Olhou pela janela. Era uma
noite comum como qualquer outra. Ao longe, os grilos comandavam a sinfonia de
uma noite quente, alternando com as cigarras a supremacia das principais notas.
Distraiu-se com um pequeno louva-a-deus que, distraidamente, perdido em seu
mundo particular, esfregava suas patas freneticamente, em um frenesi sem sentido,
como se dependesse daquele movimento para manter o corpo ativo e com vida.
Perdeu um pouco mais de tempo contemplando aquela cena até se dar conta da luz
que invadia seu quarto. A luz prateada iluminava satisfatoriamente o ambiente,
desvendando uma escrivaninha amontoada de livros que irrompia imponente diante
de algumas peças de roupas abandonadas, sem almas, sem corpos, trazendo um
aspecto de abandono para o recinto. A sombra do homem se projetava no chão como
uma segunda entidade naquele espaço, mas sem os tormentos que percorriam a cabeça
do ser corpóreo, sem os medos e receios; algo possível apenas para aquela
presença sem relevo, sem recheio, sem músculos ou pontos para ferir. Abandonou
a sombra no chão do quarto para procurar a fonte reveladora de todas aquelas aparições,
foi quando a viu. Primeiramente, pouco pôde crer, mas, na segunda olhada, seu
olhar foi aprisionado, feitiço antigo, daqueles que fazem os homens perderem
seus mais profundos alicerces, abrirem mão de toda sua gama de conceitos e
padrões, esquecerem o que são e por que são, encararem alguém como se suas
vidas não mais os pertencessem; estava apaixonado.
Inicialmente,
tal o desatino da situação, tentou encontrar outro motivo, outra razão para
explicar o que sentia, olhou novamente para cima na esperança de desvanecer a
névoa entorpecedora que se formara, contudo manteve-se fiel, em posição de servidão.
Desesperou-se, via olhos nítidos, maliciosos, maldosos, desafiadores e, impressionantemente,
hipnotizantes. Tentou, inutilmente, desviar o foco de atenção, deter-se no
louva-a-deus que agora dividia-se em dois pontos da janela como se fossem duas
dimensões diferentes separadas por uma queda que, conforme pensou o homem, era
um abismo considerável para o pequeno animal. Entretanto, apesar de ainda
querer pensar na disposição do animal em sua janela, sentia-se tentado a
olhá-la, a admirá-la, a espioná-la mais uma vez. Ela sorriu para ele, sim, o
mais lindo dos sorrisos, daqueles que pressionam os olhos, que os fazem sofrer
sobre a pressão da felicidade espontânea e encantam pela sinceridade.
Um
morcego levantou voo e o despertou para um jovem que caminhava distraidamente
admirando a beleza de sua musa. Seus olhos correram velozmente do rapaz para
sua amada, e o que ele presenciou o chocou: ela olhava com aqueles olhos cheios
de vida, com a mesma intensidade com a qual ele havia se encantado. Um
sentimento estranho ganhou corpo dentro de si como se reivindicasse aquele
espaço; sentiu-se traído, como poderia ela dispensar o mesmo frescor que tinha
com ele com outro? Pensou em ignorá-la. Que ficasse a conversar e sorrir com
esse outro, mas não ganharia mais os seus afetos e atenção.
Contudo falhou em seu intento.
Ela o olhou com ternura, disse que era um velho conhecido, um antigo admirador,
e que mantinha um bom relacionamento, pois guardava-lhe carinho e lembranças
agradáveis. A explicação não o agradou, sentia-se magoado, mas resolveu aceitar.
No dia seguinte, o sol mal deixou-se cair no horizonte, entre prédios, asfalto,
fumaça e árvores, e ele já direcionou sua atenção para ela, que despontava
linda, com aqueles olhos profundos e provocantes. Devolveu o olhar para ela,
queria demonstrar o que sentia, mas, no mais profundo do seu ser, ainda estava
ferido, e os olhos denunciavam o que lhe passava. Ela o questionou, ele não
respondeu, desconversou, não podia desfazê-la, não quando estava diante de seu
encanto, mesmo com os indícios e sinais o traindo. Ainda assim, enamorou-se por
inúmeras noites, e, a cada uma delas, o encanto aumentava, porém o sentimento
de dor e a ferida aumentavam proporcionalmente reforçados pela presença diária
daquele jovem, no mesmo trajeto, na mesma caminhada, e sempre a sorrir para
ela, a conversar com ela, como velhos amigos.
Já não suportando, questionou
sua bela sobre a situação, queria berrar, xingar, expor a dor que sentia. Ela explicou-lhe
que não podia ser de uma só pessoa, que não havia como negar seu sorriso e olhar
para outros, afinal, era de sua natureza ser assim. Foi como se a chama, que
antes o esquentava, passasse a queimá-lo. Nas noites seguintes, passava horas
tentando achar algum motivo, entre os irrelevantes objetos do quarto, para não
olhar para a rua, para não topar com aquele olhar hipnotizante, com aquele sorriso.
Tentava encontrar razões para odiá-los no seu íntimo, pois, mesmo com todas as
situações, apaixonara-se e não conseguia tirá-la da cabeça. No entanto, como os
pássaros migram para o sul, seus olhos migravam, inconscientemente, em direção
à janela, à sua perdição, ao bem que lhe matava aos poucos. Ansiava por aquilo,
desejava aqueles olhos, aquele sorriso, mesmo sabendo que nunca seriam somente
seus. Em um ato desesperado, não enxergando mais saída, uma ação pareceu lhe racional;
fechou a janela e nunca mais a abriu. A partir de então, mesmo que
enlouquecendo, não ousava abrir a janela, mantinha-se fiel à sua opção, à sua
tortura pessoal, ao seu ato extremo de flagelação.
Após alguns dias, passou a não
mais abrir a janela, nem mesmo para o sol; sua vida, ou resto que lhe sobrara,
passou a ser dentro daquele quarto. A verdade era que, sem aquele sorriso,
aqueles “olhos do mal”, tornava-se um espectro, um não presente, menos do que
sua sombra. E assim, em um dia como outro qualquer, na passagem da tarde para a
noite, reduziu-se. Foi de repente, seu casaco velho e desgastado engoliu o seu
corpo cada vez mais minúsculo, viu o teto se afastando, o chão se aproximando, sem
muito empenho tentou mover as suas pernas já sem músculos, porém elas foram fundindo-se
ao chão escuro, seu tronco penetrando aos poucos o tapete imundo, fruto de dias
sem limpeza. Antes de poder pensar em fazer qualquer coisa, aglutinou-se completamente
ao chão; já não sentia dor, frio ou qualquer outra sensação. Virara uma sombra,
nada mais do que uma simples sombra em um quarto escuro.
Do lado de fora, em uma noite
estrelada, o jovem caminhante sentiu uma gota. Curioso, olhou para o céu e não
encontrou sinal algum de nuvem ou de um pássaro distraído que explicasse sua
origem. Foi então que olhou para cima e o que viu o chocou: a Lua chorava,
perdera o amor que não permitiu.