sexta-feira, 22 de julho de 2016

Formigas e homens

            Navegar no Facebook virou quase um hábito inconsciente e involuntário na sociedade atual. É recorrente que, ao menos uns cinco minutos por dia, percorra-se a timeline desse aplicativo, visitando a vida pública, nem sempre real, de inúmeras pessoas. Não fugindo a regra, também estava “vasculhando” esse universo de postagens e dizeres quando me deparei com um pequeno vídeo sobre uma personagem que não queria ser uma formiga, no qual duas pessoas discutem como nosso dia a dia impulsiona-nos a ignorarmos detalhes, mantermos padrões e vivermos em um eterno piloto automático, sem encontrarmos o botão para desligá-lo.
            É fato, cada vez mais, lutamos constantemente pela tão sonhada liberdade. Exaltamos o fim de semana perfeito em meio à natureza, a tarde sentada ao sol sem influência nefasta de Cronos. Tomaz Antônio Gonzaga, em seu célebre Marília de Dirceu, versou: “Num sítio ameno,/Cheio de rosas,/De brancos lírios,/Murtas viçosas,/Dos seus amores/Na companhia,/Dirceu passava/Alegre o dia.”, é essa a satisfação que todos buscam.
            Abraçamos um ritmo alucinante em nossas vidas cotidianas, e muitas vezes lamentamos isso, porém usufruímos de suas consequências, quanto mais incessante a rotina, maiores as possibilidades de se possuir um bom carro, uma boa casa, uma “boa vida”. Perambulamos entre dois opostos, o desejo bucólico e anseio urbano e tecnológico.
            O problema é que, durante esses afazeres intermináveis, vamos esquecendo os detalhes, viciando nossas vistas, negligenciando o micro em prol do macro, aprendendo, assim, a sermos efetivos e objetivos. Nesse processo, pessoas passam a ser números quantificados e pesados conforme a proximidade, nomes são substituídos por profissões e as amizades são controladas por contagens de redes sociais; tudo muito justificável pela comodidade, uma vez que abraçar leva muito tempo e sentar para uma conversa é um luxo impensável na correria atual.

            O que todos esquecem é que somos apenas o resultado de uma negociação há muito já feita por nossos antepassados, pela sociedade do ontem. Nossas vidas, como idealizamos, foram vendidas por quantias que vão atualizando-se ou sofrendo acréscimos generosos com o passar dos anos, mas em momento algum a negociação pode ser desfeita, o contrato já foi firmado, registrado e reconhecido. Talvez, o que se possa fazer, é transformar a rotina em que vivemos em algo a mais do que um meio para algo, transformá-la no próprio algo, transformá-la essencialmente na vida, sem a necessidade de aguardar um momento bucólico que pode nunca chegar. Thoreau disse em seus versos que foi à Floresta porque queria viver, mas o que precisamos entender é que, talvez, não exista mais Floresta aonde ir, e precisamos aprender a viver exatamente no ponto onde estamos. Achar tempo para um abraço e uma conversa em meio ao sem fim de obrigações que possuímos é primordial. Sermos formigas, presos a funções e vidas extremamente controladas, não necessariamente significa não sermos humanos.

Caminhões invisíveis

            A semana que passou foi marcada pelo lamentável atentado terrorista que vitimou quase uma centena de pessoas em uma comemoração na França. Imediatamente, a notícia e o vídeo sobre o caminhão percorrendo 2 quilômetros desenfreadamente correram o mundo. Portais de notícias bombardeavam atualizações, emissoras chamavam seus correspondentes. Uma comoção, plenamente justificada, diga-se de passagem, frente à atrocidade cometida, mas quantos caminhões passam por aí e ignoramos?
            Um caminhão desenfreado, atropelando inúmeras pessoas, transita todos os dias nas fronteiras europeias quando pessoas são impedidas de ingressarem em um país sob pretexto de que ferirão a economia local, morrendo em cercas e mares. Ou seja, nesses casos, entre uma vida humana e a possibilidade de comer um McDonalds no sábado à tarde, esse último prevalece.
            Um caminhão sem freio desce, guiado por uma cultura machista, atropelando mulheres de todas as idades dia após dia, deixando órfãs de mães inúmeras crianças, assim como órfãs de felicidade milhares de mulheres vítimas de abusos. Apenas sendo interpelado, quando um vídeo e outro vazam via internet.
            Um caminhão desgovernado continua arrastando milhões de africanos em situações desesperadoras, mas é ignorado porque “eles que não se desenvolveram”. Esse mesmo caminhão percorre as ruas do nosso país até os bairros da periferia, colocando entre a pobreza e a miséria milhões de brasileiros.
            Contudo, o caminhão mais perigoso, o mais cruel de todos, é conduzido pela indiferença e pelo conformismo, e ele vai abrindo caminho para os demais caminhões, que passam escoltados por esse veículo feroz, que segue de forma firme e ininterrupta seu caminho. É esse o caminhão que deveríamos combater. Não a mídia, não os governos, mas, sim, nós, no dia a dia, nas horas cotidianas, pois, se o conformismo e a indiferença são os motoristas, somos nós com os pés no acelerador.




quarta-feira, 13 de julho de 2016

Desbravador

            Invadiu um mundo desconhecido, pronto e estruturado. Era desbravador, mas procurava manter um determinado grau de comprometido com o que desbravava. Deparou-se com espécies novas e faunas belíssimas e raras, no princípio, sentiu estranhamento e excitação, estava de passagem, desejava aquelas novidades, o verde exuberante, os sons da natureza; em sua cabeça uma obsessão fixa, desfrutaria o máximo que a breve estadia ali proporcionaria. E assim seguiu sua rotina, visitando e revisitando os mais exóticos locais, um eterno desbravador, tudo como deveria ser por vários dias, até encontrar uma fogueira no coração daquele éden. A princípio, pouca importância deu, na verdade, não era uma fogueira, e sim um vestígio do que um dia fora uma, entretanto, a partir daquele momento, em todo o lugar que chegava, perguntava-se “será que ele esteve aqui antes?”. Pensava naquele que, em algum momento do tempo, sentara ali, próximo da fogueira, como um invasor, um aventureiro aproveitador, um oportunista barato. Passou a enlouquecer, visitava e analisava aqueles troncos queimados e já curados pelo tempo constantemente; como um arqueólogo, tentava refazer os passos do antigo dono, “por que conseguira acender sua fogueira tão dentro da floresta? Se fizera isso, com certeza o fez com a permissão da minha ilha”, sim, não via mais aquele local como passageiro, mas como seu porto seguro, seu santuário, e agora sangrava por saber que alguém ali esteve, que ali acendeu uma fogueira, era uma hemorragia de sentimento, que não possuía ponto de referência, jorrava de algum lugar para todos os lugares do seu corpo. Sofria, pois no íntimo pensava: que, por ínfimo que tenha sido, esse usurpador fora acolhido fraternamente e de bom grado pelos galhos e árvores vistosos e lindos de seu atual reduto de paz. Verificava planta por planta, trilha por trilha, litoral por litoral, procurando memórias e lembranças que pudessem denunciar ou elucidar a relação daquele ser infeliz com a sua terra prometida.
            Esqueceu o mundo de fora, seu mundo era aquele agora, e havia sido maculado por um viajante aventureiro, um passante que provavelmente estivesse por aí, visitando a outros lugares, acendendo outras fogueiras. Por dias, em completo desespero, entregava-se ao mar, sempre sem fazer forças para viver, ansiava ser âncora, e, talvez, no fundo das águas, na escuridão do esquecimento, sombria o bastante para desvanecer a imagem daquela fogueira, repousar para sempre; porém, como uma infeliz brincadeira, sempre que tão logo seus pés tocavam a areia e seu mundo tornava-se água, uma onda o resgatava, cruel e impiedosa, atirando-o de volta à sua paixão. Exausto, com a água ocupando seus pulmões, a areia invadindo seu rosto, pensava se o estranho, em algum momento, estivera assim, aos farrapos, jogado à lona, a mercê daquela paixão. Quase o podia ver ao seu lado, esbelto e orgulhoso, desfrutando das maravilhas, olhando para ele ali ao chão, sorrindo despreocupadamente, sem sentir ao menos um mínimo de consideração, apenas mais uma floresta desbravada, uma de tantas outras.
            Com o passar do tempo, não conseguia mais percorrer a floresta sem achar que o caminho já não havia sido utilizado antes. E assim o sol não mais apareceu ali, a floresta-ilha, sentindo o que se passava com seu amante, passou a chorar todos os dias, transbordavam os rios, árvores eram derrubadas, tremores irrompiam. A floresta igualmente passou a sangrar, a detestar o aventureiro que fizera a fogueira que decretara a crise, não podia desfazer a acolhida que lhe dera tempos atrás, muito antes do desbravador chegar, - o tempo anda a frente, em fluxo constante, não para, não hesita, não olha para os lados, não aprecia a paisagem, não permite retorno, e se um de seus tripulantes o tentar fazer, perde o instante, entra em dívida consigo mesmo, até mesmo uma floresta-ilha no meio do mar. Ela que passara por milhões de anos, assistira um incontável desenrolar de acontecimentos e situações, vivera a gênese de tudo, era forte, inflexível, julgava-se acima de vontades alheias, mas agora corroía-se assistindo seu amante, dia após dia, como um espectro que perdera o pouco espírito que tem, caminhando perdido, a esmo, em meio às chuvas e adversidades. Desejava ter o dom de falar, de declarar seu amor incondicional, dizer-lhe que por ela, separaria o mar, erguer-se-ia até o mais alto do céu, isolar-se-ia de tudo e de todos, apenas para ficar com ele, que o estranho da fogueira nunca mais pisara ou pisaria ali novamente. Não conseguiu. E em meio a um de seus rompantes de tristeza, a floresta explodiu, jorrou sangue em forma de lava quente, lava que desceu queimando e criando sulcos profundos em sua superfície, ela suportou a dor, era preciso, precisava colocar para fora o que lhe fulminava lentamente, porém o que não esperava aconteceu, em seu desespero, por um instante, irrelevante para alguém com vidas de existência como ela, esqueceu de seu amante absorto na praia, um braço violento de lava o colheu, queimando lhe a face e o corpo. Ele não gritou, apenas olhou para o coração da floresta com ternura mais uma vez, um olhar que a floresta reconheceu, que a acalmou, que a apaziguou, ao menos até ela acordar para o que tinha feito. O braço fervente o depositou no leito do mar, longe de fogueiras, de lembranças, longe de tudo, somente escuridão e rochas. Assim, o amante virou finalmente âncora, a lava o solidificara junto a uma massa de matéria vulcânica, aos pés da floresta-ilha.
            Daquele momento em diante, a floresta-ilha ficou sombria, e os viajantes que cruzavam seu caminho nunca mais se aventuraram a ali entrar. Suas copas escondiam apenas mágoas e saudades, e assim permaneceriam pela eternidade, não fosse uma sensação estranha, um aconchego caloroso, um fervilhar interno; estranha, a floresta procurou ao seu redor, rastreou aquela fonte de alegria, não encontrou. Porém a sensação apenas crescia, tornava-se inteira, invadia todo o seu ser, desesperada, ela tentava em vão achar o porquê daquele bem-estar, do sol momentâneo que surgia teimosamente no horizonte. Sentiu um aperto mais profundo do que jamais sentira, um abraço diretamente na alma, foi aí que olhou para si, e o que viu fez do sol seu melhor amigo, transformou a chuva em uma velha e esquecida lembrança, trouxe a vida de volta àquela existência abandonada. Da fusão entre o sangue quente e a gélida e calma água, a ilha ganhava corpo, o que não esperava era que ali, em um encontro de forças, estivesse também ele, e que, daquele instante em diante, ambos fossem únicos, que não existissem mais desbravador e ilha, homem e floresta, apenas ambos.


sexta-feira, 1 de julho de 2016

A arte de conviver

            Quando estava na antiga oitava série, hoje nono ano - amanhã sei lá qual nome receberá -, desafio mesmo era aprender matemática, decifrar aquele emaranhado de números e letras, em uma mesma equação, era algo inatingível. Tanto que, nos anos seguintes, em razão de proporcionalidade, minha ignorância frente à ciência dos números crescia à medida que as contas adquiriam novos elementos. Ao final do Ensino Médio, o tamanho da conta era correspondente à minha falta de conhecimento. Contudo, com o tempo, deparei-me com uma equação muito mais complicada de solucionar.
            Não vivemos sozinhos, absortos em nosso mundo. Por incrível que pareça, diante de nossas atitudes cotidianas, dividimos o planeta com outros animais e, principalmente, com outros de nossa espécie. Por vezes, esse dividir significa compartilhar de um mesmo espaço, viver, nem que seja por alguns minutos por dia, sob um mesmo teto, compartilhando um tempo de nossas vidas. E aí surgem os empecilhos.       
            Conviver significa “viver com”, e isso implica uma gama de exigências que tornam esse exercício um desafio à razão e uma verdadeira arte. Logo de cara, encaramos um problema relacionado a um fato um tanto óbvio, mas negligenciado por muitos: não somos iguais. Não adianta, alguns gostam de Hemingway e Dostoiévski, outros, de Paulo Coelho e Augusto Cury; alguns gostam de goiabada, outros, de queijo, e muitos apreciam ambos. A falta de uniformidade é o que faz da nossa espécie algo mágico e instigante, mas também acarreta em um exercício constante e cansativo de entendimento da pluralidade.
            Sangramos, no sentido conotativo do termo, a cada imagem desconstruída, a cada expectativa não correspondida. Elaboramos e construímos nosso mundo de possibilidades baseados em nosso pequeno universo, esquecendo as peças motoras dessa engrenagem existencial: as pessoas que compartilham de nossas vidas. Peças dotadas, igualmente, de seus próprios universos, de seus próprios desígnios e planos. Em um mundo composto por mais de 6 bilhões de diferentes mentes, estabelecer um prognóstico para ações coletivas é como montar um castelo de cartas em meio a um vendaval, o risco de frustração é muito grande.
            Quem sabe, em meio a esse turbilhão, a saída seja jogar cada carta de uma vez, elaborarmos castelos somente quando recebermos outras cartas, mas, acima de tudo, quando enxergarmos no outro o desejo de construir um castelo. Segurar esse ímpeto de projetar no outro as nossas expectativas é uma questão de sobrevivência, de necessidade e, além de tudo, de justiça com o próximo, pois, ao fazermos isso, desobrigamos o outro de corresponder a expectativas por nós elaboradas e idealizadas.

            Como fazer isso? Eis uma pergunta pertinente e difícil de ser respondida, uma vez que isso implica, antes de mais, autoconhecimento e coragem para descartar aquilo que não poderá desejar e alcançar. Para conviver, é preciso saber, em muitos momentos, abrir mão do orgulho, deixá-lo em estado de hibernação sem destruí-lo, entretanto sem mantê-lo com o controle das rédeas. Aqueles que souberem a resposta já estão alguns metros à frente nessa linha, aparentemente sem fim, chamada vida.