Era um sábado como qualquer
outro. O pai saiu para massagear e
admirar o carro com a desculpa de ter que lavá-lo. A mãe, trabalhadora de dupla
jornada durante a semana, tomou posse de seu domínio pleno e irrestrito sobre o
reino residencial, distribuindo tarefas a seus fiéis súditos que usufruíam dos
proveitos de uma cama aconchegante e o alimento na mesa.
Enquanto a ordem natural da casa
seguia, em seu mundo, esquecido por um instante, saía o cachorro da casa. Um
desses que tem seu pedigree identificado pelo não desenho do focinho e a não
uniformidade do corpo, mas era feliz em sua vida e posição naquele lar. Deitou,
como sempre, com seu pato de borracha na boca defronte a porta, tudo como devia
ser. Até ele ouvir o baque.
O que causara aquele baque ele
não sabia, apenas tinha consciência de que tinha consciência. Sim, tinha
consciência de tudo e de todos. Seus ouvidos habituaram-se com os sons, seu
cérebro passou a processar e dar sentido àqueles ruídos antes indecifráveis
produzidos pelas pessoas da casa. Entendia o que conversavam, e mais, pensava
sobre o que ouvia, nunca antes raciocinara algo.
Deu-se conta de que tinha um
pato de borracha na boca. O cuspiu rapidamente, sentiu pela primeira vez um
sentimento repulsivo que, logo, descobriu ser o nojo. O pato era velho e sujo. Como
podia ter estado alegre e satisfeito com tal objeto, pensou imediatamente.
Sentiu uma náusea momentânea, a língua cresceu como um objeto com vida
autônoma, cuspiu novamente, o pato parecia ainda estar ainda em sua boca.
O pai gritou para uma das
crianças saírem de perto do carro para não se molhar. A mãe a lembrou que ela tinha
afazeres e que deixasse o pai em paz. O cachorro estava maravilhado, entendia
perfeitamente cada palavra. O que antes não passavam de barulhos indissociáveis,
agora ganhavam sentido como mágica. Ninguém falava com ele, pareciam que não
estavam preocupados com a presença do animal. Foi em direção ao pai, quis
informar que o compreendia, que poderiam discutir coisas ou, simplesmente,
passar o tempo.
- Olá, pode parecer estranho, mas, sim, estou
falando.
Tentou ser formal e educado, mas
estranhamente o pai não o entendeu, fez um movimento brusco e berrou:
- Sai daqui! Marquinhos! Pega o Fagulha aqui!
Fagulha? Que nome era esse? E
por que toda essa indignação? Sentiu mãos ao redor do seu corpo, foi erguido de
forma brusca em direção ao peito de uma das crianças. Tentou virar a cabeça
para enxergar o que estava acontecendo, mas não obteve sucesso. Tentou argumentar,
contudo, novamente, a comunicação não ocorreu. Foi deixado de qualquer jeito
nos fundos da residência sem antes ouvir uma reprimenda do garoto por ter
estado na frente de casa. Abandonado no ponto esquecido da casa naquela manhã
de sábado, sentiu-se injustiçado e ultrajado. Era velho para os padrões dos
cachorros, deveria ser respeitado por um garoto tão jovem, além do mais, o que
havia feito de tão grave ao tentar conversar com aquele que conhecia há tanto
tempo. Começou a se dar conta de sua situação naquela casa. Estava do lado de
fora, tendo inúmeras cadeiras e um belíssimo e confortável sofá do lado de
dentro. Como sabia os nomes desses objetos e não seu próprio nome? Fagulha? O
nome não lhe saía da cabeça. Deveria ter um nome mais pomposo, pensou. Sempre
esteve a serviço daquela casa, amou aquelas pessoas, e nem o direito de repousar
em um local macio adquiriu.
Sua indignação já era grande
quando uma das crianças abriu a porta dos fundos e trouxe um pequeno pote nas
mãos, colocou ele no chão e o encheu com ração. Não podia acreditar que o
deixariam comer no chão, uma formiga distraída adentrava o pote. Foi a gota da
água.
Assistiu incrédulo a família
sentada à mesa, compartilhando, ceando e divertindo-se enquanto ele estava do
lado de fora, acompanhado apenas de duas formigas que sumiram dentro de sua
refeição. Recolheu-se a um canto. A tristeza tomou conta de si. Amaldiçoou o
momento em que tomou consciência de sua existência e das coisas que o cercavam.
Em sua inocência instintiva de sobrevivência, satisfazia-se com o pouco, mas,
agora, que tem consciência do que acontece, enxergou que o desprezo o acompanhava
pela casa. Era apenas mais um animal de estimação, nada mais do que isso, um
animal de estimação. Tentou comer a
ração junto com as formigas, a fome era grande, mas não conseguiu. A cada
tentativa, era violentamente punido por seu pequeno estômago que regurgitava de
forma intensa como um exército tentando sair de seu ventre. Exaustou, decidiu
repousar, entretanto não encontrou local para isso. A todo canto havia insetos
e sujeira, sentiu-se enojado de si mesmo, lambia os pés desses ingratos, murmurou
amargurado.
Essa
situação não ficaria assim, a consciência é uma dádiva que permite que possamos
pesar situações e posicionamentos para utilizá-los como base de pensamento para
ações futuras. Com esse pensamento, o pobre cãozinho foi em direção ao pote
pela última vez, era velho, sujo, todavia havia servido muito bem a ele.
Subiu-lhe pelo meio do peito um calor e um desejo de encontrar o pato, imundo,
proliferado de bactérias (como conhecia bactérias?) para um último adeus. Limitado
pela porta fechada, resignou-se em cantar uma melodia triste e chorosa, uma ode a um pato rejeitado. Ao fim da
canção, foi decidido em direção à piscina, daria fim àquela pobre vida.
No
caminho para o momento definitivo de sua vida, um baque. As pernas perderam a
rigidez, os olhos ficaram pesados, sentiu o chão rodar, tentou levantar uma
pata, contudo ela pesou contra o chão, caiu.
- Marquinhos!
O
grito do pai interrompera o ritual alimentar. Assustou-se com a queda brusca do
cachorro, mas tão logo levantou da cadeira, o cãozinho levantou abanando o
rabinho e correndo direto para o pote de ração. A consciência abandonara
novamente o pobre animal.
- Você, hein pai? Parece que não conhece o Fagulha,
esse vive brincando. Cachorro mais feliz não tem.
- Tá certo, filho. Tá certo...
Achou
melhor não mencionar que vira o cachorro sentado nas patas traseiras e
apontando as dianteiras para o céu como se estivesse cantando uma música de
lamentação.
Fagulha
nunca mais teve baques. Morreu de velhice sete anos depois. O pato sempre
esteve com ele e, por vontade da família, foi enterrado junto ao seu corpo. Na
sua lápide as ex-crianças escreveram: Cão mais feliz do mundo!
Tudo
uma questão de consciência.