Eu
lembro das cores. Ou melhor, da confusão de tons que o rio assumia naquele fim
de tarde. Lembro-me de falar, ou pensar, não sei bem ao certo, as lembranças
não ficam guardadas em departamentos à disposição do usuário, que tudo aquilo
era parecido com um quadro que uma professora havia mostrado na escola. Meu pai
perguntou se era a pintura de um rio, mas eu logo disse que não, que era uma
pintura borrada, cheia de cores, assim como o rio naquela fatia de tempo.
Pensando hoje, não sei se respondi corretamente à pergunta de meu pai, será que
não era um rio que o artista pintara? Nunca mais vi aquele quadro. Gostaria de
vê-lo novamente, mas teria que falar com minha antiga professora, e ela eu
também nunca mais vi. Nem lembro do nome dela, lembro do cheiro, um perfume
forte e gostoso. Lembro das coisas pelas coisas. Do primeiro dia que andei de
bicicleta, lembro através do joelho ralado devido ao primeiro tombo; do
primeiro dia de escola, lembro através das mãos firmes de minha mãe esperando a
professora chegar. Assim como eram das luzes que lembro daquele dia. Algumas
vezes, quando acho que a memória irá me trair, lembro das luzes e a conversa
surge berrando em minha cabeça acompanhada das imagens.
Fiquei
lá, admirando essa confusão de luzes até o grito de meu pai para que pegasse o
restante das coisas. Lembro da sensação que aquilo tudo me causava. Era como se
fosse um rito de passagem, uma mensuração da hombridade, ali, naquela beirada,
era como se o mundo afirmasse que eu havia me tornado homem. O veredito que corroborava
com essa sensação era o olhar de meu pai para mim como um igual. Ele não disse
“guri, não mexe nisso aí” ou “isso aí não é para brincar”, éramos homens
aprontando-se para uma missão, uma tarefa. Coloquei o restante das coisas no
pequeno barco, acomodei-as no canto como maças em uma fruteira, cuidando para
que uma coisa não amassasse ou quebrasse a outra. Meu pai olhou para mim e
perguntou se eu conseguiria empurrar o barco sozinho e saltar para dentro,
menti, falei que sim sem saber, mas aquilo era necessário, deixar de ser um
menino para tornar homem, e, assim, abandonei o menino na margem, com medo e
receio e empurrei o barco com força, o coração palpitando e ecoando como um
grande tambor, as faces queimando, senti a água alcançar meus pés, meu pai
arqueando o corpo para colocar o remo na água. E se eu perdesse a oportunidade
de entrar na água e ficasse na margem? Cada vez que pensava nisso, meu corpo
fervia mais ainda. Como o tempo é engraçado, posso jurar que as coisas foram
exatamente dessa maneira, sem tirar uma só palavra, mas se falasse com meu pai
ele diria que tudo não passou de um minuto, se muito. Enfim, saltei para dentro
do barco e ele deu um leve sorriso de aprovação. Éramos dois homens.
Não
sorria muito, na verdade, sorrir não era um de seus verbos preferidos. Assim
como estudar e ler. Conjugava em toda sua essência o verbo trabalhar. Em casa,
conversava muito com minha mãe, pouco comigo, meus irmãos e irmãs. Meu irmão
saíra de casa para assumir uma menina bonita que morava perto de casa, lembro
do olhar de aprovação de meu pai quando meu irmão deu a notícia. Homem que é
homem deve ter uma esposa, uma família e um trabalho honrado. Meu irmão tinha
tudo isso, apesar de que eu não considerava uma dádiva trabalhar na pedreira da
cidade. Eu sempre havia sido o diferente, gostava de ler e estudar. Meu pai
trabalhava na empresa de água da cidade, 20 anos de serviços ininterruptos
deram ao simples operário um salário mais digno do que o vencimento recebido
inicialmente. Portanto, tive a oportunidade de cursar o segundo grau. Era o que
eu estava fazendo naquele período.
Como
sempre, meu pai estava em silêncio, remando lentamente para dentro daquela
imensidão de cores que se misturavam e agitavam a medida que o remo e o barco
iam rasgando a superfície da água. Ele olhou para mim e perguntou se eu poderia
remar um pouco, eu de prontidão sentei na ponta do barco e iniciei a remada
seguindo a direção por ele indicada. Enquanto eu remava, ele ia testando o
“liquinho” para passarmos a noite. Dois homens sozinhos no meio do rio, ouvindo
o silêncio de um fim de tarde.
A
certa altura, ele pediu para pararmos, caminhou até a outra ponta e tirou uma
lata de tinta com sua essência preenchida por um cimento seco e sem vida. Pode
parar de remar disse sem olhar na minha direção e atirou a lata na tela
composta por água. Um espaço sem cor rompeu o colorido por alguns instantes e a
corda desceu rápida e veloz até ficar esticada proporcionando um forte
solavanco.
- Pescaremos aqui.
Apenas
com um gesto na minha direção, solicitou as minhocas que eu havia cavado uma
hora antes e que estavam em uma segunda lata velha de tinta. Ele desenrolou um
pouco da linha que estava enrolada em uma lata e, com grande habilidade,
colocou a minhoca no anzol. Perguntou se eu saberia como colocar a isca, minha
resposta estava entre meus dedos trêmulos que já seguravam o escorregadio
animal que teimava em não esperar sua morte de forma estática. Por três
oportunidades isquei meu dedão, o que deve ter produzido alguma satisfação no
pobre animal que aguardava seu triste desfecho. Aguentei em silêncio a dor produzida por cada
erro que cometi ao iscar, não queria que meu pai pensasse que não estava diante
de um homem. Queria, naquele momento,
ser tratado como os colegas de meu pai, como meu irmão, como um igual. O último
erro ocasionou uma lesão um pouco mais profunda, rapidamente limpei e esfreguei
o dedo na bermuda como um ladrão a esconder seu crime. O sangue acabou por
manchar a peça de roupa, o que certamente causaria danos quando retornássemos e
minha mãe descobrisse o pequeno infortúnio. Entretanto, o que me importava,
naquele momento, era não passar uma imagem errada para meu pai.
Diante
da dor, nervosismo e o inquieto animal que se debatia constantemente, consegui
por fim colocar a minhoca no anzol. Desenrolei o carretel com muito cuidado,
afinal, não queria errar ou demonstrar não estar pronto para estar ali, esperei
meu pai se distrair com um mergulho repentino de um desses pássaros que pescam
e atirei a linha na água. Tão rápido quanto o anzol tocou a aquarela de cores
que o rio formava, ele virou-se na minha direção e fez um pequeno gesto de
aprovação.
Esperava
ansiosamente por um peixe que fisgasse a linha e proporcionasse a sensação de
puxá-lo da água como um daqueles pescadores que eu vira na televisão. Atirava a
linha para frente, para trás, para o lado e nada. Meu pai advertiu para que eu
não enrolasse a minha linha na dele quando tentei atirá-la perto da sua. O rio
ia perdendo suas cores a medida que o Sol repousava lentamente na montanha ao
longe. Não falávamos nada, a excitação por estar ali, na condição de homem, afastava
qualquer possibilidade de monotonia. O balanço do barco acompanhava o ritmo
lento dos sons naquela hora do dia, os pássaros gritavam esporadicamente em
meio a voos solitários, alguns peixes aventuravam-se na superfície do então já
escuro rio, era uma melodia silenciosa e, por mais estranho que possa parecer,
harmoniosa. Acendemos o “liquinho” e as margens foram sumindo da paisagem. Era
noite, revisávamos as linhas, não havia pego um peixe ao menos, meu pai, três
bonitos pintados que nadavam com uma linha entre suas guelras ao lado do barco.
Entretanto, apesar da escuridão reclamar seu lugar de direito e tudo se
transformar em sombras, foi justamente nesse momento que algumas coisas ficaram
claras para o restante da minha vida. “Se
a linha tremê, puxa ela de leve. Se não, o peixe escapa” sentenciou meu pai
enquanto puxava com vitalidade a linha e tirava outro saltitante pintado. “Sabe, pesca é como vivê. A gente tá sempre
segurando a linha, tentando pesca alguma coisa. De vez em quando, vem algo bom,
algo que a gente qué. Mas, às vezes, pode vim um cascudo, cheio de espinho e
que não sirva pra nada. Então o que a gente tem que faze é consegui tira ele da
linha sem se machuca muito. O importante é sabe coloca a isca e tá de olho na
tremida da linha, tá entendendo? Se tu não cuidar a tremida da linha, pode
perde a oportunidade. Na vida é assim mesmo, nem sempre as coisa vão ser boas.
Sei que tu pensa em estuda, se alguém melhor. Eu nunca pensei muito nisso, o
que tirei do rio foi a firma de água e tratei de aproveitá o máximo. O
importante, meu filho, é sabe que a linha tá sempre na nossa mão, e é nossa
responsabilidade senti a hora que ela treme. Mas não esquece, o que se pesca
ninguém sabe adianta, agora, onde larga a linha e com quem senta num barco a
gente escolhe.”
Naquela
noite, não entendi muito bem o que ele estava dizendo. Na verdade, pensei
naquilo tudo como mais um sermão de pai para filho, é curioso como as coisas
vão tomando sentido aos poucos, sem pressa, como uma velha e boa pescaria, que
existe não apenas no ato de iscar o anzol, colocar a linha na água e puxar o
peixe, mas, também, na longa espera pela tremida da linha. Demorei toda a minha
pescaria para entender aquela conversa. Falamos muito pouco depois disso,
ficamos ali, parados, observando a massa escura que passava silenciosa sob
nosso barco. Eu queria falar algo sobre o que ele havia falado, mas as palavras
tropeçavam nos pensamentos e os pensamentos trombavam com as palavras. Nunca
mais falei com ele sobre aquele dia, queria saber se ele sentou ao lado das
pessoas certas, se chegou à margem satisfeito, entretanto o tempo é o senhor da
compreensão e ele ainda não me era velho amigo naqueles dias. Trocamos poucas
palavras até levarmos o barco em direção à margem. O barco tocou levemente a
superfície arenosa do rio, aterrissando lentamente. Saltei do barco e o puxei
junto com meu pai para cima da areia, comecei a juntar as coisas com cuidado,
inclusive os sete pintados que pescamos, sim, no fim, acabei pescando também o
meu. Não trocamos palavras amorosas sobre o tão bom foi realizar uma pesca em
família, apenas trancamos o barco em um tronco de árvore e caminhamos nas
sombras, cada um carregando o seu fardo. E assim, as coisas seguiram-se, meu
pai retirou seu barco do rio como qualquer outro homem, não realizou nada
grandioso para a humanidade, não inventou a cura para nenhuma doença rara.
Todos, um dia, precisamos desancorar, remar para margem, sair do meio do rio e
caminharmos para as sombras. Sei que, hoje, estou remando para margem, levando
todas as recompensas da pescaria. Talvez,
naquela noite, tenha recebido o maior ensinamento de meu velho pai. Agora, vejo
que foi a melhor conversa que tive com ele em toda minha vida. Quando chegamos
ao ponto de remarmos para a margem, passamos a pensar em toda a pescaria.
Nas conversas com meus filhos
e netos, vez ou outra, bate uma saudade daquela voz, olhar e, por que não,
daquele silêncio, vontade de ser filho de novo.
Nunca compreendo por que essas lembranças
insistem em aparecer, sentar em minha sala, acomodarem-se despreocupadas,
ocupando um lugar imenso dentro de minha casa. Talvez elas sejam mentirosas,
talvez o rio não fosse tão colorido, o barco não fosse tão grande, a pescaria
não tenha sido tão longa, meu pai não tenha sido tão importante, entretanto,
uma coisa eu posso afirmar sem correr o risco de ser ludibriado pelas minhas
lembranças, o velho sabia pescar. No fim, era tudo que importava.