quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Feliz Ano Novo

               E 2015 chega ao fim. Ano terrível, alguém foi demitido de seu emprego e está tentando se reerguer economicamente, culpa desse ano maldito, apesar de inúmeras pessoas perderem seus postos de trabalho constantemente; alguém, mais um ano, restou solitário esperando o amor que não chega, provando que a sua vida é sem sentido, apesar de todos nascermos sozinhos e termos uma vida inteira pela frente repleta de possibilidades; alguém perdeu um ente querido, um artista preferido ou qualquer pessoa importante para sua vida, uma lástima inaceitável, apesar de sabermos que as pessoas, inclusive eu e você, fatalmente morrem; entre tantas outras infelicidades.
                A vida não é uma trilha contínua e programada. Não é boa nem ruim, não possui uma pré-disposição para a maldade. Por isso, se pudesse desejar algo para o ano que se inicia, seria paz. Não a paz mundial, apesar de adorar a ideia, sei não ser possível, refiro-me à paz de encarar o que vem pela frente de acordo com a intensidade que a situação pede. Que as dificuldades que aparecerão, elas vão aparecer, possam ser vivenciadas, sim, precisamos vivenciá-las, da melhor maneira possível. Desejo que as dificuldades não sejam suficientes para fazer eu esmorecer ou desistir de aproveitar cada segundo do ano que chega. Que não esqueça o ano que finda, mas, sim, use-o como parâmetro, seja para coisas boas ou para ruins.
                Desejo, antes de mais nada, que em momento algum, durante o ano de 2016, esqueça que o melhor de 2016 será estar vivo.


Um feliz Ano Novo a todos!!!

domingo, 27 de dezembro de 2015

O marinheiro e a sereia


                O navio interrompia o marasmo azul separando as águas com um ímpeto invejável impulsionado pelo vento que empurrava com braços fortes as velas que se inflavam, transformando a embarcação em um imenso cisne que deslizava em direção ao seu destino. Os homens trabalhavam de forma constante e ininterrupta, alternando entre as rotinas que se apresentavam, um tanto já ressentidos da ausência de novidades. Os ânimos, após três semanas ao mar, estavam difíceis e sensíveis a qualquer tipo de estímulo negativo, não raro, uma briga irradiava nos mais variados pontos do navio, tendo que ser apartada de maneira ríspida e, por vezes, violenta pelo contramestre.
                E assim a barco ia em direção do sol que surgia e apresentava seus primeiros raios, que transformavam o antes azul incólume em uma profusão de cores. Entretanto, não só para o sol apontava a proa, distinguia-se ao longe um aglomerado de rochas que, em seu maior ponto, formavam uma pequena ilha habitada por albatrozes que recebiam a luz matutina em suas penas.
                Foi quando chegaram próximos que notaram uma presença a mais entre as aves, os cabelos cinzas caíam delicadamente ao redor dos olhos, como se contornassem o rosto que guardava seu maior tesouro. Seus olhos eram um misto de maldade, bondade, malícia e ingenuidade. Seu olhar era profundo e penetrante, e, antes que qualquer tripulante pudesse fazer algo para evitar, um pobre marinheiro jogou-se na água. O que se passou em sua cabeça, ninguém soube dizer, na verdade, hipnotizou-se pelo olhar, ignorou o fato de ela estar isolada em uma ilha de rocha em meio às aves, além disso, pouca atenção deu à cauda e às barbatanas, às quais culminavam o lindo corpo perfeitamente desenhado pela natureza com esmero e beleza incomparável. Mal dera as primeiras braçadas, uma névoa repentina se interpôs entre ele a embarcação, o seu mundo já não era mais o mesmo do restante dos marinheiros. Estava só diante de sua musa inspiradora.
                Com esforço, aproximou-se da moça que o olhava diretamente nos olhos sem desviar um minuto de atenção. Aquele olhar lhe embrulhava o estômago, deixava-o sem chão, fazia-o sentir desajeitado, exposto. Contudo, estranhamente, aquilo lhe fazia bem, aumentando o desejo de ali permanecer. E assim o fez, passou horas conversando com ela, e elas pareciam minutos, dada a afinidade que sentia ali. As horas passaram, viraram dias e, de repente, tornaram-se dias, semanas e, por fim, meses. Foi após um ciclo completo de estações, um encontrar-se de duas almas, que a sereia interrompeu o apogeu, alegando que o marinheiro tinha uma vida em terra, uma família, que ela, enquanto habitante dos mares, também possuía seus laços afetivos, portanto aquela relação não teria um futuro. O pobre homem, inebriado, tentou argumentar, mas sua voz se perdeu junto ao vento que empurrou sua pequena embarcação para a costa em um verão quente e úmido. Aportou com o corpo, mas não com a alma. Passou dois meses em casa, porém a sereia o perseguia em seus sonhos. Foi ao bar tentar afogar as mágoas. Sentou-se ao lado de seu companheiro de navegações, contudo, antes de relatar a sua história, o amigo informou-lhe que partiria novamente ao mar. Era a terceira vez em seis meses. O marinheiro surpreendeu-se com a postura do amigo, como passar tantas horas no mar sem o corpo reclamar o contato da terra? A reposta terminou com o restante da paz que guardava. O amigo estava enfeitiçado pela sereia, e o pior, passava dias sentado junto a rochas acompanhado da musa. Um sentimento novo irrompeu no peito do marinheiro, achava que havia estabelecido uma ligação mágica com a moça dos olhos mais penetrantes que conhecera. A verdade do amigo, de maneira sórdida e cruel, conseguira destruir o castelo que havia idealizado. Passou a lhe fazer companhia a sombra da rejeição.
Sem mais suportar, foi a procura da sereia. Na primeira expedição disponível, prontificou-se. Encontrou-a escorada nas rochas, os cabelos lindamente soltos, como sempre, estava linda e radiante. Conversaram por horas, ela não admitiu o acontecido com o amigo, apenas informou-lhe que depois que o conhecera, não conseguira mais enfeitiçar qualquer outro marinheiro, porém garantia que não poderia mais encontrá-lo. O marinheiro, desesperado, perguntou-lhe por que ela não havia feito o mesmo com seu amigo. A sereia mirou os olhos fixamente no marinheiro, estavam tristes, sofrendo. Antes dela virar a cabeça e lançar seus cabelos ao ar e mergulhar no lençol celeste sob eles, o pobre marujo vislumbrou uma lágrima escorrer em um daqueles olhos perfeitos.
Sozinho, desiludido, o marinheiro nunca mais voltou de espírito para o continente. Os dias passavam intercalados entre pensamentos com a sereia e as horas que passaram juntos, e com a imaginação dela passando momentos especiais com o amigo, momentos que negara para ele. A moça, por sua vez, nunca mais conseguira realizar aquilo que a natureza havia lhe destinado, nunca mais conseguira sentir ânimo com outro marinheiro, assim, abdicou do direito de subir a superfície e mergulhou para sempre para as profundezas dos mares.

                O marinheiro não conseguiu mais viver no continente. Em sua última viagem, nadou em direção as rochas para encontrar sua alma, que o aguardava sentada no mesmo ponto que anos antes ele encontrara a sereia. E mais uma vez juntos e, ao mesmo tempo, solitários, corpo e alma, puderam cantar seu lamento para o restante dos tempos.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Revitalização



             Foi com espanto que receberam a notícia: a vila seria desapropriada. O espanto, na verdade, era relativo. Um ano antes, figuras estranhas passaram a destoar do cenário habitual da pequena e esquecida vila de São Roque, com seus ternos alinhados e sapatos lustrados, apontavam para cima, para baixo, para a direita, para a esquerda, como se regessem uma sinfonia sem músicos. Cada gesto era intercalado por olhares alvoroçados para papéis que, com o transcorrer do tempo, irrompiam em maior número naquelas mãos limpas e intocáveis pelo areião bruto que se estendia pelas ruas, calçadas, casas, pés, mãos e rostos da vizinhança. Seu Dedé foi o primeiro a levantar suposições sobre as visitas:
- Isso aí, não é coisa boa, não. Ouvi dizer que na Alemanha foi assim também, mediam aqui, mediam ali, depois colocaram muro e pronto, todo mundo preso.
            Outros diziam:
- Que nada, isso aí é o governo que tá preocupado com a gente. Todo mundo vai te casa nova.
            Os mais alarmistas vociferavam:
- Eu vi isso na TV. Esses homens de terno chegam assim, de mansinho, quando vê, tão tomando conta de tudo.
            Entretanto, em meio a todo burburinho causado pelas visitas, foi no jornal que a coisa tomou forma. Era uma manhã de sábado como toda outra quando Seu Cristovão, que recebia o tratamento de Seu por ser o dono da principal venda da vila, anunciou aos berros, com o jornal na mão, a notícia: construiriam um shopping na vila.
            A notícia pegou a todos de surpresa, “um shopping, aqui?”. Em pouco tempo, o fato ganhou forma, corpo e, por fim, vida por entre as vielas alaranjadas de São Roque. Alguns temerosos, outros desconfiados, mas a maioria eufórica por aquilo que, segundo eles, transformaria a vida de todos.
- Um shopping aqui do ladinho de casa, já pensou? Fim de semana, poder ficar no ar condicionado, sentado naqueles bancos chiques, comendo sorvete. Vamos ser chiques, Seu Cristovão. Me vê meio quilo de coxa e um quilo de salsichão que vamos comemorar.- festejava Clotilde.
            Logo, as emissoras de tevê passaram a frequentar o local para reportagens e entrevistas. E, assim, os moradores se deram por conta do que haviam negligenciado na reportagem do jornal: o shopping seria mesmo construído ali, entretanto não seria com eles. Foi um pandemônio, os moradores iam em blocos ao mercado de Seu Cristovão, indagando o que seria de todos. O pobre homem, com lágrimas nos olhos, afirmava que não sabia nem mesmo o que seria dele. Recém havia investido o pequeno lucro do último ano na aquisição de uma máquina de assar frango, a primeira da história da vila, que havia vendido 34 frangos no primeiro fim de semana de funcionamento. O fato era que os moradores seriam transferidos para o outro lado da cidade, próximos de um bairro residencial de classe média, onde, com o dinheiro da indenização que receberiam, teriam casas com toda a estrutura necessária para viverem. O problema era que muitos dos que ali estavam moravam em residências delimitadas pelo grito e vontade. Com papel passado, eram poucos.
            Enquanto o tempo andava e a terra vermelha que cobria a vila molhava e secava, a questão virava tema central nas discussões midiáticas. Bartolomeu, filho de Lurdes, moradora do bairro, e que cursara, há dois anos, três cadeiras do curso de Direito, resolveu tomar a frente da união dos moradores e passou a ser figura recorrente na mídia. A mãe orgulhosa chamava a todos os vizinhos para assistirem o filho na televisão e colava na parede da sala todas as reportagens de jornal em que o filho era mencionado.
            Após um ano de discussões e pressão pública, um caso de assassinato aconteceu no bairro, criminosos sequestraram e levaram um casal para o interior da vila, sem piedade, assassinaram eles e queimaram os corpos. O caso chocou a todos da cidade, inclusive os residentes na vila São Roque, que exigiram policiamento e ação do poder público. Porém, no restante da população, a revolta gerou o sentimento que era mais do que na hora de acabar com aquela aglomeração. E foram às ruas exigirem a retirada daqueles casebres e uma revitalização urgente do local. E assim, assinou-se o decreto: as casas legalizadas seriam desapropriadas para a construção de um novo centro de compras que traria benefícios sem fins para a cidade. Quanto aos proprietários, seriam realocados em uma área do governo onde receberiam uma moradia digna.
            Foi assim que Seu Cristovão assistiu seu mercado ser destruído em três golpes da enorme máquina de aço; presenciou seus vizinhos ficarem desamparados; precisou se habituar com a casa nova, com a vila nova, com o pouco movimento no mercadinho, pois poucos moradores realmente possuíam casas regularizadas, com a venda da sua máquina de assar frangos e, depois, com a venda das poucas mercadorias que restavam.
            Sem o mercado, abriu mão do “Seu” e tornou-se cristovão, apenas mais um cristovão. No terceiro mês procurando emprego, conseguiu uma vaga nos serviços gerais do shopping que abriu.
Agora, vez ou outra, ele vai na sorveteria do shopping e pede um desses sorvetes enormes e leva para Clotilde. Hoje sua colega de serviço, ela faz questão de, todo domingo, após um longo dia de serviço, sentar em um banco, como se estivesse desfrutando daquele ambiente como os outros que passam com suas sacolas recheadas de roupas que valem todo o salário de um mês, sorrindo e agradecendo a existência daquele lugar. Antes de dar a primeira colherada, ela sempre sorri, olha para Seu Cristovão e diz:
- Eu não lhe disse, Seu Cristovão? Agora só falta ser chique.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Sabe como é, né?



- Você nem me ligou.
- Pois é, precisamos conversar.
- Ai, lá vem bomba.
- Calma, antes de mais nada, saiba que você é muito especial.
- Tá, mas...
- Olha, eu até queria, mas você precisa entender.
- Entender o quê?
- Não dá, não podemos ficar juntos.
- Por quê?
- Como posso dizer...eu não sou assim, mas as pessoas são. São maldosas, falam por aí...sabe como é, né?
- Não sei como é! O que tem as pessoas? O que elas falam?
- Ah, não vem ao caso e...
- Como não? Está terminando comigo devido a isso, tem tudo a ver com o caso.
- Sabe a Pri?
- O que tem a Pri?
- Pois é, ela falou que já ficou com você.
- Sim, mas foi há muito tempo, em uma festa, foi algo banal.
- Exato, o problema é a banalidade. Para ela, você foi apenas uma coisa banal. Sempre que eu passar por ela, estarei com isso esfregado na minha cara. Não dá, não posso. Sabe como é, né?
- Espera aí. Você está assim por uma coisa que aconteceu há muito tempo?
- Mas é que não foi só a Pri, teve a Pri, a Renata, a Júlia e a Flavinha, só para falar de minhas amigas próximas.
- E você? Quer que eu nomeie meus amigos e conhecidos que já ficaram com você? Não há nem comparação.
- Eu entendo, veja bem, sou estudada, esclarecida, mas a sociedade é cruel. Até algum tempo atrás, homem esperava a mulher para casar. Se fico com você, imagina o que vão falar: olha lá, a Lurdinha com o Márcio! Todo mundo já andou com o Márcio. Sabe como é, né?
- Isso é um baita de um feminismo hipócrita!
- Não leva para esse lado, não. Procure entender. Ah, Márcio, não vai chorar, por favor.
- Entender? Quer dizer que vocês podem tudo e os homens não podem nada?
- Não é isso. Olha a televisão, a novela. Quer saber? Eu acho que você não quer entender. E eu não ficarei discutindo, gosto muito de você, mas o que minha família iria pensar? Infelizmente, tenho família, nossos filhos teriam avós, tias, mães de coleguinhas que já teriam ficado com você. Já imaginou a vergonha? Olha, do fundo do coração, acho, realmente, que você precisa se dar mais o valor. As mulheres não te dão o valor por isso, olha a roupa que você está usando, ou que não está usando, parece que estamos em um daqueles seriados de praias paradisíacas, em que você está fazendo o papel de salva-vidas. Você sempre parece um salva-vidas com esses braços de fora. E esse calção?
- O que tem o calção?
- Meu Deus, parece uma sunga. Você não esconde nada. Veste-se como um homem da vida.
- Mas você está com um decote enorme...
- Já disse, eu até entendo, mas a sociedade é implacável, implacável..
            Antes de sair, ela deu um último beijo em Márcio, agarrou a mão dele bem forte, olhou nos seus olhos e disse:
- Olha, até fico meio assim de dizer isso, mas gostei mesmo de ti. Se quiser, por assim dizer, me encontrar um dia desses para matar a saudade...você tem meu número. Agora, namorar, não tem como. Se valoriza, querido. Sabe como é, né?

terça-feira, 29 de setembro de 2015

O Invasor

          Então ele surgiu. Grande, peludo e com costumes felinos, não havia dúvidas, era um gato. Um animal enorme, do tamanho de um homem, no meio da sala. Não sabia como explicar a estranha aparição, muito menos como um gato poderia ser daquele tamanho e andar apenas sobre duas patas traseiras. Enquanto pensava o que fazer a respeito da inusitada presença, sentou-se em seu sofá, estava cansado e exausto, era início do mês e as solicitações e demandas avolumavam-se sobre sua mesa. Ligou a televisão para relaxar, mas o controle da TV por assinatura não estava em seu local habitual, encontrava-se nas patas do gato, que trocava o canal de forma aleatória. Tentou protestar, mas não obteve sucesso, o felino trocava de canais sem parar até que parou em um documentário sobre vida selvagem. Pensou em tomar o controle, exigir o poder da programação de sua televisão, porém, cansado, optou por assistir o que havia sido selecionado. Não conseguia manter a atenção às disputas animais. Afinal, o que um gato fazia em sua sala? Deveria estar na rua, correndo atrás de ratos pelos bueiros da cidade, apesar de que, pelo tamanho que o bichano possuía, não existia rato que pudesse lhe fazer frente. Tinha seu corpo coberto de pelos, espessos, que oscilavam entre o branco e preto. Ocupava um espaço considerável na poltrona no meio da sala, a poltrona que antes era ocupada pelo dono da casa. Suas patas eram um misto entre mãos humanas e patas animais, cobertas por grandes pelos que encobriam as terminações que lembravam dedos e culminavam em grandes e longas garras, que lembravam vagamente unhas humanas.
            Pensando no gato adormeceu. Despertou de forma repentina, o gato continuava ali, impassível, assistindo a um velho filme de bang-bang. Decidiu não criar problemas, amanhã resolveria o caso e, além do mais, trabalhara muito e trabalharia no dia seguinte, portanto precisava dormir. Não desligou a luz, pois, se o hóspede inusitado assim o quisesse, já o teria feito, e foi para o quarto. Não teve sonhos, apenas recordava de cerrar os olhos e ouvir o despertador. Foi fazer o café, ele estava sentado à mesa, aguardando, “maldito explorador”, pensou enquanto coletava os ingredientes para um simples sanduíche.
- Preciso chegar o quanto antes, é fim do mês, uma folha imensa para fechar. Ei, esse cereal é meu...
            Era tarde, o animal utilizava todo o espaço confortável da mesa. Alimentava-se com o cereal que havia comprado dois dias antes, cereal caro demais para o que podia proporcionar: um ruído crocante, um leve doce do açúcar e uma possibilidade de boa saúde a longo prazo. Não valia o investimento, por que o comprará? Questionava a si mesmo enquanto o bichano o devorava bem em sua frente. Desistiu de tentar reaver seu patrimônio, ”que se vá o cereal para o inferno, assim como esse gato, preciso é ir trabalhar” resmungou ao deixar à mesa e dirigir-se ao quarto para se arrumar.
           Trabalhou como sempre, fazendo hora extra, coisa rotineira em dias de fechamento de folhas de pagamento. Mesmo sabendo, quase que infantilmente, imaginou-se entrando em casa e encontrá-la vazia, seu sofá, o controle da televisão, seu império a sua disposição. Não aconteceu. Lá estava o peludo, no mesmo lugar, no seu lugar de direito, com as patas traseiras cruzadas sobre o banco convenientemente posto defronte a poltrona, as patas dianteiras repousadas sobre o ventre entrelaçadas como se ele estivesse orando para a televisão. Televisão que ainda estava pagando, 20 vezes, 20 meses, 20 horas extras todos os meses. Era sua, não poderia ser de mais ninguém.
            Sentou em uma cadeira próxima, acabou adormecendo sentado na cadeira pouco confortável da mesa de jantar. Sonhou que estava no mar, em um barco pequeno, acossado por enormes ondas que, a cada choque com a embarcação, produziam sons ensurdecedores. Não sabia como havia parado naquela situação, tentava sair dela, mas, sempre que ousava sair da posição fetal em que estava, era atingido violentamente pelo balançar do barco e, irritantemente, se via novamente na mesma posição e local. Podia sentir a salinidade da água marinha em sua garganta, um gosto de peixe e algas, o mar começava a ficar escuro como uma noite fria de inverno. Possuía um aspecto de sujeira, algo próximo da imundície. A água escura o sufocava cada vez mais, entrava por cada espaço do seu corpo, sentia o sal fundindo-se a sua essência, o ar tornando-se escasso a cada jato de água que espirrava contra ele. Continuava lutando, mas, internamente, começava a compreender que estava perdido, que dali somente a morte o libertaria. Sabia que não poderia, entretanto inspirou, de uma vez só, a maior quantidade que já havia sorvido de ar, ar para uma vida inteira, ar em forma de água escura e salgada que entrou violentamente pelas narinas e garganta, que lhe apertou o peito, que lhe trancou a vida...que o despertou.
            Acordou assustado. Podia sentir o sal em sua boca, a ausência de vida, a morte que não ocorrera. Foram necessários alguns instantes até se convencer que estava vivo e que a sala era firme, imutável, segura e em nada lembrava um barco. Correu os olhos na sala, o ser não estava mais lá, o sofá estava vazio, a televisão estava desligada, será que havia sonhado todo esse tempo? Talvez estivesse com algum distúrbio, não havia tempo para investigar, viu no relógio da parede que eram 3:30 da manhã, dormir era essencial, o dia prometia ser longo no setor que trabalhava. Seria devorado por montanhas de relatórios e papéis com nomes e números intermináveis, sentiria cansaço, levantaria inutilmente para pegar um café como forma de disfarçar a sensação de aprisionamento, porém, devido às constantes saídas, teria que ficar mais tarde que o habitual, mais do que as luzes da maioria das casas costumam aguentar acessas todos os dias, chegaria em casa escutando o silêncio da madrugada, sozinho, solitário e cansado, muito cansado. Dormir, realmente, não era uma opção, era uma necessidade.  
            Abriu a porta de seu quarto, seu recanto de tranquilidade, seu escudo contra o mundo veloz do lado externo daquelas paredes. Foi na penumbra, ainda quando os vultos e silhuetas são os seres mais vivos possíveis, que vislumbrou um volume sobre a cama, mais negro que a escuridão que dominava o ambiente, temeroso, aproximou-se lentamente, passo por passo, até chocar seu joelho, levemente, com a barra da cama, podendo, assim, distinguir o pelo, o bigode, as orelhas pontudas, as garras, emaranhadas em um misto de pelos, repousadas sobre o peito. O gato tomara sua cama, não havia dúvidas. Pensou em tirá-lo de lá, empurrá-lo, mas estava cansado, cansado para disputas fúteis que não levariam a nada. De repente, o tapete ao lado da cama lhe pareceu uma boa opção, pôs o despertador para às 5:20, dormiria apenas 2 horas, repousou sobre o tapete e adormeceu quase que instantaneamente.
            Não sonhou, apenas despertou com o alarde estridente do despertador. Olhou sobre a cama e não avistou o gato. Tratou de alongar as costas e juntas doloridas pela noite amparada sobre a crueldade do chão daquele quarto. Cada parte do corpo fazia questão de lembrá-lo o que havia feito. Tomaria um banho para reavivar as forças e encarar um longo dia de trabalho, foi até a porta e tentou abri-la, nada aconteceu. A porta não abria, entrou em desespero, tentou por quase 10 minutos, em vão, destravar a porta, foi à janela e a mesma coisa repetiu-se, estava preso, o gato o havia prendido. Pensou em solicitar socorro, arrombar a porta, arrombar a janela, contudo, estranhamente, a voz não lhe ajudava e as forças o abandonaram. O celular não respondia aos comandos, era refém em sua própria residência. Após horas de incômodo, desespero e luta, deixou-se cair na cama e apagou. Um sono calmo e tranquilo, novamente sem sonho, sem paisagens, apenas um desligar-se, um não estar.
            A primeira coisa que sentiu, quando acordou, foi a coleira, o importunava, deixava-o ansioso, tentou levantar, mas não conseguiu, a corrente não permitia. Foi apenas então que notou, estava na dispensa da casa, diante de um pote com comida e outro com água, era refém, estava confinado, aquele gato o enganara, tomara a sua vida, e, agora, ele estava ali, em um ambiente escuro, com um cheiro horrível, um misto de produtos químicos e gordura, sentia o piso gelado e, ao mesmo tempo, pegajoso, sentiu ânsia e ojeriza. Não fazia a mínima ideia do horário que poderia ser, apenas que estava sozinho, abandonado e perdido em sua própria casa. Ouviu um barulho, algo como uma porta, passos ecoaram, alguém estava caminhando pela casa. Os ruídos foram se aproximando, um facho de luz surgiu na fresta embaixo da porta, pôde vislumbrar pés, viu a maçaneta da porta girar, a luz entrou forte e seus olhos a rejeitaram de início, quando o choque se atenuou, conseguiu visualizar, com toda clareza, o animal, em pé, diante dele, usando o seu uniforme. Trajava o uniforme da sua empresa, carregando a sua pasta de trabalho. Imediatamente pensou: “ladrão! É minha vida, minha vida! ”. E, antes que o gato, enquanto agachava-se, pudesse alcançar o pote de água com um dos braços, o homem, como um animal raivoso, atacou aquele braço e berrou:
- Me tira daqui!!.
            O som que emitiu o chocou e emudeceu a si próprio, não era uma voz humana, não era nenhuma língua conhecida ou desconhecida. Na verdade, soltou um alto e estridente miado. Horrorizado, assistiu o braço do gato recuar, mas não era o braço peludo dos outros dias, era um braço humano, sangrando pelo ataque repentino. Olhou para si, e suas mãos possuíam garras manchadas com o sangue de seu rompante desesperado, seus braços ganhavam pelos espessos e escuros. Sem acreditar, olhou para cima, o gato já possuía olhos e bocas humanos, o nariz começava a alongar-se e avolumar-se, as orelhas diminuíam e deslocavam-se para as laterais do crânio, os pés calçavam confortáveis calçados, calçados que o homem comprara no último verão. Olhou novamente para cima, e a constatação que chegou o fez recuar contra a parede úmida e gelada, os olhos, nariz, boca, orelhas que surgiam no gato eram mais do que humanos, eram mais do que familiares, eram seus. E foi com a voz que era sua, que o gato, fechando a porta falou:
- É assim? Então vai ficar sem comida.