segunda-feira, 30 de março de 2015

Conversa pré-nupcial 2



- Biologia?
- O que tem?
- Nada, apenas é estranho.
- Estranho por quê?
- Sei lá, pessoal de Biologia, sabe como é...
- Não, não sei.
- Você espera o que no fim de semana?
- Como assim?
- Você sai todo fim de semana.
- E o que é que tem?
- Ela não vai sair. Pessoas de biologia não saem todo final de semana.
- Isso não é uma espécie de preconceito? Ela representa ser tão centrada e , além disso, é uma ótima companhia.
- Viu? Eu não disse? Você já está sendo influenciado. Desde quando você fala “espécie”? “Representa”? Meu senhor, você mal usava anáforas.
- Aná... o quê?
- Deixa pra lá, o importante é que ela não é para você.
- Diz isso apenas por ela falar difícil?
- Não. Digo isso porque vocês são totalmente diferentes, não estão ocupando o mesmo mundo, o mesmo espaço, são como corpos de universos distintos que se cruzaram.
- Peraí, corpos estranhos de universos o quê? Você fala mais difícil que ela. E outra, você não faz licenciatura?
- Sim, e daí?
- Daí que você é como ela.
- E?
- E daí que somos amigos. Ora, se posso ser teu amigo, então também posso dar certo com ela.
- É mais complicado.
- Como assim complicado?
- Nos conhecemos antes de tudo.
- Antes de tudo o quê?
- Antes de você consolidar seu caminho. Da mesma forma, eu ainda não havia determinado o meu. Vocês vão fazer o que juntos?
- Como assim?
- Você acha que ela olha futebol?
- Ela é gremista!!
- Não é não. Não dá a mínima para futebol. Está apenas com o fervor inicial da paixão, dirá que gosta de críquete se for necessário. Entretanto, com o tempo, o fervor diminui e não compensam mais tantas mentiras e adequações. Ela deve pensar que o futebol é uma diversão da massa, feito para entreter e distrair o povo enquanto as coisas acontecem.
- Mas olhamos juntos o jogo, ela estava empolgada e...
- Encenação. Você não foi ao teatro com ela?
- Fui, mas...
- Fez cara feia? Você odeia teatro!
- É diferente.
                Começou seriamente a enxergar a verdade, eram incompatíveis. Chutou uma pedra no chão como se pudesse afastar a dúvida e a sensação ruim que o cercava.
- Paciência, meu amigo. Mais cedo ou mais tarde isso iria acontecer. Que aconteça cedo.
- Sabe, eu convidei ela para olhar o Capitão América e ela foi.
- Reclamou?
- Não! Disse que estava ótimo.
- Ótimo? Ela gosta é de Yasujiro Ozu, talvez um Tarantino. Você gosta do quê? X-men?
- Mas isso não significa nada.
- Significa tudo, meu amigo. Significa o futuro de vocês.
- O que eu faço? Ligo para ela?
- Foi na casa dela?
- Não!
- Então não liga, melhor que o tempo dê a resposta.
- Não sei.
- Pensa, homem. Vai investir em um relacionamento fadado ao fracasso? Faria isso com ela? Essa é a pergunta que deve fazer a si mesmo.
- Tem razão. Não posso deixá-la entrar em um barco furado. Vou deixar como está.
- É o melhor a fazer.
                Foi com relutância que tomou a decisão. Por um momento, sentiu que havia encontrado a pessoa certa. Porém, como o amigo havia dito, não podia condenar a vida de uma pessoa. Absolveria ela de um transtorno futuro. Que fosse feliz com alguém do mundo dela. Deixou o amigo sentado sozinho e foi remoer sua lamentação em um bar próximo do prédio do campus.
                O amigo ficou mais um tempo degustando o que havia feito. Será que esse tal de Ozu era bom mesmo? Iria assistir a um filme dele, mesmo que não gostasse. Devia isso ao amigo que fizera perder uma paixão. Afinal, no amor vale tudo, e ele havia visto ela primeiro. Casou com a bióloga na primavera do ano seguinte. Não teve padrinho.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Conversa pré-nupcial

- Oi!
- Oi!
- Tudo bem?
- Tudo.
- Lugar cheio, né?
- Aham.
- Você é daqui?
- O quê?
- Você! É daqui da cidade?
- Ah...olha, não quero parecer grossa, mas é que vim com minhas amigas para dançarmos um pouco...
- Sim, sim. Sem problemas, não está sendo grossa. E então, você é daqui?
- Oi?
- Você, ainda não respondeu a pergunta.
- Olha...tá difícil de você entender. Você é daqui?
- Eu? Sim, sim. Nasci no bairro do Largo, aqui pertinho. Conhece?
- Sim.
- Então é daqui?
- Sou.
- Quantos anos você tem?
- Você não sabe que não se pergunta a idade de uma mulher?
- Ah...desculpa.
- 27.
- O quê?
- 27!!
- Sua idade?
- Sim, você não perguntou?
- É que pensei que...bem, tenho 28.
- Hum...olha, daqui a pouco minhas amigas estão chegando, então acho melhor você...
- O quê?
- Você sabe. Sei lá, dar uma volta por aí.
- Não, obrigado. Sabe que caminhei por aí e não encontrei nada interessante?
- Deve ser o som que está alto.
- O quê?
- Você, pelo jeito não está entendendo nada do que digo.
- Estou sim.
- Então?
- Pode falar.
- Não acredito, você...não!!
- O que foi?
- Minhas amigas! Passaram por aqui e acharam que eu estava conversando com você e foram embora.
- Mas você está conversando comigo.
- Não, você está conversando comigo.
- Hum.
- Hum o quê?
- Você!
- O que que tem eu?
- Nem ao menos lembra de mim.
- Deveria lembrar?
- Se você levar em consideração que estudamos no mesmo colégio; que fizemos parte da mesma equipe das olimpíadas do colégio por mais de dez vezes; que joguei no seu time de vôlei por 7 vezes; que troquei o pneu do seu carro após uma festa em que você e suas amigas estavam alcoolizadas; que comprei todos os livros do Vinicius para poder recitar algo bonito quando te encontrasse, porém não lembro nenhum; e que fiquei aqui ignorando o fato de você ter me dispensado umas 9 vezes em 8 minutos; acho que você deveria.
- Pois então, se mesmo depois de tudo isso, eu não lembro, acho que isso significa alguma coisa, não acha?
- Hã?
- Olha minhas amigas! Um conselho, desencana! Tchau!
    Ele demorou um pouco mais de um ano para digerir aquele momento. Ela demorou 5 minutos, que foram o suficiente para encontrar Carlos e seu sorriso arrasa quarteirões. Ele casou e nunca mais leu Vinicius. Ela casou, adotou o sobrenome do marido e deu o nome de Vinicius para o segundo filho. Ambos não entenderam o porquê de lembrar disso após 20 anos. Ela voltou a si e pediu para a secretária chamar o próximo paciente. Ele foi acordado de seu devaneio quando ouviu o seu nome sendo chamado, concluiu que a lembrança devia ter surgido graças ao nome da médica que o atenderia ser idêntico.

Pescador



            Eu lembro das cores. Ou melhor, da confusão de tons que o rio assumia naquele fim de tarde. Lembro-me de falar, ou pensar, não sei bem ao certo, as lembranças não ficam guardadas em departamentos à disposição do usuário, que tudo aquilo era parecido com um quadro que uma professora havia mostrado na escola. Meu pai perguntou se era a pintura de um rio, mas eu logo disse que não, que era uma pintura borrada, cheia de cores, assim como o rio naquela fatia de tempo. Pensando hoje, não sei se respondi corretamente à pergunta de meu pai, será que não era um rio que o artista pintara? Nunca mais vi aquele quadro. Gostaria de vê-lo novamente, mas teria que falar com minha antiga professora, e ela eu também nunca mais vi. Nem lembro do nome dela, lembro do cheiro, um perfume forte e gostoso. Lembro das coisas pelas coisas. Do primeiro dia que andei de bicicleta, lembro através do joelho ralado devido ao primeiro tombo; do primeiro dia de escola, lembro através das mãos firmes de minha mãe esperando a professora chegar. Assim como eram das luzes que lembro daquele dia. Algumas vezes, quando acho que a memória irá me trair, lembro das luzes e a conversa surge berrando em minha cabeça acompanhada das imagens.
            Fiquei lá, admirando essa confusão de luzes até o grito de meu pai para que pegasse o restante das coisas. Lembro da sensação que aquilo tudo me causava. Era como se fosse um rito de passagem, uma mensuração da hombridade, ali, naquela beirada, era como se o mundo afirmasse que eu havia me tornado homem. O veredito que corroborava com essa sensação era o olhar de meu pai para mim como um igual. Ele não disse “guri, não mexe nisso aí” ou “isso aí não é para brincar”, éramos homens aprontando-se para uma missão, uma tarefa. Coloquei o restante das coisas no pequeno barco, acomodei-as no canto como maças em uma fruteira, cuidando para que uma coisa não amassasse ou quebrasse a outra. Meu pai olhou para mim e perguntou se eu conseguiria empurrar o barco sozinho e saltar para dentro, menti, falei que sim sem saber, mas aquilo era necessário, deixar de ser um menino para tornar homem, e, assim, abandonei o menino na margem, com medo e receio e empurrei o barco com força, o coração palpitando e ecoando como um grande tambor, as faces queimando, senti a água alcançar meus pés, meu pai arqueando o corpo para colocar o remo na água. E se eu perdesse a oportunidade de entrar na água e ficasse na margem? Cada vez que pensava nisso, meu corpo fervia mais ainda. Como o tempo é engraçado, posso jurar que as coisas foram exatamente dessa maneira, sem tirar uma só palavra, mas se falasse com meu pai ele diria que tudo não passou de um minuto, se muito. Enfim, saltei para dentro do barco e ele deu um leve sorriso de aprovação. Éramos dois homens.
            Não sorria muito, na verdade, sorrir não era um de seus verbos preferidos. Assim como estudar e ler. Conjugava em toda sua essência o verbo trabalhar. Em casa, conversava muito com minha mãe, pouco comigo, meus irmãos e irmãs. Meu irmão saíra de casa para assumir uma menina bonita que morava perto de casa, lembro do olhar de aprovação de meu pai quando meu irmão deu a notícia. Homem que é homem deve ter uma esposa, uma família e um trabalho honrado. Meu irmão tinha tudo isso, apesar de que eu não considerava uma dádiva trabalhar na pedreira da cidade. Eu sempre havia sido o diferente, gostava de ler e estudar. Meu pai trabalhava na empresa de água da cidade, 20 anos de serviços ininterruptos deram ao simples operário um salário mais digno do que o vencimento recebido inicialmente. Portanto, tive a oportunidade de cursar o segundo grau. Era o que eu estava fazendo naquele período.
            Como sempre, meu pai estava em silêncio, remando lentamente para dentro daquela imensidão de cores que se misturavam e agitavam a medida que o remo e o barco iam rasgando a superfície da água. Ele olhou para mim e perguntou se eu poderia remar um pouco, eu de prontidão sentei na ponta do barco e iniciei a remada seguindo a direção por ele indicada. Enquanto eu remava, ele ia testando o “liquinho” para passarmos a noite. Dois homens sozinhos no meio do rio, ouvindo o silêncio de um fim de tarde.
            A certa altura, ele pediu para pararmos, caminhou até a outra ponta e tirou uma lata de tinta com sua essência preenchida por um cimento seco e sem vida. Pode parar de remar disse sem olhar na minha direção e atirou a lata na tela composta por água. Um espaço sem cor rompeu o colorido por alguns instantes e a corda desceu rápida e veloz até ficar esticada proporcionando um forte solavanco.
- Pescaremos aqui.
            Apenas com um gesto na minha direção, solicitou as minhocas que eu havia cavado uma hora antes e que estavam em uma segunda lata velha de tinta. Ele desenrolou um pouco da linha que estava enrolada em uma lata e, com grande habilidade, colocou a minhoca no anzol. Perguntou se eu saberia como colocar a isca, minha resposta estava entre meus dedos trêmulos que já seguravam o escorregadio animal que teimava em não esperar sua morte de forma estática. Por três oportunidades isquei meu dedão, o que deve ter produzido alguma satisfação no pobre animal que aguardava seu triste desfecho.  Aguentei em silêncio a dor produzida por cada erro que cometi ao iscar, não queria que meu pai pensasse que não estava diante de um homem.  Queria, naquele momento, ser tratado como os colegas de meu pai, como meu irmão, como um igual. O último erro ocasionou uma lesão um pouco mais profunda, rapidamente limpei e esfreguei o dedo na bermuda como um ladrão a esconder seu crime. O sangue acabou por manchar a peça de roupa, o que certamente causaria danos quando retornássemos e minha mãe descobrisse o pequeno infortúnio. Entretanto, o que me importava, naquele momento, era não passar uma imagem errada para meu pai.
            Diante da dor, nervosismo e o inquieto animal que se debatia constantemente, consegui por fim colocar a minhoca no anzol. Desenrolei o carretel com muito cuidado, afinal, não queria errar ou demonstrar não estar pronto para estar ali, esperei meu pai se distrair com um mergulho repentino de um desses pássaros que pescam e atirei a linha na água. Tão rápido quanto o anzol tocou a aquarela de cores que o rio formava, ele virou-se na minha direção e fez um pequeno gesto de aprovação.
            Esperava ansiosamente por um peixe que fisgasse a linha e proporcionasse a sensação de puxá-lo da água como um daqueles pescadores que eu vira na televisão. Atirava a linha para frente, para trás, para o lado e nada. Meu pai advertiu para que eu não enrolasse a minha linha na dele quando tentei atirá-la perto da sua. O rio ia perdendo suas cores a medida que o Sol repousava lentamente na montanha ao longe. Não falávamos nada, a excitação por estar ali, na condição de homem, afastava qualquer possibilidade de monotonia. O balanço do barco acompanhava o ritmo lento dos sons naquela hora do dia, os pássaros gritavam esporadicamente em meio a voos solitários, alguns peixes aventuravam-se na superfície do então já escuro rio, era uma melodia silenciosa e, por mais estranho que possa parecer, harmoniosa. Acendemos o “liquinho” e as margens foram sumindo da paisagem. Era noite, revisávamos as linhas, não havia pego um peixe ao menos, meu pai, três bonitos pintados que nadavam com uma linha entre suas guelras ao lado do barco. Entretanto, apesar da escuridão reclamar seu lugar de direito e tudo se transformar em sombras, foi justamente nesse momento que algumas coisas ficaram claras para o restante da minha vida. “Se a linha tremê, puxa ela de leve. Se não, o peixe escapa” sentenciou meu pai enquanto puxava com vitalidade a linha e tirava outro saltitante pintado. “Sabe, pesca é como vivê. A gente tá sempre segurando a linha, tentando pesca alguma coisa. De vez em quando, vem algo bom, algo que a gente qué. Mas, às vezes, pode vim um cascudo, cheio de espinho e que não sirva pra nada. Então o que a gente tem que faze é consegui tira ele da linha sem se machuca muito. O importante é sabe coloca a isca e tá de olho na tremida da linha, tá entendendo? Se tu não cuidar a tremida da linha, pode perde a oportunidade. Na vida é assim mesmo, nem sempre as coisa vão ser boas. Sei que tu pensa em estuda, se alguém melhor. Eu nunca pensei muito nisso, o que tirei do rio foi a firma de água e tratei de aproveitá o máximo. O importante, meu filho, é sabe que a linha tá sempre na nossa mão, e é nossa responsabilidade senti a hora que ela treme. Mas não esquece, o que se pesca ninguém sabe adianta, agora, onde larga a linha e com quem senta num barco a gente escolhe.”
            Naquela noite, não entendi muito bem o que ele estava dizendo. Na verdade, pensei naquilo tudo como mais um sermão de pai para filho, é curioso como as coisas vão tomando sentido aos poucos, sem pressa, como uma velha e boa pescaria, que existe não apenas no ato de iscar o anzol, colocar a linha na água e puxar o peixe, mas, também, na longa espera pela tremida da linha. Demorei toda a minha pescaria para entender aquela conversa. Falamos muito pouco depois disso, ficamos ali, parados, observando a massa escura que passava silenciosa sob nosso barco. Eu queria falar algo sobre o que ele havia falado, mas as palavras tropeçavam nos pensamentos e os pensamentos trombavam com as palavras. Nunca mais falei com ele sobre aquele dia, queria saber se ele sentou ao lado das pessoas certas, se chegou à margem satisfeito, entretanto o tempo é o senhor da compreensão e ele ainda não me era velho amigo naqueles dias. Trocamos poucas palavras até levarmos o barco em direção à margem. O barco tocou levemente a superfície arenosa do rio, aterrissando lentamente. Saltei do barco e o puxei junto com meu pai para cima da areia, comecei a juntar as coisas com cuidado, inclusive os sete pintados que pescamos, sim, no fim, acabei pescando também o meu. Não trocamos palavras amorosas sobre o tão bom foi realizar uma pesca em família, apenas trancamos o barco em um tronco de árvore e caminhamos nas sombras, cada um carregando o seu fardo. E assim, as coisas seguiram-se, meu pai retirou seu barco do rio como qualquer outro homem, não realizou nada grandioso para a humanidade, não inventou a cura para nenhuma doença rara. Todos, um dia, precisamos desancorar, remar para margem, sair do meio do rio e caminharmos para as sombras. Sei que, hoje, estou remando para margem, levando todas as recompensas da pescaria.  Talvez, naquela noite, tenha recebido o maior ensinamento de meu velho pai. Agora, vejo que foi a melhor conversa que tive com ele em toda minha vida. Quando chegamos ao ponto de remarmos para a margem, passamos a pensar em toda a pescaria.
Nas conversas com meus filhos e netos, vez ou outra, bate uma saudade daquela voz, olhar e, por que não, daquele silêncio, vontade de ser filho de novo.
Nunca compreendo por que essas lembranças insistem em aparecer, sentar em minha sala, acomodarem-se despreocupadas, ocupando um lugar imenso dentro de minha casa. Talvez elas sejam mentirosas, talvez o rio não fosse tão colorido, o barco não fosse tão grande, a pescaria não tenha sido tão longa, meu pai não tenha sido tão importante, entretanto, uma coisa eu posso afirmar sem correr o risco de ser ludibriado pelas minhas lembranças, o velho sabia pescar. No fim, era tudo que importava.

quarta-feira, 11 de março de 2015

O menino que lutava com o Sol

Equipou-se para o combate que se avizinhava. Verificou se as ombreiras estavam no seu devido lugar, assim como o escudo e o restante da armadura. Com passos firmes, marcando a terra ainda úmida, foi em direção a sua fortaleza. Parecia muito mais um monte de entulho do que outrora havia sido sua mais imponente edificação, a verdade que surgia diante de seus olhos era que havia um grande trabalho a ser feito e o tempo não era seu cúmplice. Sem perder mais tempo, pôs-se a arquitetar sua fortaleza, pedra sobre pedra, unindo-se como se fossem partes de um corpo que se reencontravam para ganhar novamente significação. O calor, que crescia em sua nuca, anunciava que o Sol começava a vencer a batalha contra as pesadas nuvens daquela tarde. Não tinha tempo para procurar uma proteção, muito menos para vislumbrar tal batalha, pois tinha a sua própria batalha esperando para ser disputada. Os pés, uma vez ou outra, vacilavam na terra úmida que ganhava garras com o movimento incessante no mesmo ponto. O mundo, ao redor, ainda transpirava. As pedras úmidas, por vezes, mostravam-se ariscas e imprevisíveis. A construção não era simples, mas, enfim, terminou a edificação.
Contemplou o trabalho de suas mãos e maravilhou-se. Sentiu-se renovado, pronto para enfrentar um dragão se fosse preciso. O castelo erguia-se soberano em meio a uma planície de terra escura marcada por pegadas que criavam pequenos lagos independentes. Permitiu-se alguns instantes de contemplação, mas lembrou da batalha e da necessidade de abarrotar a sala de armas com munição suficiente, não queria ser sitiado sem munição, sem esperança, afinal, era um respeitado cavaleiro. Tratou de armazenar o maior número de munição que pudesse, os aldeões deveriam abrigar-se dentro da edificação. O Sol já não disputava batalha alguma, tornara-se ditador, reinava absoluto e irradiava seu calor cruelmente sobre todos. Avistou seu inimigo, estava se preparando, ficando de prontidão, será que teria tanto suprimento? Suou. Calor, disse para si mesmo, apesar de que, em seu íntimo, sabia que o calor que sentia era aquele que surge do sentimento que homem que é homem não deve ter. 
Voltou-se para o castelo, precisava de mais munição. Trabalhou incessantemente, correu, caiu, todavia conseguiu finalmente encher as reservas. Entrincheirou-se atrás do castelo e, por trás da fortaleza impenetrável, berrou:
- Estou pronto!!
A primeira laranja estourou na árvore ao lado. A segunda arrancou o vigia de sua posição e o arremessou no canil de Banditi, ainda teve tempo de ver o cão arrancar-lhe a cabeça com uma só mordida. Não havia tempo para lamentações, pegou uma das inúmeras bolachinhas que trouxera para aguentar o cerco e a comeu, um guerreiro precisa estar bem alimentado. Armou-se com duas laranjas. Com reflexo surpreendente, surgiu à direita e, sorrateiramente, acertou duas laranjas na base da fortaleza inimiga, mas pouco estrago causou. Escondeu-se a tempo de apenas ver uma laranja criar um sulco na terra onde estivera a dois segundos atrás. O Sol castigava seu esconderijo, seria uma longa tarde de sábado. Sorriu.

terça-feira, 10 de março de 2015

Assassinato

Rabiscou mais uma vez no canto da folha, definitivamente o mataria, não havia saída. Tomou mais um gole de café que queimou levemente a sua boca. Entretanto, nada suplantava, naquele momento, o calor que irradiava dos braços e subia veloz à cabeça. Nos últimos dois meses, transformara-se em seu melhor amigo, uma amizade que poucos entendiam, mas que tornou-se tão forte quanto laços sanguíneos. Consolidou-se entre xícaras quentes de café e tragadas lentas e pensativas de cigarros. Conhecia os seus segredos mais secretos, assim como ele conhecia os seus. Como matar alguém assim?
A verdade é que esse sentimento foi ganhando força como uma tempestade que se aproxima imensa, lenta e imparável. Chegou, alojou-se em seu intelecto, sim, em seu intelecto, pois o coração não faria gesto tão premeditado. Enfim, a ideia, que chegou como uma tempestade de verão, criou corpo, desceu dos céus no terceiro mês e, desde então, nunca mais o abandonou. Estava ali, sentada na varanda da mente, visível e intransigente, esperando para acontecer.
Escutou um barulho em suas costas, virou e deu com a esposa entregando-lhe um pratinho com algumas bolachas.
- Come um lanchinho.
- Não estou com fome.
- É aquela situação novamente?
- Infelizmente. Entretanto, já decidi, irei matá-lo.
- Sério? Uma pena, esperava que não fizesse isso, mas se tem que ser feito, que faça logo. Matará como? Não precisa ser muito cruel.
- Preciso. Devo.
- Por quê?
- Estarei matando um pouco de mim junto com ele. Deve ser doloroso, cruel, marcante, para que tenha um significado maior. Um “eu” estará deixando de existir. Um companheiro de longas tardes.
- Ai, amor. Eu ainda acho que não precisava de nada disso.
- Não? – sua voz cresceu subitamente – Ele perdeu o controle, fez com que eu escrevesse coisas horríveis. Tomou vida própria, vazou pela minha existência, assumiu o controle de minhas vontades. Morrerá!
- Você que sabe, eu nem sei por que ainda discuto essas coisas com você.
- Desculpa, amor. É que...- era tarde, ela havia deixado o aposento isolado da casa.
         Olhou para a mesa. Teria coragem de matá-lo? Agora, que, realmente, o fratricídio aproximava-se, sim, fratricídio, pois era da família, menos vontade e, principalmente, coragem o acompanhavam. Abriu um litro de Whisky e serviu um copo de forma lenta e meticulosa. Acompanhou o deslizar do líquido no copo, tomando o volume, ocupando o espaço antes vazio da mesma forma que a ideia de morte subjugou seus outros pensamentos. Degustou o primeiro gole, a ideia de possuir o poder sobre a vida e a morte em suas mãos começava a lhe trazer formigamentos. Será que tinha algum fetiche secreto? Lembrou de Causa Secreto de Machado de Assis, instantaneamente, censurou a si mesmo, era uma pessoa boa e integra. Não poderia lutar contra a lei da natureza, contra seu chamado, o universo pedia aquele desfecho e ele seria naquela noite. Ele era apenas um instrumento de uma vontade maior, soberana. Não mais postergaria.
          Saiu de seu quartel general e foi tomar um banho. Descarregar a tensão existente naquele momento. Cada uma das inúmeras gotas que despencavam do chuveiro preparavam e relaxavam o corpo para tarefa que deveria ser feita, adiara demasiadamente essa decisão. Trocou de roupa, nada especial, uma roupa casual como qualquer outra. Desejou um boa noite para a esposa, iria partir para sua missão. Enquanto deixava o quarto, a mente preparava-se para coordenar o corpo que iria concretizar o frio assassinato inúmeras vezes planejado.
                Sentou em frente a ele, imaginou como poderia ser diferente, mas não havia mais o que dizer, pensar ou lamentar. Despediu-se uma vez mais do amigo e iniciou o assassinato, escreveu no espaço em branco da página: o tiro veio rápido e súbito, antecedido por um forte estampido.

                Era, agora, o mais vil dos assassinos.