tarde e ter uma carteira. – o pai riu diante da ambição do filho. Acariciou o cabelo do pequeno da maneira que sabia que o filho gostava.
- Um dia, um dia. A carteira talvez possamos dar um jeito, mas apenas para brincadeira. Agora descansa, brincamos demais, já. O pai te ama.
- Também te amo, pai!
            E, aos poucos, sob embalo dos dedos que roçavam sua cabeça por entre seus cabelos, sentiu os olhos pesarem, o corpo ficar leve, a imagem do pai sumir e surgir, até desaparecer completamente e o sono assumir o controle.
            Despertou com o sussurro da mãe em seu ouvido, “acorda, meu amor. Que bagunça é essa no seu quarto?”. Com os olhos e o pensamento ainda confusos, respondeu que brincara com o pai e não conseguira guardar todas as coisas. A mãe começou a soluçar baixinho, o choro fez o garoto voltar ao mundo real, virou-se para a mulher que o olhava com ternura.
- Filho, eu sei que dói, mas papai está bem, está em um lugar melhor e, com certeza, está cuidando de nós.
            O choro começou a vir mais forte e a mulher tentou debilmente controlá-lo. Abraçou o filho forte e o choro irrompeu mais forte ainda.
- Não chora, mamãe.
- Tudo bem, às vezes chorar faz bem.
- Papai foi embora mesmo, né? – e de repente as lembranças trouxeram a imagem da família reunida, do pai dormindo em uma caixa de madeira, de falarem algo sobre ir para o céu, de estar sozinho, de ficar com a avó, das caras de tristeza e pena que todos o olhavam. Das lamentações que não deveriam ser ouvidas por uma criança tão nova: “tão novo, tão novo, e essa pobre criança agora sem pai?”. Contudo não sentia tristeza, o pai esteve ali naquela manhã, com os óculos, com o sorriso, brincara como nunca conseguira antes devido ao trabalho. Contou para a mãe, relatou como fora a brincadeira, como se divertiram, porém isso apenas fazia a mãe chorar cada vez mais, ela o apertou contra o peito, disse o quanto o amava mais quatro vezes, levantou da cama e avisou que faria leite com achocolatado bem quentinho para espantar o frio, que as coisas dariam certas e que nunca o abandonaria. Abriu a janela do quarto e o sol iluminou o campo de batalha, revelando as cenas do combate recém travado. “Arruma isso para a mãe, tá?”. O menino assentiu com a cabeça, a mãe lhe deu um beijo na testa e disse que o amava, ele também disse o mesmo, ela apanhou algumas peças de roupa no chão e sumiu pela porta.

            O menino deitou novamente no travesseiro, mas sentiu um incômodo, investigou com as pequenas mãos entre o travesseiro e o lençol. Ali estava uma carteira, na verdade, a carteira. Com aquele cheiro característico, o couro levemente gato na ponta e um bilhete. Lamentou não poder compreender o que estava escrito, mas sabia que o coração significava coisa boa.