Prorrogação
Meu pai abriu o jornal naquele domingo, como fazia todos os
dias em que estava em casa, sempre ao lado do velho fogão à lenha. Estampada na capa, estava a chamada para o
clássico Gre-Nal. Éramos lideres do campeonato, invictos. Eles eram os atuais
campeões brasileiros e da Copa do Brasil. Jogão – e bem na casa deles – com
perspectiva de estádio lotado, e melhor, nós iríamos também. Minha mãe torceu a
boca para isso. Meu pai não deveria sair em um dia como aquele, mas teimoso,
foi incisivo ao logo dizer: “vamos eu e
o guri!” Eu tinha meus quinze anos de idade e já havia ido a alguns jogos no
Beira-Rio. Meus pais achavam perigoso, portanto só ia junto com um responsável,
no caso, meu pai. Nunca pude ir com meus amigos, queria ir com eles...
Morávamos em uma casa confortável no Santa Fé. Morava em
frente a uma pracinha onde passava as tardes jogando bola e, às vezes, fumando
cigarro escondido – pequeno delito da juventude, uma aventura em pequenas
baforadas. Estudava perto de casa e aquela rotina me era boa. Meu pai , antigamente, jogava bola comigo naquela praça, íamos todos os dias, mas hoje não
é mais possível. Como nos afastamos de nossos pais! O almoço foi feito pela
minha mãe, extremamente contrariada. Gre-Nal por si só já era perigoso, ainda
mais no Olímpico. Seriam 40000 contra uns 4000. Na verdade, eram uns 40000
contra uns 10000, mas isso não fazia diferença. Mamãe não entendia que o sonho
de todo moleque da vila era ir num Gre-Nal, ainda mais na casa do adversário. A
tensão, o desafogo quando o time marca, os gritos. O domingo estava com uma
eletricidade no ar, um algo mais que só quem vive essa expectativa sabe
entender.
Os jornais aconselhavam aos torcedores do Inter a chegarem
cedo. O pai estipulou que saíssemos às 12 horas e 15 minutos. Ele pegou sua
almofada com o símbolo do saci, eu peguei um jornal. Fomos para o carro. Estava
chovendo e mamãe deu um tchau que mais parecia uma reprimenda nele. Eu estava eufórico, sentei no banco do carona
e me senti um homem pleno. Éramos eu e meu pai, como dois cavalheiros
destemidos caminhando para a batalha. Ligamos o rádio e o assunto era o
Gre-Nal. Como parar a dupla de ataque: Fabiano e Christian? E a estreia do
badalado Beto? O Grêmio era um time milionário e consagrado, o Inter era a
febre do momento, havíamos feito quase todos os pontos possíveis nas primeiras
rodadas do Brasileiro. Discutia com ele as táticas e a melhor equipe a colocar
em campo e ele surpreendentemente concordava e discutia muito. Naqueles dias,
isso não era comum, meu pai não falava muito e por mais que eu desejasse passar
a imagem de homem feito, sentia muita falta de nossas conversas. Mas, no fundo, eu entendia seus motivos.
Chegamos ao estádio cedo, mas já existia movimentação.
Colocamos nossos casacos para escondermos nossas camisas. Virei para pegar os
guarda-chuvas no banco de trás e ele interrompeu- me, questionou qual era a graça
de olhar jogo com guarda-chuva, torcedor de verdade não se importava em se molhar.
Eu sorri levemente, na verdade queria gargalhar. Olhar jogo na chuva com meu
pai era bom demais. Saímos como heróis em meio à chuva. Gremistas passavam
gritando, grupos formavam-se em volta das carrocinhas e bares. Era o Gre-Nal
ganhando vida. Capas de chuva sendo vendidas. Desviei o olhar dele quando o
moço nos abordou, não queria capa, meu pai sorriu sozinho e sem olhar para mim
balbuciou que aquele dia não teríamos capa. Fomos direto para a zona da torcida
visitante e aos poucos o cenário mudava, ao invés do azul e preto, predominavam
o marrom escuro dos militares, e suas caras pouco amistosas de estarem
trabalhando em um domingo de chuva, e somente algum leve vestígio do vermelho
podiam ser vistos. Os ingressos haviam sido comprados previamente por ele.
Fomos direto para a entrada. Ele tinha posto a carteira e documentos envoltos
em um saco plástico, teve dificuldades para tirar os dois ingressos, fiz menção
de auxiliá-lo e ele prontamente acenou negativamente com uma das mãos. Um grupo
de torcedores gremistas passava ao fundo gritando palavras de ordem e dirigindo
todos os tipos de “elogios” para nós colorados.
Entramos no estádio e meu pai fez sinal para que fôssemos à copa. Ele comprou uma cerveja e um refrigerante para mim. Tentei
protestar contra o fato de ele comprar a tal cerveja, ele sabia que não deveria
tomar. Ele olhou para mim e limitou-se a perguntar se havíamos vindo a um jogo
ou a uma peça de teatro da escola. Eu sorri, e afirmei que era em um jogo.
Fomos para a área coberta destinada a torcida do Inter. Ainda havia espaço,
pois era cedo, e as torcidas organizadas não haviam chegado.
Sentados naquele mármore frio, que ficava ainda mais gelado
por ser inverno, aguardando pelo início
da partida, conversamos intensamente. Ele me contou dos jogos que presenciou,
das vindas ao Olímpico, das algazarras que fazia, de ter visto o Inter
conquistar o tricampeonato brasileiro, aquilo sim era time. Contou-me das vezes
que veio foi ao Beira-Rio com sua antiga namorada, a qual nunca havia comentado
antes, do dia em que conheceu minha mãe. Olhou-me nos olhos através de seus
óculos, ele estava magro, um resquício do homem que havia sido um dia. Falou-me
que a vida era a vida, que tentar entendê-la é como escolher o próprio
presente. Que o divertido de tudo está na incerteza, no fato de que não existe
fórmula mágica, não há caminho melhor, há apenas vida e que eu deveria vivê-la
da melhor maneira possível. Era um misto de alegria e tristeza, meus olhos
marejaram, mas eu segurei as lágrimas. Olhei em volta e o local já estava
cheio, havíamos conversado por duas horas, não lembrava a última vez que havia
feito isso com ele, ou melhor, não lembrava se algum dia havia feito. Ele
levantou e pediu para que eu guardasse seu lugar. Saiu a caminhar, como um
espectro no meio da multidão. Por quê? Minha mãe perguntava-se constantemente
isso. Tanto eu quanto ela nunca descobrimos a resposta.
Ele voltou, a chuva cessou e o jogo iniciou. Eram quatro
minutos de jogo quando Christian aparou divinamente o cruzamento do paraguaio
Enciso e abriu os trabalhos. Gol do Inter. Explosão da torcida. Nos abraçamos
fortemente e lembrei dos abraços que dávamos anos antes, quando correr para abraçá-lo
após um gol feito no tanque de lavar roupa era o fato mais natural do mundo.
Uma briga teve início no campo, e de repente tínhamos dois jogadores expulsos de
cada lado. Ele pulava, vibrava, xingava, vivia. Já fazia algum tempo que ele
não exercitava o exercício da vida. Por um instante eu esqueci do jogo, ignorei
o gol feito por Fabiano apenas para admirar a intensidade com que ele bebia
daquele momento. Será que ele que me levou no jogo ou eu que o levei? Ele que
quis ficar na chuva, que pulava, que vibrava, que xingava. Pensei que nada podia
ser mais justo, ele me levou para passear nessa existência chamada vida, o que
era um jogo para mim. Sim, aquele não era mais o meu primeiro Gre-Nal, era o
Gre-Nal dele.
Correu para a copa ao fim do primeiro tempo. E confesso que
vê-lo correr foi mágico. Voltou com uma cerveja, um refrigerante e dois cachorros-quentes
de campo de futebol, pão cacetinho, uma linguiça e muita mostarda. Comemos e ele conversava freneticamente sobre
o jogo. Falava sobre a possibilidade de o Inter fazer mais, de fazermos uma
goleada histórica no rico time do Grêmio. O segundo tempo começou como terminou
o primeiro. Ele berrando e estampando a personificação da felicidade. Seus
olhos transbordavam vida, era lindo de ver. Eram uns vinte minutos do segundo
tempo e Fabiano decidiu o jogo, em 7 minutos marcou dois gols e a vitória virou
goleada, 4 a 0. Homens desconhecidos abraçavam- se, alguns mais eufóricos
choravam, meu pai veio na minha direção, seus olhos denunciando uma forte
emoção e me abraçou forte. Senti seu frágil corpo desprender a mesma força que
eu tinha guardada na lembrança. Abracei-o com a mesma intensidade, e aumentei a
carga, e o medo de perdê-lo, no momento, apareceu forte. Uma lágrima correu
sem que eu pudesse conter. Apertei com força, como se pudesse extrair aquela
doença de seu corpo ou quem sabe pegar uma parte dela para mim e talvez
pudéssemos viver os dois dividindo o fardo. Senti raiva daquela doença e do que
ela estava fazendo com aquele que para mim era um homem intransponível, queria
berrar, chorar, dizer o quanto eu o amava, mas penso que ele sabia de tudo
isso. E ele abrandou o abraço, ambos viram as lágrimas nos olhos um do outro,
mas como bons cavalheiros, ignoramos o fato. Ele abraçou minha cabeça e a
forçou contra seu peito, e assim ficamos. Do alto dos meus quinze anos, cheio
de vergonha, querendo ser homem, o que mais desejei naquele momento era voltar
a ser criança. O Inter fechou o jogo em 5 a 2. Mas para nós o jogo encerrou nos
4 a 0, naquele abraço, o restante foi êxtase, como uma ressaca emocional que
foi se curando até o apito do árbitro. Fomos abraçados para o carro. Entramos
em silêncio. Quando chegamos em casa, ainda antes de entrarmos, ele parou na
porta. Voltei a visualizar sua aparência frágil. Seu rosto voltou a ficar
pálido. Olhou para mim, e por um instante por detrás de seus óculos, os olhos
deixaram escapar uma faísca de alegria, um brilho especial, botou a mão em
minha cabeça e disse:
- Obrigado pela tarde, pai te ama!
Aquele foi seu último Gre-Nal, e a última lembrança verdadeira que tenho de meu pai. Assim como naquele jogo, para ele não houve prorrogação.