Roteiro
Jeferson Luis de Carvalho
- Ei!
- Hã? O que é isso? Solte meu braço!
- Vem cá, vem cá, preciso te contar uma coisa.
- Contar o quê?
- Sua vida...
- O que tem ela? Solta meu braço!
- Já está programada, já tem final, tudo parte de um roteiro.
- Olha aqui! Ou você me larga ou eu...
- A Rita, sabe a Rita? Você vai casar com ela.
- Como assim? Que história é essa de Rita, como você conhece a Rita?
- Foi eu que coloquei ela na sua vida.
- Olha, eu vou chamar a polícia.
- Você disse que ela era um “chuchuzinho”. Que mulher ouviria isso e
ficaria com a pessoa hoje?
- Como você sabe disso?
- Já disse, sua vida é um roteiro. Eu mesmo escrevi.
- Então o que vai acontecer agora?
- Não sei, fui demitido.
- Agora está ficando bom. Minha vida é um roteiro, você que o escreveu,
mas foi demitido?
- Sim, seu final era monótono.
- Como assim?
- Sou formado, entende? Graduado em Letras,
especialização em escrita criativa, li todos os clássicos, estudei a teoria,
mas aqui queriam que eu fizesse o óbvio. O dinheiro era bom, contudo precisava
de mais. Uma reviravolta, uma trama elaborada, algo mirabolante, queria que
você fosse para a guerra como voluntário.
- O quê?
- Sim, ajudaria as pessoas necessitadas...
- Mas eu sou...
- Corretor de imóveis, eu sei, escrevi, lembra? Era
para ser contabilista. Ganharia seu dinheiro todo mês, mesma coisa, salário
fixo. Protestei. Já que não poderia dar a vida que queria, que desse um pouco
de emoção. Corretor de imóveis tem suas nuanças, um mês ganha muito, dois meses
não ganha nada. Uma pitada de aventura.
- Me solta!
- Não, espere! Você viveria o que o mundo
proporciona. Eu tiraria você dessa mesmice. Você viveria a vida em sua
plenitude. Arriscaria. A Ritinha largaria você por um toureiro espanhol durante
uma viagem para a Espanha. Inconsolável, você venderia todos os seus bens e
sairia ´para visitar o mundo, sem pensar no que o amanhã lhe reserva. Um dia em
cada cidade, uma experiência, nenhuma certeza, apenas o mundo para desbravar.
Porém, disseram que era ousado demais, contrataram outro roteirista, que inventou
uma história de entrevista em uma empresa de contabilidade imobiliária, um
sonho secreto de criança. Você está indo para entrevista, não está?
- Sim, mas...
- Vai conseguir, irá trabalhar 8 horas por dia, 5
dias por semana, ganhará um salário razoável, casará com Ritinha e terão dois
filhos. Quando se aposentar, viajará com Rita, somente após os filhos já
estarem crescidos e formados, antes de terminar a faculdade deles não poderá
pagar outra coisa. Morrerá de velhice, perguntando por que não aproveitou a
dádiva da vida.
- Eu...hã...como você sabe disso?
- Li o roteiro dele, é um escritor medíocre e cheio
de vícios. Texto típico desses lixos comerciais. Perfeito para uma novela, não
para a nobre Literatura. Mas fique tranquilo, descobri alguns trabalhos
medíocres que o danado omitiu da equipe, dou uns dois meses para eles correrem
atrás de mim, e eu retornar para o meu posto. Logicamente, você não lembrará
desse encontro.
- Por que me contou isso?
- Porque quero que não vá na entrevista, que o roteiro
dele falhe. Até ele encontrar a causa externa, eu, a direção irá demiti-lo.
- Deixa eu sentar um pouco. Mas e as outras pessoas?
Como é que funciona isso tudo?
- Não tenho como lhe explicar, apenas aceite, a sua
vida é um imenso roteiro.
- Não pode.
- Quando você vendeu o seu primeiro imóvel, você
pensou: vou tomar o maior porre da minha vida. Mas acabou chegando em casa,
abrindo uma “latinha” de cerveja e assistindo a novela.
- Como você sabe disso?
- Eu escrevi. O revisor que acrescentou a parte da novela.
- Quer dizer então, que minha vida já está
programada?
- Exato. Sua maior aventura até os seus 65 anos será deixar
o guarda-chuva em casa pela manhã, sabendo que haverá chuvas esparsas.
Pela
primeira vez o silêncio imperou entre os dois, antes, estranhos.
- Você pode me contar mais?
- Não posso contar muito mais.
- Não, somente uma última dúvida.
- Para onde estamos indo?
- Você não disse que isso é um roteiro? Então
precisamos tomar cuidado para não sermos pegos.
- Isso é verdade, mas...ei o que está fazendo?
O
movimento foi perfeito. Encaixou o braço direito rente ao pescoço do homem. Com
a mão esquerda, segurou a cabeça forçando-a no sentido oposto ao do braço
direito. O homem foi perdendo os sentidos lentamente, mas mesmo assim ele
manteve a pressão. Foi assistindo a vida abandonar o corpo, agora, leve.
Abandonou-o no fundo beco. Ajeitou a camisa agora amarrotada e rumou para a
entrevista de emprego. Como informado, conseguiu a vaga. Sentira medo do
desconhecido, gostava da segurança do tradicional. Tiveram dois filhos, e
quando o mais novo completou três anos, ganharam uma viagem para Paris. No
avião, felizes e eufóricos, ele olhou para a janela e resmungou:
- Trocaram o roteirista - e uma sombra de receio
perpassou seu rosto.
- O que você disse, amor?
- Nada, não.
A
mulher sabia que algo o incomodava, mas ficou em silêncio, não iria atrapalhar o momento. Afinal, iriam para Paris.