domingo, 26 de junho de 2016

A mulher que não gravou comerciais

           Era inegável que uma das virtudes de Sidão eram os olhos, não que a compleição física não o desse uma vantagem a mais, afinal, possuía ombros mais largos que a grande maioria dos homens e conservava um físico que fazia jus a horas de academia, mas os olhos eram vibrantes e, conforme boa parte da população feminina, afrodisíacos. E foram eles que Cidinha viu pela primeira vez, foram eles que a fizeram abrir espaço para a investida daquele conquistador, que provou desejar algo mais sério, algo mais profundo do que uma noite, e assim iniciaram um lindo romance.
          Sidão revelou-se surpreendentemente carinhoso e romântico, despendendo esforços diários através de flores, declarações e mensagens telefônicas para demonstrar seu amor. E logo, Cidinha, apesar da insegurança devido ao passado e a beleza de Sidão, que inclusive realizava alguns trabalhos fotográficos informais, sentia-se bem e extremamente realizada. Cada vez mais doava-se para aquele homem, para aquele futuro companheiro. Ele a agradava em todos os aspectos possíveis e impossíveis, viviam uma eterna lua de mel, acordavam um ao outro com carícias e beijos matutinos, carregados da volúpia dos amores frescos e recém colhidos, e a todos aparentava que naquela horta os amores sempre estariam frescos e à disposição para a colheita. Contudo, como sempre pronunciam os incrédulos, tudo possui um final, a linha de chegada é o destino de toda partida, e uma quarta-feira apresentou aos enamorados o seu fim de jornada.
            Cidinha chegara do serviço como todos os dias, um pouco depois de Sidão, que já havia deixado um simples, porém romântico botão de rosa sobre a mesa. Estava sentado na cadeira da varanda, ela o olhou e, por um instante, pensou o quanto ele era belo, sua postura corporal era invejável, se quisesse ser feio não o poderia. Sem se anunciar, deixou-se cair sobre o colo dele, que a acomodou com carinho, dando-lhe um beijo profundo e cheio de amor no pescoço enquanto sussurrava qualquer coisa, ela suspirava profundamente, ele sabia como causar isso nela. Conversaram sobre o dia, sobre os problemas, nada demais, até que ele contou o convite que recebera, a existência de um pagamento, a sua curiosidade a respeito desse tipo de trabalho e a aceitação por parte dele.
            Dali em diante, os dias viraram tormentos para ela, sentia náuseas e suores frios, passou a viver como se uma entidade estranha estivesse compartilhando de seu corpo. Contudo, logo a tormenta virou tempestade digna de registros, furacão de categoria máxima: o trabalho feito por Sidão chegara. Um comercial de cueca, uma situação simples, ele saía do banho com a toalha até a cintura, retirava a toalha e surgia nu, ela teve que olhar novamente, ele estava nu. A câmera não mostrava seu sexo, mas dava uma generosa visão do físico que tanto o destacava. Ele caminhava até a gaveta do quarto, apanhava uma cueca, colocava-a, e então a câmera mantinha a atenção na roupa íntima preenchida pelo corpo do rapaz, que sorria ao mesmo tempo que uma bonita voz explanava o quão vantajoso era vestir aquele adereço.
            O coração de Cidinha disparou, olhou do vídeo para ele, e dele para o vídeo algumas incontáveis e repetitivas vezes. Perguntou-lhe quantas pessoas estavam na gravação, pois, embora a nudez não tivesse passado para a câmera, ficara evidente a todos que lá estavam. Sidão explicou que eram profissionais, mas o coração de Cidinha a lembrava de que o noivo não era - sim, já eram noivos – de que a equipe de filmagem era composta por conhecidos de ambos, de que, fatalmente, vez ou outra, encontravam-se todos em um dos tantos ambientes noturnos da cidade. Passou a sofrer.
            Foi com enorme esforço que, após um tempo, deixou de dormir, todas as noites que estava no quarto com Sidão, acompanhada da equipe de filmagem, das brincadeiras que deveriam ter feito no dia, dos pensamentos de cada membro daquela equipe. Parecia que conseguiria viver com tudo, aquilo passaria. Pobre Cidinha, não conseguira identificar os avisos de que haviam chegado à reta final. Em uma sexta-feira, alguns meses após a revelação, enquanto trocava de canal lentamente após um dia cansativo, incrédula, viu o noivo na tv, a nudez presumida, a exposição com a roupa íntima. Deixou o controle cair de suas mãos, berrou, gritou, desesperou-se, não dormiram juntos naquela e na noite seguinte. A cidade inteira agora via seu noivo em roupas íntimas, da mesma maneira que ela via ele no santuário de amor de ambos. Uma amiga tentou consolá-la, argumentar que as coisas não eram assim tão graves, mas Cidinha estava arrasada, o noivo de roupa íntima era um segredo dos dois, até compreendia aqueles atores e modelos, mas Sidão era representante comercial. Lembrou-se de uma amiga solteira que sempre lhe contava as aventuras sexuais ressaltando que nunca se exibia com suas roupas íntimas para os amantes casuais, pois aquilo guardava para o dia que conhecesse o marido.
            Foi assim que Cidinha perdeu sua paz, perdeu seu sorriso. Não havia mais flores que fizessem com que seu jardim voltasse a brilhar, ficava por horas olhando a paisagem, sentada junto à janela, desejando poder retornar no tempo, convencer o noivo a não aceitar o trabalho, desistir daquela experiência. Sidão tentava, em vão, demonstrar que, infelizmente, não existia nada a ser feito.
            Dois dias passaram sem que Cidinha reclamasse ou mencionasse o assunto, todos juravam que as coisas estavam retornando ao normal. Uma tarde, os dois caminhavam de mãos dadas pelo centro lotado da cidade, era domingo, todos estavam lá, inclusive a equipe que participara da gravação, ela pediu um sorvete, ele prontamente foi buscá-lo, ela caminhou lentamente mas decidida, passos seguros, olhando fixamente o seu destino, parou em frente à equipe, os olhos brilhando, sorriu levemente, eles sorriram de volta, ela retirou a blusa, seguida da calça e, por fim, de toda a roupa íntima que a diferenciava do noivo. A cidade parou atônita, ela exibia sua nudez enquanto gritava satisfeita que estavam quites, que voltavam a ser iguais, que ali estava de alma limpa e pura. Sidão correu para acudi-la, contudo era tarde, aquela alma já estava despedaçada, estava doente, infectada, alcançara seu fim.

            Daquele dia em diante, Cidinha cerrou seus dias olhando pela janela de uma instituição destinada a almas feridas e perdidas como a sua, sob constante atenção de seus mantenedores para os frequentes rompantes de nudez que a acompanhavam. Seus olhos sempre voltados para um distante outdoor, a três quadras de distância, com a foto do ex-noivo de roupa íntima, sorrindo e feliz. Nunca mais esqueceu Sidão, que casou com uma das fotógrafas do ensaio e vive um relacionamento aberto e moderno. Não virou modelo ou autor, porém participou de mais algumas gravações ousadas. Ele não mais visitou Cidinha. 

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