Tropicou
no primeiro degrau, o que ocasionou um novo torpeço no seguinte e,
consequentemente um escorregão no terceiro que culminou em uma queda nada
teatral na areia úmida da noite. Era a coroação daquela noite desastrosa, olhou
para a garrafa tombada ao lado, ainda conservava uma essência de líquido. “Ao
menos isso”, pensou. Um grupo de jovens passava por ali e gritou algo que
denegrisse um homem bebendo mais do que deve em uma noite de quarta-feira.
Preparou-se para revidar o insulto quando deu de cara com um casal que o olhava
do alto daquela perfeição amorosa com repugnância, como se olhassem uma cena dantesca.
Apoiou uma das mãos na areia, afundando-a o bastante para a areia alcançar os
seus pulsos, e iniciou o longo processo para levar o seu corpo a posição ereta.
O movimento envolvia apoiar a outra mão na areia fofa para produzir uma base na
qual o tronco pudesse sustentar-se. Na primeira tentativa, o braço esquerdo
cedeu e ele sentiu novamente o gosto crocante da areia entre os dentes, a língua
e toda a sua boca. Repetiu o movimento com melhor desempenho logo em seguida,
ou assim lhe pareceu fazer, diferentemente do homem que vendia abacaxis e
cansou-se de assistir as tentativas inúteis do pobre bêbado de levantar de sua
prisão momentânea.
Já
com o corpo livre da areia úmida, abaixou-se com esmero para apanhar a garrafa provisoriamente
abandonada na areia. Ignorando os apelos do vendedor, arrastou os pés com
enorme esforço, emaranhando-se na areia como se estivesse percorrendo um
pântano pegajoso para a escuridão que se apresentava à sua frente, usando como
norte de sua bússola a sinfonia noturna das ondas que trabalham eternamente. Parou
bruscamente ao sentir o primeiro contato da gélida água com seus pés. A areia,
recém embebida com a liquidez, engoliu seus pés rapidamente, fazendo com que
perdesse o frágil equilíbrio que o mantinha de pé, acarretando em uma queda desassistida
do mundo e apenas presenciada por um distraído caranguejo que, curiosamente,
esbanjava equilíbrio deslocando-se ao contrário do mundo sem derrapar em
nenhuma oportunidade. Deixou-se pesar sobre o chão arenoso, a cabeça girava
constantemente, protestava contra si mesmo parado no nada, discutia e lamentava
o acontecido. Como ela pôde fazer aquilo com ele? Balançava a garrafa
debilmente em direção à escuridão que se apresentava diante de si. Experimentou
levantar do chão da mesma maneira que fizera nos degraus de instantes atrás,
mas não conseguia.
Por
um instante, o cheiro da bebida foi substituído pelo aroma da água, que o
encharcava as roupas e já alcançava o bolso da calça. A maré estava subindo,
não havia dúvidas. Mas não se importava. Idealizara-a em sua cabeça, desenhara-a,
venerara-a como uma deusa inalcançável, demandara uma parte da sua vida em um
culto à imagem dela. Elaborara o plano perfeito, imaginara a resposta perfeita,
filhos, casa, família e todos as bonanças do amor verdadeiro e puro. Tudo em
vão, tempo perdido, o destino brincara com ele, chacoalhara sua vida como a um
brinquedo infantil qualquer. Logo com ele, logo com ele. A garrafa lhe pareceu,
uma vez mais, apetitosa e convidativa, retirou-lhe da água que já submergia a
garrafa até o rótulo, um gole violento desceu-lhe o ventre com a mesma
violência que o que vira à noite atacou-lhe o coração. Conservava na mente,
mesmo que contra a vontade, como uma invasora indesejada que recusa
ausentar-se, a imagem dela nos braços de um qualquer, alguém que não a
valorizava como deveria, como merecia. Lançou as mãos na escuridão na esperança
de desvanecer a imagem que enxergava, como se ela fosse um mural diante de si,
porém não conseguira. A imagem permanecia lá, os dois juntos, será que riram dele?
Não, nem o conheciam para sorrirem. Será que ela sorriu? Será que gostou das
piadas? A imaginação de como haviam ficado juntos, o que fizeram, o que
falaram, o que passava na cabeça dele ao se despedir destruía lhe a paz. Provavelmente
para ele foi apenas um momento fugaz, um bom divertimento, uma boa distração na
vida. Pensou nas riquezas que teve em mãos e que não valorizou. Será que aquele
estranho pensaria o mesmo amanhã? Sabia que não.
Uma
onda súbita o derrubou. Conseguiu salvar o restante do líquido da garrafa da
invasão da água salgada. O mesmo não conseguiu em relação a si mesmo. Estava
encharcado. As lágrimas irromperam e, dessa forma, tinha em seu rosto as
lágrimas fundindo-se à agua do mar e a areia. Desejava possuir o poder para
regredir a maré que subia e o envolvia em água e escuridão, o poder para
clarear o dia mais uma vez para ter a oportunidade de ver a imensidão que
estava inacessível diante de si, queria regredir o tempo, desfilar por entre as
tristezas e alegrias, as horas e os minutos, retirá-la daquele quarto, impedira
de entrar, abordá-la anos antes, antes de tudo. Contudo a verdade era que restava
apenas aquela sensação, aquele momento. Chorou uma vez mais, por um instante,
teve a impressão de ter gritado algo tão alto que as ondas, em sinal de solidariedade,
silenciaram-se, cessando por um instante os seus trabalhos. E foi no silêncio
momentâneo que tentou visualizar uma vida, uma continuação, entretanto o que
viu foi tristeza.
E
o mar, finalmente, apiedou-se do pobre desiludido. Ergueu-o com cuidado, sabia
como lidar com os desassistidos de felicidade, consolara aos homens desde o
princípio dos dias, reforçara-se muitas vezes nas incontáveis lágrimas que os
homens nele derramaram; marinheiros, viajantes, esposas e crianças. O homem
estava pesado, carregado pela tristeza e pelo o que não foi, deslizou o corpo
aos poucos, trazendo-o lentamente, como a um amigo, como se o recebesse como um
velho morador. Tomou cuidado de não o fazer sofrer, separou-o da garrafa que
lhe denegria a imagem, ajeitou-lhe os cabelos.
Porém, todos sabem, ao mar o
homem não pode adentrar sem uma ruptura, sem um instante de dor, como um
portal, uma última tarefa. Em algumas vezes, despojado de qualquer tipo de
desejo cruel, o Mar, um tanto desajeitado com esses estranhos sem guelras ou
nadadeiras, solicita socorro à sua rainha. E, naquela noite, mais uma vez ela
atendeu. Ergueu-se imponente entre uma linha de ondas, deslizando lentamente na
direção do infeliz apaixonado. Apesar de seu poder e distanciamento para as
coisas terrenas, sentia um aperto no peito ao enxergar as lágrimas que corriam
daquele rosto desprovido de luz. Acariciou lhe as faces de forma amorosa
enquanto o fazia deslizar lentamente mar adentro. O Mar, obediente, recebeu-o
como um dos seus, sem dor, sem sofrimento, sem provação. Já havia sofrido a
maior das provações, sofrer por amor.
Ao
fundo, debruçado no balcão de sua banca, o vendedor de abacaxi estranhou o
silêncio do mar. Aguçou a visão inutilmente mirando o horizonte no intuito de
difundir alguma imagem que denunciasse o que ocorria, mas não conseguiu. Pensou
em descer na areia para verificar, pois parecia ouvir uma voz feminina ecoando
uma linda canção, mas desistiu assim que uma onda quebrou o silêncio, seguida
de outra, e outra, e, assim, o Mar seguiu seu trabalho ininterrupto e
solitário.