quarta-feira, 13 de julho de 2016

Desbravador

            Invadiu um mundo desconhecido, pronto e estruturado. Era desbravador, mas procurava manter um determinado grau de comprometido com o que desbravava. Deparou-se com espécies novas e faunas belíssimas e raras, no princípio, sentiu estranhamento e excitação, estava de passagem, desejava aquelas novidades, o verde exuberante, os sons da natureza; em sua cabeça uma obsessão fixa, desfrutaria o máximo que a breve estadia ali proporcionaria. E assim seguiu sua rotina, visitando e revisitando os mais exóticos locais, um eterno desbravador, tudo como deveria ser por vários dias, até encontrar uma fogueira no coração daquele éden. A princípio, pouca importância deu, na verdade, não era uma fogueira, e sim um vestígio do que um dia fora uma, entretanto, a partir daquele momento, em todo o lugar que chegava, perguntava-se “será que ele esteve aqui antes?”. Pensava naquele que, em algum momento do tempo, sentara ali, próximo da fogueira, como um invasor, um aventureiro aproveitador, um oportunista barato. Passou a enlouquecer, visitava e analisava aqueles troncos queimados e já curados pelo tempo constantemente; como um arqueólogo, tentava refazer os passos do antigo dono, “por que conseguira acender sua fogueira tão dentro da floresta? Se fizera isso, com certeza o fez com a permissão da minha ilha”, sim, não via mais aquele local como passageiro, mas como seu porto seguro, seu santuário, e agora sangrava por saber que alguém ali esteve, que ali acendeu uma fogueira, era uma hemorragia de sentimento, que não possuía ponto de referência, jorrava de algum lugar para todos os lugares do seu corpo. Sofria, pois no íntimo pensava: que, por ínfimo que tenha sido, esse usurpador fora acolhido fraternamente e de bom grado pelos galhos e árvores vistosos e lindos de seu atual reduto de paz. Verificava planta por planta, trilha por trilha, litoral por litoral, procurando memórias e lembranças que pudessem denunciar ou elucidar a relação daquele ser infeliz com a sua terra prometida.
            Esqueceu o mundo de fora, seu mundo era aquele agora, e havia sido maculado por um viajante aventureiro, um passante que provavelmente estivesse por aí, visitando a outros lugares, acendendo outras fogueiras. Por dias, em completo desespero, entregava-se ao mar, sempre sem fazer forças para viver, ansiava ser âncora, e, talvez, no fundo das águas, na escuridão do esquecimento, sombria o bastante para desvanecer a imagem daquela fogueira, repousar para sempre; porém, como uma infeliz brincadeira, sempre que tão logo seus pés tocavam a areia e seu mundo tornava-se água, uma onda o resgatava, cruel e impiedosa, atirando-o de volta à sua paixão. Exausto, com a água ocupando seus pulmões, a areia invadindo seu rosto, pensava se o estranho, em algum momento, estivera assim, aos farrapos, jogado à lona, a mercê daquela paixão. Quase o podia ver ao seu lado, esbelto e orgulhoso, desfrutando das maravilhas, olhando para ele ali ao chão, sorrindo despreocupadamente, sem sentir ao menos um mínimo de consideração, apenas mais uma floresta desbravada, uma de tantas outras.
            Com o passar do tempo, não conseguia mais percorrer a floresta sem achar que o caminho já não havia sido utilizado antes. E assim o sol não mais apareceu ali, a floresta-ilha, sentindo o que se passava com seu amante, passou a chorar todos os dias, transbordavam os rios, árvores eram derrubadas, tremores irrompiam. A floresta igualmente passou a sangrar, a detestar o aventureiro que fizera a fogueira que decretara a crise, não podia desfazer a acolhida que lhe dera tempos atrás, muito antes do desbravador chegar, - o tempo anda a frente, em fluxo constante, não para, não hesita, não olha para os lados, não aprecia a paisagem, não permite retorno, e se um de seus tripulantes o tentar fazer, perde o instante, entra em dívida consigo mesmo, até mesmo uma floresta-ilha no meio do mar. Ela que passara por milhões de anos, assistira um incontável desenrolar de acontecimentos e situações, vivera a gênese de tudo, era forte, inflexível, julgava-se acima de vontades alheias, mas agora corroía-se assistindo seu amante, dia após dia, como um espectro que perdera o pouco espírito que tem, caminhando perdido, a esmo, em meio às chuvas e adversidades. Desejava ter o dom de falar, de declarar seu amor incondicional, dizer-lhe que por ela, separaria o mar, erguer-se-ia até o mais alto do céu, isolar-se-ia de tudo e de todos, apenas para ficar com ele, que o estranho da fogueira nunca mais pisara ou pisaria ali novamente. Não conseguiu. E em meio a um de seus rompantes de tristeza, a floresta explodiu, jorrou sangue em forma de lava quente, lava que desceu queimando e criando sulcos profundos em sua superfície, ela suportou a dor, era preciso, precisava colocar para fora o que lhe fulminava lentamente, porém o que não esperava aconteceu, em seu desespero, por um instante, irrelevante para alguém com vidas de existência como ela, esqueceu de seu amante absorto na praia, um braço violento de lava o colheu, queimando lhe a face e o corpo. Ele não gritou, apenas olhou para o coração da floresta com ternura mais uma vez, um olhar que a floresta reconheceu, que a acalmou, que a apaziguou, ao menos até ela acordar para o que tinha feito. O braço fervente o depositou no leito do mar, longe de fogueiras, de lembranças, longe de tudo, somente escuridão e rochas. Assim, o amante virou finalmente âncora, a lava o solidificara junto a uma massa de matéria vulcânica, aos pés da floresta-ilha.
            Daquele momento em diante, a floresta-ilha ficou sombria, e os viajantes que cruzavam seu caminho nunca mais se aventuraram a ali entrar. Suas copas escondiam apenas mágoas e saudades, e assim permaneceriam pela eternidade, não fosse uma sensação estranha, um aconchego caloroso, um fervilhar interno; estranha, a floresta procurou ao seu redor, rastreou aquela fonte de alegria, não encontrou. Porém a sensação apenas crescia, tornava-se inteira, invadia todo o seu ser, desesperada, ela tentava em vão achar o porquê daquele bem-estar, do sol momentâneo que surgia teimosamente no horizonte. Sentiu um aperto mais profundo do que jamais sentira, um abraço diretamente na alma, foi aí que olhou para si, e o que viu fez do sol seu melhor amigo, transformou a chuva em uma velha e esquecida lembrança, trouxe a vida de volta àquela existência abandonada. Da fusão entre o sangue quente e a gélida e calma água, a ilha ganhava corpo, o que não esperava era que ali, em um encontro de forças, estivesse também ele, e que, daquele instante em diante, ambos fossem únicos, que não existissem mais desbravador e ilha, homem e floresta, apenas ambos.


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