quinta-feira, 31 de março de 2016

O tutano da vida

Não viveremos para sempre, a mortalidade do homem é seu fardo eterno, uma antítese em ação. Bom seria se pudéssemos adquirir o Tempo como uma mercadoria qualquer e armazená-lo em potes com cores variadas. Colocá-lo entre o arroz e a erva para o chimarrão, usá-lo de forma irrestrita, com a tranquilidade de, ao identificar o fim próximo, poder ir ao mercado mais próximo e solicitar uma porção de Tempo da melhor qualidade.
         Inexistente em qualquer prateleira, de qualquer estabelecimento comercial conhecido, o Tempo é o nosso calcanhar de Aquiles. A simbiose entre o homem e o Tempo é doentia e repleta de requintes de crueldade, ainda mais ao percebermos que nós – homens - constantemente negligenciamos a sua posse e importância. Iniciamos a semana desejando a chegada do sábado, ignorando que, ao encarar os dias de trabalho como torturas diárias apenas para um fim estabelecido, dispensamos, de maneira consciente e premeditada, em um mês, 20 dias de nossas vidas. Concentramos nossa felicidade em apenas dois dias de sete possíveis.
Em um mundo cada vez mais veloz, não satisfeitos, aumentamos a velocidade ainda mais. Terminamos o período de férias planejando o próximo, assim, entrando em uma constante rotina de hibernação e automatismo intercalados por fins de semana, algumas noites e férias. Contentamo-nos, por vontade própria, apenas com o doce fugaz da cobertura do bolo, ignorando o recheio, por vezes, sem graça, mas fundamental e com muito mais a oferecer.
            Somos escravos da finalidade, iniciamos os projetos visando somente os resultados finais e maldizendo os trâmites e situações envolvidos no caminho até o objetivo. Ausentamo-nos durante o longo processo de construção e elaboração, fazendo-nos presentes somente no curto período de finalização e uso. Esperamos um dia inteiro por um breve período de descanso à noite, no sofá de casa, esquecendo as outras 12 horas do dia.

A vida está acontecendo em todos os instantes. Ela se esvai rapidamente, escorre por entre as mãos que trabalham, é carregada pela torrente constante do Tempo, não dá trégua esperando por momentos perfeitos. Valorizar e, mais do que isso, saborear a partida e não somente o resultado pode ser a resolução para, como disse Thoreau, efetivamente sugarmos o tutano da vida. E, assim, no final de tudo, não termos vivido apenas fins de semana e feriados. 

quarta-feira, 30 de março de 2016

Histórias curtas 1

    Cinco minutos      

        A primeira mensagem enviou com euforia, empolgação em palavras e carinhas fofas. A espera pela reposta percorreu com o sentimento que brotava ao explorar as fotos do perfil e ao visitar as lembranças do último encontro. O sinal de mensagem visualizada acolheu saltitante e exultante com os nervos chacoalhando todo o corpo sob a batida da reação incerta. O tempo sem resposta apunhalou o amor recém-fecundado, ainda sem força de se defender. A segunda mensagem enviou com raiva, ódio em palavras acompanhadas de carinhas nauseabundas. E assim, cinco minutos depois, a paixão fenecia, tornava-se uma amizade desfeita via bytes. Sem discussões, berros ou fiascos. Silencioso, colorido, fugaz, mas ainda amor. 

Histórias curtas 2


A casa

Quinta-feira
Chegou em casa cansado de mais um dia exaustivo. Desejava a poltrona mais do que tudo, almejava o silêncio e a tranquilidade. Mais que isso, sonhava não ter contas para pagar, voltar a se preocupar apenas com o time que cairia no futebol de fim de tarde na praça. Mas era adulto, estava casado, a mulher estava lá, esperando-o, querendo saber sobre o seu dia nada especial, maculando seu templo sagrado de silêncio. Assim era em casa.
Chegou em casa cansada de mais um dia exaustivo. Desejava uma cadeira, um chimarrão, quem sabe uma massagem nos pés maltratados pelos imensos e desconfortáveis saltos, um desvio da rotina doméstica, alguém que lhe preparasse uma janta. Mas era casada e o homem estava lá, esperando-a, querendo que ela perguntasse sobre o dia penoso que ele havia passado. Aguardando para relatar os reveses com um drama no olhar, assistindo impassível ela preparando a janta, ajeitando as roupas sujas e atendendo às crianças. Tudo isso, magnânimo, sentado naquela porcaria de sofá. Assim era em casa.
Chegou em casa cansado de mais um dia exaustivo. Será que poderia existir algo mais enfadonho que a escola? Desejava ter a vida do pai: trabalhar, chegar em casa, afundar no sofá, ser chamado para a janta, ter dinheiro no banco. Ou quem sabe a vida da mãe: ser bem sucedido no emprego, ter alguém do seu lado sentado no sofá todas as noites, possuir tudo o que deseja: máquina de lavar roupa último modelo, forno micro-ondas, um filho com saúde e, claro, dinheiro. Mas, casa, para ele, nesta fase da vida, significava quarto para arrumar, deveres escolares para fazer, janta para comer na mesa. Sofria demais. Assim era em casa.
No domingo, todos queriam churrasco, e a casa voltava a sorrir.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Quadrilha moderna

João amava Teresa que havia tido um caso com Raimundo,
fato que o destruía por dentro;
Raimundo amava Joaquim e pouco caso dava à Teresa;
Maria também amava Joaquim, mas saía com Lili nas sextas à noite;
Joaquim, entretanto, amava sua empresa e o capital que ganhava.
João casou com Soraia, mas não nunca esqueceu Teresa,
Teresa virou artista circense,
Raimundo, renegado pela sociedade, mas honesto, hoje vive feliz;
Maria permaneceu ficando para tia, porém feliz, vez ou outra encontra Lili;
Joaquim trabalha 16 horas por dia e casou com alguém
que não recorda o nome, mas sim o corpo;
Lili, novamente, casou com J. Pinto
Fernandes
Que não tinha entrado na história


domingo, 20 de março de 2016

Carta aberta ao Outono

Brasil, 20 de março de 2016,
Caro Outono,
Fico imensamente feliz com sua chegada. Parece que faz um ano que não lhe vejo. Na sua ausência, muitas coisas aconteceram. Logo no início de sua partida, ainda magoado com o abandono repentino, sim, tenho que admitir, passei excelentes momentos junto ao Inverno, chegando, em alguns momentos, até mesmo a pensar que seria mais feliz com ele. Entenda, você havia ido embora sem nem ao menos se despedir. Contudo, o inverno partiu tão logo chegou e veio a Primavera. E você sabe que ela nunca vem sozinha, dessa vez não foi diferente, trouxe a Rinite de mala e cuia. Como ela está diferente de você e do Inverno, cada vez mais parecida com o Verão. A sorte é que ela não ficou muito tempo, pois o Verão chegou cedo. A gente se prepara mentalmente e espiritualmente para isso, mas sempre sofre. Não posso mentir, tivemos bons momentos esse ano eu e o Verão, porém já não suportava mais seu temperamento acalorado, sua intensidade quase sufocante. Enfim, vamos falar do presente, peço que não esqueça de trazer, junto com você, por gentileza, brisas constantes, dias nublados, trabalhar sem transpirar, assim como caminhar pela cidade sem achar que irá derreter, temperaturas amenas ou baixas, fins de semana de filmes e leitura sem ar condicionado, massas e pizzas acompanhadas de um bom vinho e noites de edredom. A chave da casa está no mesmo lugar de sempre, se conseguir trazer as noites de edredom, nem precisa bater na porta, pois estarei dormindo. Ansioso por sua chegada.
Abraços,

Seu fã número 1

segunda-feira, 14 de março de 2016

O Mar

            Tropicou no primeiro degrau, o que ocasionou um novo torpeço no seguinte e, consequentemente um escorregão no terceiro que culminou em uma queda nada teatral na areia úmida da noite. Era a coroação daquela noite desastrosa, olhou para a garrafa tombada ao lado, ainda conservava uma essência de líquido. “Ao menos isso”, pensou. Um grupo de jovens passava por ali e gritou algo que denegrisse um homem bebendo mais do que deve em uma noite de quarta-feira. Preparou-se para revidar o insulto quando deu de cara com um casal que o olhava do alto daquela perfeição amorosa com repugnância, como se olhassem uma cena dantesca. Apoiou uma das mãos na areia, afundando-a o bastante para a areia alcançar os seus pulsos, e iniciou o longo processo para levar o seu corpo a posição ereta. O movimento envolvia apoiar a outra mão na areia fofa para produzir uma base na qual o tronco pudesse sustentar-se. Na primeira tentativa, o braço esquerdo cedeu e ele sentiu novamente o gosto crocante da areia entre os dentes, a língua e toda a sua boca. Repetiu o movimento com melhor desempenho logo em seguida, ou assim lhe pareceu fazer, diferentemente do homem que vendia abacaxis e cansou-se de assistir as tentativas inúteis do pobre bêbado de levantar de sua prisão momentânea.
            Já com o corpo livre da areia úmida, abaixou-se com esmero para apanhar a garrafa provisoriamente abandonada na areia. Ignorando os apelos do vendedor, arrastou os pés com enorme esforço, emaranhando-se na areia como se estivesse percorrendo um pântano pegajoso para a escuridão que se apresentava à sua frente, usando como norte de sua bússola a sinfonia noturna das ondas que trabalham eternamente. Parou bruscamente ao sentir o primeiro contato da gélida água com seus pés. A areia, recém embebida com a liquidez, engoliu seus pés rapidamente, fazendo com que perdesse o frágil equilíbrio que o mantinha de pé, acarretando em uma queda desassistida do mundo e apenas presenciada por um distraído caranguejo que, curiosamente, esbanjava equilíbrio deslocando-se ao contrário do mundo sem derrapar em nenhuma oportunidade. Deixou-se pesar sobre o chão arenoso, a cabeça girava constantemente, protestava contra si mesmo parado no nada, discutia e lamentava o acontecido. Como ela pôde fazer aquilo com ele? Balançava a garrafa debilmente em direção à escuridão que se apresentava diante de si. Experimentou levantar do chão da mesma maneira que fizera nos degraus de instantes atrás, mas não conseguia.
            Por um instante, o cheiro da bebida foi substituído pelo aroma da água, que o encharcava as roupas e já alcançava o bolso da calça. A maré estava subindo, não havia dúvidas. Mas não se importava. Idealizara-a em sua cabeça, desenhara-a, venerara-a como uma deusa inalcançável, demandara uma parte da sua vida em um culto à imagem dela. Elaborara o plano perfeito, imaginara a resposta perfeita, filhos, casa, família e todos as bonanças do amor verdadeiro e puro. Tudo em vão, tempo perdido, o destino brincara com ele, chacoalhara sua vida como a um brinquedo infantil qualquer. Logo com ele, logo com ele. A garrafa lhe pareceu, uma vez mais, apetitosa e convidativa, retirou-lhe da água que já submergia a garrafa até o rótulo, um gole violento desceu-lhe o ventre com a mesma violência que o que vira à noite atacou-lhe o coração. Conservava na mente, mesmo que contra a vontade, como uma invasora indesejada que recusa ausentar-se, a imagem dela nos braços de um qualquer, alguém que não a valorizava como deveria, como merecia. Lançou as mãos na escuridão na esperança de desvanecer a imagem que enxergava, como se ela fosse um mural diante de si, porém não conseguira. A imagem permanecia lá, os dois juntos, será que riram dele? Não, nem o conheciam para sorrirem. Será que ela sorriu? Será que gostou das piadas? A imaginação de como haviam ficado juntos, o que fizeram, o que falaram, o que passava na cabeça dele ao se despedir destruía lhe a paz. Provavelmente para ele foi apenas um momento fugaz, um bom divertimento, uma boa distração na vida. Pensou nas riquezas que teve em mãos e que não valorizou. Será que aquele estranho pensaria o mesmo amanhã? Sabia que não.
            Uma onda súbita o derrubou. Conseguiu salvar o restante do líquido da garrafa da invasão da água salgada. O mesmo não conseguiu em relação a si mesmo. Estava encharcado. As lágrimas irromperam e, dessa forma, tinha em seu rosto as lágrimas fundindo-se à agua do mar e a areia. Desejava possuir o poder para regredir a maré que subia e o envolvia em água e escuridão, o poder para clarear o dia mais uma vez para ter a oportunidade de ver a imensidão que estava inacessível diante de si, queria regredir o tempo, desfilar por entre as tristezas e alegrias, as horas e os minutos, retirá-la daquele quarto, impedira de entrar, abordá-la anos antes, antes de tudo. Contudo a verdade era que restava apenas aquela sensação, aquele momento. Chorou uma vez mais, por um instante, teve a impressão de ter gritado algo tão alto que as ondas, em sinal de solidariedade, silenciaram-se, cessando por um instante os seus trabalhos. E foi no silêncio momentâneo que tentou visualizar uma vida, uma continuação, entretanto o que viu foi tristeza.
            E o mar, finalmente, apiedou-se do pobre desiludido. Ergueu-o com cuidado, sabia como lidar com os desassistidos de felicidade, consolara aos homens desde o princípio dos dias, reforçara-se muitas vezes nas incontáveis lágrimas que os homens nele derramaram; marinheiros, viajantes, esposas e crianças. O homem estava pesado, carregado pela tristeza e pelo o que não foi, deslizou o corpo aos poucos, trazendo-o lentamente, como a um amigo, como se o recebesse como um velho morador. Tomou cuidado de não o fazer sofrer, separou-o da garrafa que lhe denegria a imagem, ajeitou-lhe os cabelos.
Porém, todos sabem, ao mar o homem não pode adentrar sem uma ruptura, sem um instante de dor, como um portal, uma última tarefa. Em algumas vezes, despojado de qualquer tipo de desejo cruel, o Mar, um tanto desajeitado com esses estranhos sem guelras ou nadadeiras, solicita socorro à sua rainha. E, naquela noite, mais uma vez ela atendeu. Ergueu-se imponente entre uma linha de ondas, deslizando lentamente na direção do infeliz apaixonado. Apesar de seu poder e distanciamento para as coisas terrenas, sentia um aperto no peito ao enxergar as lágrimas que corriam daquele rosto desprovido de luz. Acariciou lhe as faces de forma amorosa enquanto o fazia deslizar lentamente mar adentro. O Mar, obediente, recebeu-o como um dos seus, sem dor, sem sofrimento, sem provação. Já havia sofrido a maior das provações, sofrer por amor.
            Ao fundo, debruçado no balcão de sua banca, o vendedor de abacaxi estranhou o silêncio do mar. Aguçou a visão inutilmente mirando o horizonte no intuito de difundir alguma imagem que denunciasse o que ocorria, mas não conseguiu. Pensou em descer na areia para verificar, pois parecia ouvir uma voz feminina ecoando uma linda canção, mas desistiu assim que uma onda quebrou o silêncio, seguida de outra, e outra, e, assim, o Mar seguiu seu trabalho ininterrupto e solitário.


quinta-feira, 10 de março de 2016

Pretérito imperfeito


            Era corriqueiro. Fim de tarde, a fome batia. Em casa, era pão com alguma coisa, menos açúcar e leite condensado - por algum motivo que eu, à época, desconhecia. Já com meus avós, eram pedaços de bolo acompanhados de bolachas em sacos coloridos e lindos. Portanto o único lugar de um jovem privado dos doces da vida era ao lado do avô, tomando um bom e velho chimarrão. E lá surgia o pretérito perfeito: “Na minha época, quando tinha meus 18 anos, homem que era homem usava fatiota”; “na minha época de escola, precisava caminhar um bom pedaço até a escola, não existia asfalto ou rua calçada, era no chão mesmo” ou “televisão na minha época, a gente se preparava para assistir, não assistia simplesmente, não tinha cor e demorava um pouquinho para ligar até a válvula esquentar”. Eu acenava positivamente enquanto escondia a bolacha na boca para poder morder o pedaço de bolo amanteigado sem ser repreendido.
Com igual recorrência, e por vezes na mesma medida, meu pai usava o pretérito. Contudo eu, “contemporâneo do mundo”, usava e abusava do presente: “Adoro o cheiro de álcool da prova”, “Super Nintendo é muito real, um jogo fantástico”, “o CD veio para revolucionar de vez a música, só não substituirá a fita cassete porque não grava”.  Ledo engano.
            Hoje, assistimos incrédulos a uma invasão do pretérito imperfeito, que subjuga o presente sem dó nem piedade, transformando o novo em velho em questões de meses ou, em alguns casos, dias. Pobre alma que adquiriu o Discman, substituto legítimo do walkman; que adquiriu, para felicidade da família, o vídeo cassete de 7 cabeças; ou a “revolucionária agenda eletrônica”; não contava com a velocidade das novidades.
            Nunca se usou tanto o pretérito imperfeito na história. Isso é irrefutável. Cada vez mais, o pretérito imperfeito vem sendo obrigatório para um maior número de pessoas que, sem possibilidades de recusa, acabam o usando, mesmo sem conhecer a nomenclatura exposta exaustivamente em aulas expositivas do 6º ano do Fundamental ao saudoso 3º ano do Ensino Médio. Não há escolha. Antes artigo de luxo guardado àqueles que possuíam as alcunhas de tios, pais e avôs, agora circula livremente na boca dos recém iniciados.
Está na hora de criarmos um novo tempo verbal: o tempo dos velhos que ainda são jovens. Tempo verbal que dê conta de explicar que inacreditáveis 20 anos atrás o celular era artigo de luxo e o computador visitava pouquíssimas residências; que a internet não voava e visualizar uma imagem era um exercício de paciência e determinação; que os disquetes – como explicar o que eram e como funcionavam? - emperravam constantemente, que o papel carbono era um sonho, que mobilidade tecnológica significava possuir um televisor de 5” preto e branco que você podia ligar ao isqueiro do carro.

            Infelizmente, meu avô não está mais na frente de casa sentado em sua cadeira com seu kit de chimarrão, deve estar tomando chimarrão em um lugar desconhecido inundado de pretéritos perfeitos e imperfeitos. Contudo, se ainda aqui estivesse, e eu não completasse meus dias de maneira alucinada com horas e mais horas de aulas, estaríamos os dois, comendo bolachas e bolos amanteigados repletos de pretérito. 

terça-feira, 8 de março de 2016

Ela está à frente

        A melhor definição para uma mulher é a não definição. Definir uma mulher é como tentar calcular o incalculável, dimensionar o não dimensionável. Mulher é, antes de tudo, essência, força da natureza em sua plenitude, a magia das possibilidades da vida.
Mulher trabalha em três turnos, não apenas no registrado em sua carteira de trabalho, mas, sim, nos problemas e dificuldades da vida. Acorda cedo todos os dias com o rosto amassado, sono e cabelos desalinhados, contudo já desperta mulher, vaidosa, com gestos leves e harmoniosos. Já desperta esposa, mãe, dona do lar, diretora de empresa. É pela manhã que a mágica tem início.
A mãe não assume o papel materno quando está diante dos filhos, o faz no momento em que abre os olhos. É mãe da primeira até a última hora do dia. Carrega seus filhos permanentemente em seu peito, apoiados sustentados por seu coração. Transforma-se em porto seguro quando precisa, endurece o coração quando necessário; em outros momentos, é a personificação do amor e da sensibilidade, adapta-se como uma camaleoa.
A mulher é profissional não apenas quando está em seus saltos altos, é profissional com pés descalços, organizando a logística do lar, a logística da vida. Como a mulher é sinônimo de excelência em administrar a vida! Não há barreiras intransponíveis ou dificuldades insolúveis, o sexo feminino se diverte com obstáculos, tripudia com indelicadezas, dança lindamente driblando o imponderável. Toda mulher deve nascer com um antivírus capaz de neutralizar de maneira magnífica e sublime os males do mundo.
Filha, mãe, avó. A mulher possui mil facetas, todas elas somente suas. Todo homem, por mais difícil que possa parecer, no fundo no fundo, inveja a mulher e sua força. Inveja a liberdade de seus gestos, a despreocupação de seu andar, o descompromisso de seu pensamento, a competência em tudo que faz, a gratuidade e autenticidade de sua risada. Ele deseja ter a mesma força para sobreviver aos percalços da sociedade, ao descaso, ao desrespeito, ao machismo que não existe, à provação do ser mulher em uma sociedade injusta.
Por trás de um grande homem, não existe nenhuma mulher, pequena ou grande, elas já estão à frente, muito à frente.

domingo, 6 de março de 2016

Difícil mesmo

Quando era pequeno, na fase em que ainda não podia assistir televisão após as 22 horas sobre pena de uma reprimenda paternal, difícil mesmo era cavar uma vaga na equipe de futebol da sala de aula e fazer prova de matemática com aquelas contas com x, a, b, c e outras infinidades de letras. Com passar do tempo, descobri que essas coisas eram difíceis, mas os problemas crescem junto com você, mudam, transformam-se e resumem-se em uma única coisa: conviver com as ideias desfeitas.
            Desfazer uma ideia demanda um esforço monumental, causa sofrimento e, por vezes, uma pequena tristeza. Vivemos uma escravidão por vontade própria, corporificamos as ideias em nossas mentes, criamos expectativas sobre pessoas, situações e momentos. Um pai, ao ter o seu filho, idealiza uma vida inteira, tanto sua quanto ao de seu descendente; um trabalhador, ao iniciar em um novo emprego, prevê toda uma gama de possibilidades dentro da empresa; um casal, em início de relacionamento, elabora um mapa de previsão do futuro par: como o companheiro ou companheira agirá diante de uma determinada situação, quais palavras usará ao declarar o possível sentimento amoroso que sente, como resolverá um desentendimento. Criamos expectativas a respeito da vida, sobre nossa trajetória, do nascimento até o último suspiro. Entretanto, constantemente, somos confrontados com a realidade e sua incrível capacidade de diferenciar-se de nossas previsões. E aí, surge o problema.
            Difícil mesmo é aceitar que as coisas não são, ou não serão, da maneira que você desenhou em seu protótipo mental. É saber que a janta programada incessantemente em sua cabeça por horas a fio não sairá exatamente como o esperado - um prato ficará um tempo demasiado no forno, um dos presentes passará mal, a louça especialmente reservada escorregará prontamente da mão da solícita amiga que se ofereceu a lavar a louça. É saber que o seu esforço profissional poderá não receber os louvores e saudações imaginados durante a elaboração.
Difícil mesmo é saber que seus planos de vida não serão nada pontuais e o ponto da vida que você imaginava estar ocupando aos 35 anos pode chegar somente anos mais tardes ou, com a mesma probabilidade, nem mesmo chegar. É saber, e isso é mais difícil ainda, que a pessoa que você imaginava não existe - que o companheiro pode passar bom tempo de seu domingo em frente à televisão assistindo a 22 homens correndo atrás de uma bola, ignorando o sol e a linda tarde; ou que a companheira não dá a mínima para esse futebol. É saber que a pessoa ao seu lado, em um desses absurdos da natureza, não pensa e não compartilha dos mesmos ideias que os seus, é saber que ela possui uma história e sonhos próprios.
            Difícil mesmo é lembrar diariamente a necessidade de relativizar e aceitar a imperfeição do mundo, desde as pessoas aos planos idealizados. Contudo, antes de qualquer coisa, é ter a consciência das imperfeições em nossos planos e, principalmente, em nós mesmos. Quem sabe não seja essa a chave para a tranquilidade e, consequentemente, da felicidade.