O
navio interrompia o marasmo azul separando as águas com um ímpeto invejável
impulsionado pelo vento que empurrava com braços fortes as velas que se inflavam,
transformando a embarcação em um imenso cisne que deslizava em direção ao seu
destino. Os homens trabalhavam de forma constante e ininterrupta, alternando
entre as rotinas que se apresentavam, um tanto já ressentidos da ausência de
novidades. Os ânimos, após três semanas ao mar, estavam difíceis e sensíveis a
qualquer tipo de estímulo negativo, não raro, uma briga irradiava nos mais
variados pontos do navio, tendo que ser apartada de maneira ríspida e, por
vezes, violenta pelo contramestre.
E
assim a barco ia em direção do sol que surgia e apresentava seus primeiros
raios, que transformavam o antes azul incólume em uma profusão de cores.
Entretanto, não só para o sol apontava a proa, distinguia-se ao longe um
aglomerado de rochas que, em seu maior ponto, formavam uma pequena ilha
habitada por albatrozes que recebiam a luz matutina em suas penas.
Foi
quando chegaram próximos que notaram uma presença a mais entre as aves, os
cabelos cinzas caíam delicadamente ao redor dos olhos, como se contornassem o
rosto que guardava seu maior tesouro. Seus olhos eram um misto de maldade, bondade,
malícia e ingenuidade. Seu olhar era profundo e penetrante, e, antes que
qualquer tripulante pudesse fazer algo para evitar, um pobre marinheiro
jogou-se na água. O que se passou em sua cabeça, ninguém soube dizer, na
verdade, hipnotizou-se pelo olhar, ignorou o fato de ela estar isolada em uma
ilha de rocha em meio às aves, além disso, pouca atenção deu à cauda e às
barbatanas, às quais culminavam o lindo corpo perfeitamente desenhado pela
natureza com esmero e beleza incomparável. Mal dera as primeiras braçadas, uma
névoa repentina se interpôs entre ele a embarcação, o seu mundo já não era mais
o mesmo do restante dos marinheiros. Estava só diante de sua musa inspiradora.
Com
esforço, aproximou-se da moça que o olhava diretamente nos olhos sem desviar um
minuto de atenção. Aquele olhar lhe embrulhava o estômago, deixava-o sem chão,
fazia-o sentir desajeitado, exposto. Contudo, estranhamente, aquilo lhe fazia
bem, aumentando o desejo de ali permanecer. E assim o fez, passou horas
conversando com ela, e elas pareciam minutos, dada a afinidade que sentia ali.
As horas passaram, viraram dias e, de repente, tornaram-se dias, semanas e, por
fim, meses. Foi após um ciclo completo de estações, um encontrar-se de duas
almas, que a sereia interrompeu o apogeu, alegando que o marinheiro tinha uma
vida em terra, uma família, que ela, enquanto habitante dos mares, também
possuía seus laços afetivos, portanto aquela relação não teria um futuro. O
pobre homem, inebriado, tentou argumentar, mas sua voz se perdeu junto ao vento
que empurrou sua pequena embarcação para a costa em um verão quente e úmido.
Aportou com o corpo, mas não com a alma. Passou dois meses em casa, porém a
sereia o perseguia em seus sonhos. Foi ao bar tentar afogar as mágoas.
Sentou-se ao lado de seu companheiro de navegações, contudo, antes de relatar a
sua história, o amigo informou-lhe que partiria novamente ao mar. Era a
terceira vez em seis meses. O marinheiro surpreendeu-se com a postura do amigo,
como passar tantas horas no mar sem o corpo reclamar o contato da terra? A
reposta terminou com o restante da paz que guardava. O amigo estava enfeitiçado
pela sereia, e o pior, passava dias sentado junto a rochas acompanhado da musa.
Um sentimento novo irrompeu no peito do marinheiro, achava que havia estabelecido
uma ligação mágica com a moça dos olhos mais penetrantes que conhecera. A
verdade do amigo, de maneira sórdida e cruel, conseguira destruir o castelo que
havia idealizado. Passou a lhe fazer companhia a sombra da rejeição.
Sem mais suportar, foi a procura da
sereia. Na primeira expedição disponível, prontificou-se. Encontrou-a escorada
nas rochas, os cabelos lindamente soltos, como sempre, estava linda e radiante.
Conversaram por horas, ela não admitiu o acontecido com o amigo, apenas
informou-lhe que depois que o conhecera, não conseguira mais enfeitiçar
qualquer outro marinheiro, porém garantia que não poderia mais encontrá-lo. O
marinheiro, desesperado, perguntou-lhe por que ela não havia feito o mesmo com
seu amigo. A sereia mirou os olhos fixamente no marinheiro, estavam tristes,
sofrendo. Antes dela virar a cabeça e lançar seus cabelos ao ar e mergulhar no
lençol celeste sob eles, o pobre marujo vislumbrou uma lágrima escorrer em um
daqueles olhos perfeitos.
Sozinho, desiludido, o marinheiro
nunca mais voltou de espírito para o continente. Os dias passavam intercalados
entre pensamentos com a sereia e as horas que passaram juntos, e com a
imaginação dela passando momentos especiais com o amigo, momentos que negara
para ele. A moça, por sua vez, nunca mais conseguira realizar aquilo que a
natureza havia lhe destinado, nunca mais conseguira sentir ânimo com outro
marinheiro, assim, abdicou do direito de subir a superfície e mergulhou para
sempre para as profundezas dos mares.
O
marinheiro não conseguiu mais viver no continente. Em sua última viagem, nadou
em direção as rochas para encontrar sua alma, que o aguardava sentada no mesmo
ponto que anos antes ele encontrara a sereia. E mais uma vez juntos e, ao mesmo
tempo, solitários, corpo e alma, puderam cantar seu lamento para o restante dos
tempos.