terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A sombra



Olhou pela janela. Era uma noite comum como qualquer outra. Ao longe, os grilos comandavam a sinfonia de uma noite quente, alternando com as cigarras a supremacia das principais notas. Distraiu-se com um pequeno louva-a-deus que, distraidamente, perdido em seu mundo particular, esfregava suas patas freneticamente, em um frenesi sem sentido, como se dependesse daquele movimento para manter o corpo ativo e com vida. Perdeu um pouco mais de tempo contemplando aquela cena até se dar conta da luz que invadia seu quarto. A luz prateada iluminava satisfatoriamente o ambiente, desvendando uma escrivaninha amontoada de livros que irrompia imponente diante de algumas peças de roupas abandonadas, sem almas, sem corpos, trazendo um aspecto de abandono para o recinto. A sombra do homem se projetava no chão como uma segunda entidade naquele espaço, mas sem os tormentos que percorriam a cabeça do ser corpóreo, sem os medos e receios; algo possível apenas para aquela presença sem relevo, sem recheio, sem músculos ou pontos para ferir. Abandonou a sombra no chão do quarto para procurar a fonte reveladora de todas aquelas aparições, foi quando a viu. Primeiramente, pouco pôde crer, mas, na segunda olhada, seu olhar foi aprisionado, feitiço antigo, daqueles que fazem os homens perderem seus mais profundos alicerces, abrirem mão de toda sua gama de conceitos e padrões, esquecerem o que são e por que são, encararem alguém como se suas vidas não mais os pertencessem; estava apaixonado.
            Inicialmente, tal o desatino da situação, tentou encontrar outro motivo, outra razão para explicar o que sentia, olhou novamente para cima na esperança de desvanecer a névoa entorpecedora que se formara, contudo manteve-se fiel, em posição de servidão. Desesperou-se, via olhos nítidos, maliciosos, maldosos, desafiadores e, impressionantemente, hipnotizantes. Tentou, inutilmente, desviar o foco de atenção, deter-se no louva-a-deus que agora dividia-se em dois pontos da janela como se fossem duas dimensões diferentes separadas por uma queda que, conforme pensou o homem, era um abismo considerável para o pequeno animal. Entretanto, apesar de ainda querer pensar na disposição do animal em sua janela, sentia-se tentado a olhá-la, a admirá-la, a espioná-la mais uma vez. Ela sorriu para ele, sim, o mais lindo dos sorrisos, daqueles que pressionam os olhos, que os fazem sofrer sobre a pressão da felicidade espontânea e encantam pela sinceridade.
            Um morcego levantou voo e o despertou para um jovem que caminhava distraidamente admirando a beleza de sua musa. Seus olhos correram velozmente do rapaz para sua amada, e o que ele presenciou o chocou: ela olhava com aqueles olhos cheios de vida, com a mesma intensidade com a qual ele havia se encantado. Um sentimento estranho ganhou corpo dentro de si como se reivindicasse aquele espaço; sentiu-se traído, como poderia ela dispensar o mesmo frescor que tinha com ele com outro? Pensou em ignorá-la. Que ficasse a conversar e sorrir com esse outro, mas não ganharia mais os seus afetos e atenção.
Contudo falhou em seu intento. Ela o olhou com ternura, disse que era um velho conhecido, um antigo admirador, e que mantinha um bom relacionamento, pois guardava-lhe carinho e lembranças agradáveis. A explicação não o agradou, sentia-se magoado, mas resolveu aceitar. No dia seguinte, o sol mal deixou-se cair no horizonte, entre prédios, asfalto, fumaça e árvores, e ele já direcionou sua atenção para ela, que despontava linda, com aqueles olhos profundos e provocantes. Devolveu o olhar para ela, queria demonstrar o que sentia, mas, no mais profundo do seu ser, ainda estava ferido, e os olhos denunciavam o que lhe passava. Ela o questionou, ele não respondeu, desconversou, não podia desfazê-la, não quando estava diante de seu encanto, mesmo com os indícios e sinais o traindo. Ainda assim, enamorou-se por inúmeras noites, e, a cada uma delas, o encanto aumentava, porém o sentimento de dor e a ferida aumentavam proporcionalmente reforçados pela presença diária daquele jovem, no mesmo trajeto, na mesma caminhada, e sempre a sorrir para ela, a conversar com ela, como velhos amigos.
Já não suportando, questionou sua bela sobre a situação, queria berrar, xingar, expor a dor que sentia. Ela explicou-lhe que não podia ser de uma só pessoa, que não havia como negar seu sorriso e olhar para outros, afinal, era de sua natureza ser assim. Foi como se a chama, que antes o esquentava, passasse a queimá-lo. Nas noites seguintes, passava horas tentando achar algum motivo, entre os irrelevantes objetos do quarto, para não olhar para a rua, para não topar com aquele olhar hipnotizante, com aquele sorriso. Tentava encontrar razões para odiá-los no seu íntimo, pois, mesmo com todas as situações, apaixonara-se e não conseguia tirá-la da cabeça. No entanto, como os pássaros migram para o sul, seus olhos migravam, inconscientemente, em direção à janela, à sua perdição, ao bem que lhe matava aos poucos. Ansiava por aquilo, desejava aqueles olhos, aquele sorriso, mesmo sabendo que nunca seriam somente seus. Em um ato desesperado, não enxergando mais saída, uma ação pareceu lhe racional; fechou a janela e nunca mais a abriu. A partir de então, mesmo que enlouquecendo, não ousava abrir a janela, mantinha-se fiel à sua opção, à sua tortura pessoal, ao seu ato extremo de flagelação.
Após alguns dias, passou a não mais abrir a janela, nem mesmo para o sol; sua vida, ou resto que lhe sobrara, passou a ser dentro daquele quarto. A verdade era que, sem aquele sorriso, aqueles “olhos do mal”, tornava-se um espectro, um não presente, menos do que sua sombra. E assim, em um dia como outro qualquer, na passagem da tarde para a noite, reduziu-se. Foi de repente, seu casaco velho e desgastado engoliu o seu corpo cada vez mais minúsculo, viu o teto se afastando, o chão se aproximando, sem muito empenho tentou mover as suas pernas já sem músculos, porém elas foram fundindo-se ao chão escuro, seu tronco penetrando aos poucos o tapete imundo, fruto de dias sem limpeza. Antes de poder pensar em fazer qualquer coisa, aglutinou-se completamente ao chão; já não sentia dor, frio ou qualquer outra sensação. Virara uma sombra, nada mais do que uma simples sombra em um quarto escuro.
Do lado de fora, em uma noite estrelada, o jovem caminhante sentiu uma gota. Curioso, olhou para o céu e não encontrou sinal algum de nuvem ou de um pássaro distraído que explicasse sua origem. Foi então que olhou para cima e o que viu o chocou: a Lua chorava, perdera o amor que não permitiu.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

As peras de cada um


            Lembro da época em que o asfalto ainda não havia engolido os velhos e irregulares paralelepípedos e os prédios eram ocupados por campos baldios que viravam verdadeiras arenas modernas ao fim de todas as tardes. O futebol não era privado, e os poucos campos que exigiam uma taxa para a disputa eram ocupados por poucos. A rua de casa era decorada por pereiras que, em determinadas passagens do ano, esverdeavam as calçadas, maculadas com as riscas de tijolos dos jogos de amarelinha, com peras e folhas que caíam de forma abundante, enlouquecendo os vizinhos que passavam horas executando uma dança incansável com suas vassouras. Eu e minha irmã, que pouca atenção dávamos para caprichos, víamos as peras tombadas como instrumentos de diversão, jogávamos na rua e esperávamos, em um exercício sublime de paciência, um carro passar sobre elas, transformando-as em uma polpa esmagada. Era nossa maneira de contribuir para a decoração de nossa rua.
            Apesar da imagem acima parecer ser de um momento distante e perdido, possui uns 20 e poucos anos. O mundo era mais lento, as novidades entre as pessoas, salvo as notícias, levavam o tempo de coletarem as histórias em urnas azuis e amarelas, levarem elas para a central, desta última para uma outra na cidade destino, e, por fim, levava o tempo das pernas que as carregavam até o ansioso destinatário. As histórias, nesse meio tempo, cresciam, ficavam adultas, envelheciam e, quando chegavam, eram corpulentas e acompanhadas de imensa significação. Eu, particularmente, trocava correspondências com minha prima que morava na capital, o telefone, antes que um desavisado se manifeste, existia, mas era para poucos, e, mesmo os que possuíam, o usavam com moderação e respeito.
            Hoje, uma novidade dura o tempo de um clique, um relatório leva o tempo da escrita, a coleta de informações dura o tempo de uma pesquisa em um site. As mensagens de amor chegam de forma instantâneas, marido e mulher; pais e filhos; amigos de longa data; não há mais solidão no mundo atual. Entretanto, esse contato do agora trouxe suas consequências. O mundo está veloz, acionamos um motor que não podemos mais desativar, descemos uma ladeira sem fim, e a velocidade aumenta cada vez mais. As histórias são coletadas e recebidas ainda jovens, sem os engordes do tempo, sem os enfeites da espera, sem a ornamentação do mistério.

            O grande desafio, atualmente, é como aproveitar a viagem apesar da velocidade com que andamos. É preciso abrir o vidro, sentir o vento no rosto, molhar as mãos nos dias de chuva, estar atento às paisagens, caso contrário, a velocidade de hoje consome nossas vontades, acelera nossos momentos, sufocando as coisas pequenas, que exigem tempo e abstração. Em mundo repleto de prazos, por vezes, precisamos aprender a vivermos sem eles, desconectarmos o relógio da pressa, encontrar nossas ‘brincadeiras com as peras” e cultivá-las, sem pressa, sem tempo, sem prazo.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Sobre guarda-chuvas e a humanidade


          Mário Quintana escreveu sobre guarda-chuvas e como esses acessórios somem misteriosamente de nossas posses. Eles, os guarda-chuvas, conforme o poeta, vão para um lugar especial: os anéis de Saturno, permanecendo na obscuridade. A sociedade, por sua vez, também perdeu seu guarda-chuva e, pelo andar da carruagem, está longe de encontrá-lo; definitivamente, ficou no meio do caminho, em algum ponto ou curva da trajetória.
                   Há poucos meses, choramos com a imagem de uma criança repousando sem vida em uma praia na Turquia, jornais de todo o mundo viraram-se para o drama dos refugiados e da situação na Síria. Contudo, o mundo atual é veloz, ávido por novidades e inundado frequentemente de fatos mais importantes da história, e, assim, aquele garotinho na praia foi abandonado lá, sua imagem foi excluída para não suscitar remorso e a praia tornou-se inacessível. Hoje, as crianças, órfãs da humanidade perdida pela sociedade, morrem no alto-mar, distante o bastante da costa e das lentes fotográficas que podem sensibilizar um desavisado durante seu café da manhã, não possuem silhueta ou aparentam qualquer vestígio que denuncie sua pouca idade, estão embaladas dos olhos da sociedade em sacos negros como as noites que as tragam.
                  As suas orfandades são acalentadas pelas guerras. Guerras que as adotam, criam, moldam e tornam elas sem perspectiva, futuro ou exigências como brinquedos, roupas ou carinho. Essas crianças fazem parte de um país que, para nossa sociedade, não passa de um ponto no mapa, uma página do jornal, dois minutos do noticiário televisivo. Deixamos de ver um país como um ponto geográfico habitado por pessoas com os mesmos sonhos, desejos, ambições e direitos que nós. Habituamo-nos a aceitar a transformação de pessoas em números, pois números não possuem filhos, pais, irmãos ou qualquer vestígio similar de vida. Números não tiram a nossa fome ou causam tanto desconforto.
                A sociedade perdeu e continua perdendo sua humanidade aos poucos, todos os dias, em doses homeopáticas, no conforto de seus lares, entre notícias e o comercial do último carro lançado.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Problemas nossos de todos dias

             Paulo Leminski, no poema Bem no fundo, levanta a hipótese, pra lá de tentadora, de os problemas passarem a ser resolvidos apenas por decretos. A ideia é maravilhosa, você acordar pela manhã, em uma segunda-feira qualquer, e decretar o fim de qualquer contragosto que possa existir. Imagine as possibilidades, a vida seria agradável, as pessoas seriam agradáveis, tudo seria mais leve. Mas, infelizmente, a ideia só existe no poema.
            Não podemos resolver os problemas por decretos. Eles não se ausentam, atrasam ou esquecem de comparecerem, dia após dia, pontuais como um inglês. Eles se reinventam, modificam, dando uma possibilidade infinita de combinações, não deixando, dessa forma, que o atormentado reclame do marasmo e da mesmice. Problemas, além disso, não se incomodam em se mudarem, em se reinstalarem em outros locais, não são enraizados, são mutáveis, nômades e, lamentavelmente, companheiros fiéis.  
            Um professor vive com a pressão de conteúdos e trabalhos (provas) para corrigir; um advogado trabalha acompanhado de pilhas infinitas de papéis com clausulas e artigos; um administrador convive com a responsabilidade de gerenciar eternamente procedimentos, balanços e pessoas; um jornalista corre incessantemente atrás de uma pauta, um furo, uma novidade; um pedreiro passa dias acompanhado das intempéries, dos desejos dos empregadores e da fadiga corporal; todos possuem suas bagagens de dificuldades compartilhando, também, os desafios diários de suas respectivas vidas pessoais.
       Quem sabe os problemas não sejam, realmente, e perdão pela redundância, problemas. Talvez sejam combustíveis para a vida, contribuam para manter as locomotivas de nossas existências trabalhando constantemente. Assim, o que resta para nós, pobres mortais, é aprendermos a conviver com eles, de mãos dadas, de boa vontade. Não é sadio necessitarmos de momentos leves para sermos felizes, pois eles são esporádicos e inconstantes. As dificuldades nos movem, Eduardo Galeano escreveu que as utopias são objetivos inalcançáveis, mas necessários, pois fazem com que continuemos caminhando. Possivelmente, seja isso mesmo.
            Portanto, que nesse início de ano - sim, gostando ou não, no Brasil o ano começa, realmente, na próxima quinta-feira após o carnaval - possamos aprender a valorizar os problemas e, de certa maneira, nutrir por eles um imenso carinho. Eu, de minha parte, tentarei (o que já é muito) abraçar com fraternidade as provas, as preparações das aulas e os trabalhos incontáveis, administrando tudo com minhas produções como escritor, para alcançar, bem, ainda não sei o quê. 

Eu vi D'Alessandro jogar

            Nada é para sempre. Absolutamente nada. Algumas coisas demoram mais tempo para passar, outras surgem e desaparecem rapidamente, mas nada nesse Universo é eterno. D’Alessandro também não seria.
            Vez ou outra, às vezes por acaso, outras por méritos da astúcia e planejamento, nos deparamos com fenômenos, fatos que ocorrem com tal intensidade e força, que surgem já despertando o amargo sentimento da despedida tal o desejo de eternidade que possuímos em relação a eles. D’Alessandro foi um desses fenômenos. Despediu-se há muito tempo, ou melhor, iniciou sua despedida em 2008 quando chegou ao Internacional. Iniciou com acenos tímidos do camarote do antigo Beira-Rio para torcedores que assistiam a derrota do colorado para o Santos de Robinho. Mal sabiam aqueles torcedores, que recebiam a atenção daquele argentino invocado, que estavam testemunhando o início de um ciclo para sempre marcado na história do gigante vermelho.
            O adeus de D’Alessandro seguiu com um título inédito da Copa Sul-Americana, simplesmente o primeiro time brasileiro a ganhar a competição. No ano seguinte, mostrou o porquê seria conhecido como homem grenal conduzindo, como um maestro, vitórias acachapantes contra o Grêmio. Pobre torcedor tricolor, muitos perderam o sono devido ao gringo abusado. Contudo, aquilo ainda era pouco para o argentino que, em 2010, liderou um time trôpego, sem muita criatividade, mas com muita raça, ao topo da América. Além disso, no mesmo ano, consolidou-se como o melhor jogador da América. D’Alessandro era especial. Conquistou, a seguir, a Recopa Sul-Americana. Como se não bastasse, nos anos que se sucederam, imperou no Rio Grande do Sul de forma impiedosa, e um tanto cruel, sobre o maior rival do time vermelho.
            Cada troféu, cada ida ao alambrado para torcer e batucar junto à torcida, cada reposta ácida endereçada ao rival, cada lágrima derramada foram despedidas suficientes para o torcedor. Poucas vezes testemunhamos um jogador com relativo currículo internacional vir ao sul do país e fincar bandeira por tanto tempo. Anos passarão e as futuras gerações comentarão que durante 7 anos desfilou nos gramados gelados do sul do Brasil um gênio canhoto e temperamental. Um jogador que adorava os grandes jogos, venerava o clássico grenal, um meia como pouco se viu.
            D’Alessandro sai do gramado, sai do Beira-Rio, para se imortalizar ao lado de Fernandão, Falcão, Escurinho e outros tantos craques que desfilaram com a camisa vermelha. Vai vestir o manto da história, da memória, ficará, para muitos jovens colorados, como o maior jogador que vestiu a camisa 10. Aqueles colorados que, como eu, ouviam dos mais antigos “eu vi Falcão jogar”, agora poderão, com todo orgulho do mundo, falar: eu vi D’Alessandro jogar! A vida é muito melhor do lado de cá, sempre foi, obrigado por nos lembrar disso Andrés D’Alessandro. Boa sorte!