quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Feliz ano novo

Gosto de ver a passagem de ano como um ritual necessário. Sim, é o calendário que muda, mas a necessidade de mudança existe dentro de cada um de nós. É quase um alento, uma espécie de política “pão e circo” usada pelo Tempo para não desistirmos e deixarmos esmorecer nossas esperanças. Assim, promessas não cumpridas podem ser renovadas, “ano que vem não comerei mais besteiras”, “ano que vem mudarei o ritmo da minha vida”, “ano que vem realizarei meu sonho”. O termo “ano que vem” é o botão de reset que faz com tenhamos a possibilidade, mesmo que psicológica, de reiniciar a configuração. Eliminar os ajustes indevidos e voltar o mais próximo possível da nossa “configuração de fábrica”.
Os fogos de artifício, as peças de roupas novas, a espera da meia-noite e os pratos especiais são todos os elementos fundamentais nessa reestruturação no “maquinário”.
Além disso, o fim de um ciclo serve como momento para pararmos e analisarmos tudo o que passou. Pesar, ponderar e certificar se estamos no rumo certo, se nossas escolhas foram as corretas. Muitas vezes, é nesse instante que verificamos que por mais que a vida possa ser dura e “cruel”, há muito para agradecer e se orgulhar.
Em vez de feliz ano novo, deveríamos desejar coragem, ousadia (talvez, sirva a da música) e audácia! Quem sabe de posse desses sentimentos, possamos efetivamente alterar o indesejável e realizar a manutenção do que vem dando certo.
É assim que acredito que tenha que ser encarado a passagem de ano. Contudo, isso não passa de um mero achismo.


           Coragem, ousadia e audácia a todos!! 

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Almoço de domingo

Talvez, se tivesse experimentado a situação antes, não teria tomado a decisão. O silêncio era mais alto do que lembrava. Sentia-se pequena no apartamento que, um dia, chamara de minúsculo.
Caminhou lentamente até o banheiro, o que o espelho refletia não era mais a garotinha de antes, era uma mulher, tinha se tornado “grande”. Ligou a torneira e deixou a água escorrer lentamente entre as mãos, era domingo, o primeiro em anos. Fez uma pequena bacia com as palmas em formato de conchas para acumular a água, e a jogou sobre o rosto. Estava gelada, mas a sensação não lhe foi estranha. Repetiu o gesto algumas vezes.
Saiu do banheiro, desistiu de tomar o café da manhã, pegou um velho casaco e foi sentar na sacada, alimentando-se do, antes tímido, sol que agora tentava fazer frente ao ar gélido que emanava. Era uma manhã fria, talvez por isso cada raio de sol que tocava seu corpo ganhava importância, era como se estivesse sendo acariciada lentamente. Ficou ali por infindáveis minutos, sem pensar em nada, sem pensar em si e nem nos outros. Não pensava.
Logo abaixo, duas crianças brincavam na manhã gelada como se o frio não estivesse entre elas. Corriam de um lado para o outro, com mil sorrisos para cada uma. Debruçou-se na murada e, por um instante, sentiu vontade de estar lá embaixo, correndo junto com elas, gritando, mas entendeu que não podia mais ter aquele sorriso, ele tinha idade. Alguns conseguem manter a mesma essência, mas nunca o mesmo sorriso. Aquele sorriso não sofrera as cobranças da vida, não havia sido informado que a brincadeira não era o ápice da vida.
Voltou para dentro, ficara muito tempo na sacada, o sol, as crianças e o frio a haviam feito perder a noção de tempo, contudo isso pouco importava, devia satisfação apenas para si mesma.
Pensou em deitar no sofá um pouco. Desistiu. Iria preparar o almoço, foi a geladeira e tirou todos os ingredientes. Colocou-os sobre a pia distribuídos como tropas à espera de uma batalha. Habituou-se a agradar aos outros, precisava aprender a agradar a si. Perguntou-se o que desejava, e, inconscientemente, iniciou um monólogo sobre o que faria no almoço. Discutiu por algum instante, rebateu a si mesma, contra-argumentou, brigou, desistiu, voltou atrás, chorou. Por fim, decidiu por um cardápio.
Realizou o preparo com carinho nunca antes feito, era o almoço mais importante da sua vida. Enquanto casava os ingredientes de forma minuciosa, surpreendeu-se com o bem-estar proporcionado por dedicar-se ao seu bel-prazer. Cada etapa finalizada lhe trazia um prazer indescritível, estar preocupada com seu próprio gosto, sua vontade, fazia com que, de alguma forma, ganhasse vida, ocupasse um espaço que nunca havia se dado conta que possuía.
Arrumou a mesa como que para uma rainha. Os talheres milimetricamente dispostos na mesa vazia. O prato como um senhor da mesa. Olhava ansiosamente para o relógio, cada segundo se arrastava lentamente. Olhou-se de relance no espelho, resolveu passar um batom, colocou o brinco que mais gostava, usou o mais caro perfume, vestiu-se como uma majestade.
O almoço ficou pronto. Serviu-o com muito cuidado, sentou à mesa como se ali fosse um trono.
Como uma rainha assume um reinado, assumiu o comando de seu próprio reino. Foi o melhor almoço de sua vida. Estava plena.

Essência

- Foi apenas um oi.
- Foi nada, tinha mais coisa ali.
- Você está é ficando louco.
- Você não sentiu o que eu senti.
- Como você pode afirmar que por causa de uma troca de palavras todo esse sentimento aflorou?
- Aí está, não aflorou, já estava lá, já existia, apenas não sabíamos. Ou melhor, não nos conhecíamos.
- Vocês falaram pela primeira vez! Pensa bem.
- Esse é o grande problema das pessoas hoje, pensar.
- Pensar é problema?
- Sim, pensam, raciocinam, mas ignoram a essência, o sentido oculto.
- Acho que você está maluco.
- Não, o amor não é um sentimento?
- É, mas...
- Como querer explicar um sentimento excluindo o sentimento?
- Estamos falando de um oi.
- Não, estamos falando de algo mais. De uma conexão, algo repentino.
- Destino?
- Não, não. Não se enquadra isso em teorias. Não há teoria que explique isso.
- Estou começando a ficar preocupado com você.
- As coisas acontecem, as pessoas estão tão ocupadas que não enxergam mais as coisas que ocorrem ao redor. Trabalham, trabalham e adquirem. Apenas isso. Esquecem da essência.
- Tá bom. Eu trabalho e trabalho. Quer dizer que perdi essa tal de essência?
- Claro, você não queria ser bombeiro?
- Meu Deus, toda criança quer ser bombeiro.
- Exato! Quantas tornam-se bombeiros?
- Eu lá vou saber.
- 0,005%.
-  O quê?
- Isso, 0,005%. Quer dizer que de todas as crianças, 99,995% abandonam seus sonhos em prol de ideais de uma sociedade corrompida e sem essência.
- Mas você queria ser analista de sistemas?
- Claro que não.
- E?
- O quê?
- Como fica a tal da essência?
- Descobri ela há pouco tempo. Não a conhecia antes.
- E agora, que você a conhece, o que você irá fazer?
- Ainda não a conheço tão bem. Estou aprendendo.
- E a moça?
- O que tem ela?
- Ela é seu sonho?
- Não. Ela é minha essência.
- E você descobriu apenas com um oi? Algumas palavras trocadas.
- A essência é repentina, aparece onde menos se espera.
- Olha, um conselho, não faça nenhuma besteira. Pense bem nessa tal de essência antes de cometer uma atitude impensada.
- Eu vou te dar um conselho, presta atenção nos detalhes. Pode jogar fora a chance de encontrar a felicidade.
- Tá bom, pode deixar.
            Essência, pobre coitado, só podia estar ficando louco. Enquanto caminhava, lembrou das brincadeiras com o velho caminhão de bombeiros e da sensação de salvar o urso da irmã das chamas invisíveis que tomavam conta do prédio em forma de cadeira. Por um instante sentiu raiva de si mesmo por não ter tido coragem de seguir seus princípios. Fora engolido pelas imposições do cotidiano. Em qual ponto se perdeu? Ficou tão envolto em pensamentos inundados por lamentações que não viu que uma moça distraída ao celular vinha em sua direção. Os dois se esbarram e o celular dela foi ao chão assim como ela. Prontamente ele a resgatou do chão, bem como o aparelho celular trincado no canto superior.
- Desculpe.
- Não, não. Eu que peço desculpa. Estava tão distraída no celular que esqueci de olhar para frente.
- Eu também estava perdido em meus pensamentos. Você está bem?
- Sim, sim. Obrigada! Então, tá. Até!
- Até!
            Virou-se envergonhado ainda pelo choque quando lembrou. Não podia ser coincidência. Era mais que isso. Será que não era a tal de essência?  Virou-se imediatamente. Podia ser o amor da sua vida. Viu ela virando a esquina, decidiu correr, precisava alcançá-la. Ela olhou de relance para trás, apertou o passo repentinamente. Ele fez sinal para ela esperar, mas, ao contrário, ela começou a correr. Abordou um policial, ele parou repentinamente. O que havia dado nele? Correr atrás de uma desconhecida na rua. O policial fez sinal para que esperasse, será que pensava que ele era um tarado? Decidiu fugir, correu em direção a uma casa, invadiu o terreno e lá assistiu o policial passar na direção oposta. Enquanto o medo inundava seus pensamentos, lembrou do amigo e da história da essência. Sentiu muita raiva, interrompida por um rosnado feroz a um metro de distância. Um cachorro enorme prepara o bote, odiava cachorros. No fundo sabia que o que aconteceria não seria maldade do cachorro, ele era pura essência.
            O amigo?

Encontrou o amor de sua vida, escreveu um livro sobre sua teoria e ganhou muito dinheiro. Ele queria trabalhar em um circo.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Vicissitudes

Vicissitudes

Jeferson Luis de Carvalho

- Não.
- Não?
- Óbvio.
- Você sempre gostou.
- Gostei nada. Você que nunca notou. Como sempre.
- Começou.
- Começou o quê?
- Você, reclamando, dizendo que não faço nada que preste, que não lhe dou atenção.
- O que faz ou deixa de fazer não me interessa mais.
- Dá para parar?
- Parar com o quê?
- De brigarmos, ao menos uma noite. O que eu preciso fazer para você não brigar?
- Não há nada que você possa fazer.
- Quanta amargura.
- Amargura? Isso é realidade, meu bem. Anos jogados fora, anos de dedicação para receber nada. A gente aprende. Às vezes, demoramos, mas, no fim, todo mundo aprende. Eu aprendi. E tem mais, já vou avisando, estou saindo com alguém.
- O quê?
- Que cara é essa? Esperava o quê?
- Dignidade da sua parte.
- Dignidade?
- Sim, dignidade, o que vão pensar por aí. Olha lá, já está com outro, aposto que já traía ele.
- Seis meses!!
- Pois então, seis meses. É muito recente, ambos estamos feridos.
- Feridos? Você esqueceu por que terminamos?
- Vicissitudes da vida.
- Vici... o quê?
- Detalhes, circunstâncias de uma vida a dois.
- Detalhe chamado Renata e medindo meio metro de altura somente nas pernas.
- Já disse que não foi nada disso, e ela não chega a ter meio metro de perna.
- Ah, não! Aí, já é demais.
- Calma, calma, espera. Por favor. Somos adultos, podemos conversar. Como ele é?
- Como é quem?
- Esse rapaz.
- Ele é um homem.
- Homem, rapaz, tanto faz, é tudo igual.
- Não, existe uma grande diferença.
- Eu sou o quê?
- Rapaz, definitivamente, rapaz.
- Explica.
- Viu? Rapaz.
- Desculpa, senhora maturidade. Seis meses, seis meses, bem que minha mãe me avisou.
- Olha aqui, eu só vim porque você falou que precisa conversar urgentemente e...
- Mas não estamos conversando?
- Roberto...
- Tá bom, tá bom. É que estou tentando compreender a situação, você, esse cara, seis meses.
- Roberto, você estava com essa Renata dois dias depois.
- Vicissitudes.
- Eu vou embora, não vou ficar aguentando isso aqui. E a propósito, se esse jantar foi para decidirmos sobre os nossos livros, a resposta é não. Você saiu de casa, você escolheu. E além do mais, o “homem” adora ler, e gosto muito de agradá-lo. E toma essa comanda, a conta é sua.
- Amor! Espera...
Era tarde. Ficou ali sentado olhando para a comanda e a, agora, cadeira vazia. Rapaz? O que afinal diferenciava um homem de um rapaz? Não sabia a distinção entre ser homem e rapaz. Precisava da sua biblioteca de volta, e de sua aurora intelectual. Cultura, a mais absoluta e alta cultura. A que separa os sábios dos ignorantes. Nunca lera nenhum livro dela, mas não precisava, necessitava apenas da essência que os livros parados na estante exalavam.
O garçom veio em sua direção:
- Senhor, não pude deixar de escutar o transtorno, algum problema grave?
- Nada não, meu rapaz. Apenas vicissitudes.
- Perdão, senhor. Vici o quê?
- Esquece, traga-me a carta de vinho.

            Enquanto o garçom afastava-se, sorriu sozinho. Vicissitudes, já era a segunda pessoa que não sabia o significado. Iria procurar outras no google. 

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Abraços

Abraços

Jeferson Luis de Carvalho

Dobrou pela décima vez o mesmo papel já desgastado nas dobras repetidas. Quando não dobrava o papel, contava de forma infrutífera os azulejos do corredor. Eram muitos, impossível de se contar. Lembrou da velha amarelinha, da emoção de alcançar o “céu” antes de qualquer uma das concorrentes. Levou duas surras, três puxões de orelhas e algumas chineladas “de leve” por chegar atrasada em casa. Onde já se viu uma menina chegar a essas horas? Exclamava sua mãe! De origem alemã, nunca foi dada a abraços. Fazia tudo que uma mãe devia fazer, o algo a mais, fazia escondida, nas sombras. Mostrava apenas a mãe séria e carrancuda, a mãe amorosa e delicada surgia antes de deitar, quando abraçava a filha de forma cuidadosa para não acordá-la. Depois de um tempo, ela fingia dormir, e adorava desfrutar daquele abraço.
         Assim passaram-se os anos. Entre abraços furtivos à noite, saiu para estudar, trabalhar, conhecer o mundo. Teve amores, decepções, amores, decepções, decepções e decepções. Encontrou Roberto em um bar. Olharam-se. Ao fim da noite, de forma tímida, ele pediu seu telefone. Três anos depois, ele estava na frente de seus pais pedindo a sua mão em casamento. O pai estava só alegria, a mãe limitava-se a um abraço rígido e temeroso nos dois enamorados. Quando o noivo foi embora, falou para ela:
- Precisa dar um jeito nas coisas, casamento não é brincar de amarelinha.
                Por que lembrava disso tudo agora? As imagens vinham nítidas em sua mente. Lembrou do vestido no espelho, de sua cara de apavorada com o que estava fazendo, de desabar em uma cadeira com medo de não conseguir dar conta de tudo. Entretanto, lembrou do primeiro abraço caloroso que recebeu da mãe sem que fingisse estar dormindo. Um abraço que disse tudo sem dizer nada. Que não pôde retribuir, já que a mãe afastou-se e ordenou que ela levantasse, pois estava na hora.
          O tempo passou para todos, para ela, para o marido, para sua família. O pai partira vítima de um ataque fulminante. Uma dor lancinante, mas a mãe manteve-se forte. Não fosse por ter visto o pai ser enterrado, poderia acreditar que ele ainda estivesse ali, dada era a atitude da mãe. Apesar disso, naquele tempo, o tempo já cobrava seus tributos na face da sua mãe. Por vezes, desejava ter sua mãe de volta. Olhou novamente para o azulejo branco, depois que se torna mãe, o mundo exige que você deixe de ser filha. Por várias noites, queria estar na velha cama, fingir que estava dormindo e receber um caloroso abraço.
         Ouviu seu nome, as lembranças sumiram como nuvens, era o médico. Falou qualquer coisa sobre fizemos todo possível, que não havia mais nada a ser feito. Será que ele conhecia sua mãe? Será que ele sabia que ela trabalhava todos os dias da mesma forma há 60 anos? Não, ele não sabia, pensou. Não sabia dos abraços furtivos, do abraço na menina medrosa antes dela tornar-se a mulher que era hoje. Foi até o quarto, a mãe estava deitada, serena, em paz. Chegou próxima, era ela, mas parecia não ser, ou melhor, não queria que fosse. Queria abraçá-la, assim o fez. Com todo amor que possuía, com toda força que restava. Será que ela sentia aquele abraço? Chorou.
            Acordou. Novamente sozinha. Eram 5 ou 6 da manhã, não importava, nada importava. Estava velha. Cansada. Já vivera seu fardo, sua vez. Virou a cabeça de lado e sentiu saudade do marido, aquela cara de bobo que a fazia sorrir mesmo quando não queria, velho safado. Quanta saudade, quanta!
            Levantou, uma dor aguda acometeu-a. Deitou novamente, sentia dor, muita dor. Uma falta de ar como se mil mãos apertassem seu pescoço, um vômito súbito irrompeu como um vulcão de dentro de seu corpo. Meu deus, sujei minha cama, pensou antes de ser lembrada da dor e da falta de ar. Precisava chamar alguém, não podia. O vômito, a cama, a tontura, a dor no peito, o vômito, a dor no peito, a tontura, a cama suja, a dor no peito, a dor no peito, a dor no peito, apagou.
            Sonhos confusos, e a filha veio à mente. Amava-a, mais do que tudo. Lamentava não conseguir demonstrar. “Diga que a ama velha rabugenta, ela finge dormir todas as noites e você fingi que não sabe que ela espera o seu abraço. Mostre que a ama!” Discutia consigo mesma, uma luta feroz no mais íntimo do seu ser. “O casamento, ela sentiu, não sentiu? Tem que ter sentido. Abracei a minha menininha assustada com todo o amor do mundo, deve ter sentindo. Visto que tinha uma mãe que a amava. Por favor, diga que ela sentiu, diga...ela casou por causa daquele abraço”. Sorriu, misteriosamente sentiu a presença da filha, um abraço maior que qualquer outro, um abraço com gosto de adeus. Não teve mais medo. Sorriu.
                Silêncio.



                                  

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Vocação

Vocação

Jeferson Luis de Carvalho

Todos sempre acharam Adamásio um sujeito sem sal. Foi criado pelos avós devido a um acidente fatal sofrido pelos pais. Logo cedo, a avó, mulher de forte fervor religioso, sentenciou: será padre!
Daquele discurso em diante, todas as ações do garoto corroboravam com a ideia da avó. Em um almoço da família, o tio veio aos pulos chamar a todos para assistirem a brincadeira dos pequenos. Então assistiram atônitos os pequenos em ordem militar, solenemente dirigindo-se a Adamásio enrolado em um lençol azul proferindo bênçãos. Eu não disse?! exclamou orgulhosa a avó.
Os anos passaram e o futuro padre teve seu caminho à vida celestial interrompido por dois eventos inesperados. Ambos ocorreram no mesmo dia e mudaram a vida do pequeno sacristão. O primeiro era loiro, pés e braços de anjo, rosto de santa e chamava-se Juliana. E ali, naquele momento, a hóstia e a batina sua alma abandonou ali mesmo. Amou Juliana por 3 anos, o tempo que dura as paixões juvenis, que desejam mais do que nunca um entrelaçar de mãos e um beijo roubado e repentino. Nenhum dos dois aconteceu, mas o desejo sacristão não sobreviveu em sua alma. Do corpo, quem cuidou foi outra coisa, e somente aqueles que presenciaram podem asseverar o que ocorreu. Foi aquele momento em que uma metade encontra a outra, que ambas se conhecem intimamente sem nunca terem sido apresentados. Assim foi o encontro do garoto com a bola. Se a alma já havia descido dos degraus mais altos da santidade, agora o corpo viera lhe fazer companhia.
A avó reprovava veementemente essa relação. Demoníaca! Onde já se viu, um menino que tinha um futuro brilhante dar-se a jogar futebol, dizia a velha senhora quando alguém exclamava a extrema habilidade que possuía o rapaz. Colégio interno sentenciou a avó. O avô até tentou argumentar, mas contra a voz daquela que a boca alimenta não há o que contrapor.
E para o colégio interno foi Adamásio. Com o coração ocupado por Juliana, e a vergonha de não ter se tornado o que o destino sentenciou, dedicou-se com afinco aos estudos. Logo era tratado como pequeno gênio pelos professores do educandário. Não aceitava menos que a perfeição, e assim as notas máximas tornaram-se sua segunda família. Formou-se com louvores, dois anos antes do que o padrão e com três taças de melhor jogador do campeonato interno de futebol. Para orgulho da avó, foi convidado para estudar física na Universidade de Harvard. Para orgulho do avô, foi convidado para jogar no juvenil do Botafogo. Amava ambos, mas optou por jogar no Botafogo. No dia em comunicou a decisão, a avó desmaiou e teve de ser hospitalizada. Mesmo diante de tal indício de inconformidade, não voltou atrás, mas fora obrigado a prometer que usaria o conhecimento que possuía no futebol.
 E assim o fez. Antes de cada partida, questionava a velocidade do vento, a temperatura ambiente, peso da bola. Além disso, percorria o campo em várias direções contando os passos e anotando tudo na palma da mão. Quando o jogo iniciava, lá estava ele com as mãos com uma multidão de números. E realizava jogadas impossíveis, passes precisos, chutes incríveis. Os repórteres o apelidaram de Doutorzinho, devido a precisão, idade e cultura que demonstrava nas entrevistas. Andava sempre lendo, nas entrevistas por vezes utilizava um intérprete.
- Vai jogar nesse sábado?
- Reputo ser prerrogativa de nosso treinador.
                Todos se olhavam com olhos esbugalhados. Alguns, com vergonha de admitir o desconhecimento, tiravam suas conclusões apressadas. “Adamásio afirma que respeita o pregado pelo treinador”. Com o tempo, e as excessivas erratas dos dias seguintes, solicitaram que o Botafogo contratasse um intérprete. Tiveram que chamar um professor de uma universidade federal com pós doutorado no exterior.
                E assim seguiu o doutorzinho, com seus cálculos, vocabulário complexo e mãos rabiscadas. Conquistou o carioca, brasileiro e chegou a seleção brasileira. Foi à Copa do mundo. Em dias de jogos da seleção, a avó saia da sala, não vou assistir essa perda de tempo sentenciava. Mas é a seleção argumentava o avô. Na verdade, a avó secretamente ligava a pequena televisão preto e branco na cozinha e assistia ao jogo do neto. Foi um sucesso, a seleção ganhou todos os jogos e chegou invicta a final. O país parou.
                No dia do jogo, Adamásio fez todo seu procedimento padrão. Entrou no campo, anotou as medidas exatas, verificou a velocidade do vento, a umidade relativa do ar. O jogo era contra a Itália. Quanta honra para Adamásio, fazer a final contra os conterrâneos de Galileu, Da Vinci e tantos outros. Há quem diga que uma lágrima escorreu de seu olho direito na troca de flâmulas, era capitão apesar da idade. Os italianos trataram de marcá-lo em cima, ou melhor, confundi-lo. O volante responsável pela marcação, fez curso intensivo de português e passou o jogo inteiro berrando números aleatórios no ouvido do brasileiro para atrapalhá-lo com os cálculos. Contudo, assim como era soberba a velocidade de Adamásio em calcular variáveis enquanto a partida rolava, a sua concentração era digna de nota. Os números estavam sempre limpos e claros para ele, e antes dos 30 minutos do primeiro tempo o placar indicava 2x0, incluindo um chute em que a bola foi pega por uma corrente de ar quente simplesmente alçou voo na frente do goleiro que nada pode fazer. A física, puro cálculo matemático. Entretanto, aos 36 minutos de jogo, Adamásio foi cobrar mais um de seus mágicos escanteios, mas surpreendentemente a bola passou longe da área, na verdade armando um contra-ataque que resultou em um gol italiano.
                Daquele jogo poucos gostam de lembrar. Alguns pelo placar de 4 a 2 para os italianos, mas a grande maioria pelo fim de uma carreira. Adamásio ficou alguns minutos parado junto a bandeirinha de escanteio, olhando para a mão esquerda toda rabiscada e coçando a cabeça com a direita. Olhou para o banco pediu para sair. Foi noticiado no dia seguinte que ele havia sofrido uma lesão gravíssima, entretanto, a verdade é que errara um cálculo. Colocara um sinal invertido. Nunca mais se perdoou. Dado a perfeições, não admitia ter cometido tão grosseiro equívoco. Por mais que amigos e conhecidos tentassem dissuadi-lo, convencê-lo de que havia mais a ser feito, estava irredutível, abandonaria o futebol, em respeito à ciência.
                Foi com lágrimas nos olhos que a avó recebeu a notícia, iria ser padre. Estudou durante oito anos, alheio aos folhetins, às reportagens sobre o craque que largou tudo pela vida religiosa. Foi com igreja lotada de curiosos, imprensa e, claro, sua avó, dentro de um vestido floreado parecendo um jardim em toda sua plenitude, que rezou a primeira missa. Rezou em latim, sem nenhuma palavra em português, nem ao menos um espirro. Latim clássico, em sua essência. O rito durou exatos 60 minutos, cronometrados perfeitamente, inclusive nas voltas velozes dos segundos. A quantidade de pães consagrados foi exatamente a necessária. Ao final da cerimônia, saiu em direção a sacristia sem levar em consideração os pedidos de fotos.
                Após se despedir da avó orgulhosa, viu-se sozinho dentro da imensa igreja, e sorriu novamente após 8 longos anos. Cálculos perfeitos, temperatura ambiente devidamente regulada com aberturas de janelas...não havia perdido a mão.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Roteiro

Roteiro

Jeferson Luis de Carvalho

- Ei!
- Hã? O que é isso? Solte meu braço!
- Vem cá, vem cá, preciso te contar uma coisa.
- Contar o quê?
- Sua vida...
- O que tem ela? Solta meu braço!
- Já está programada, já tem final, tudo parte de um roteiro.
- Olha aqui! Ou você me larga ou eu...
- A Rita, sabe a Rita? Você vai casar com ela.
- Como assim? Que história é essa de Rita, como você conhece a Rita?
- Foi eu que coloquei ela na sua vida.
- Olha, eu vou chamar a polícia.
- Você disse que ela era um “chuchuzinho”. Que mulher ouviria isso e ficaria com a pessoa hoje?
- Como você sabe disso?
- Já disse, sua vida é um roteiro. Eu mesmo escrevi.
- Então o que vai acontecer agora?
- Não sei, fui demitido.
- Agora está ficando bom. Minha vida é um roteiro, você que o escreveu, mas foi demitido?
- Sim, seu final era monótono.
- Como assim?
- Sou formado, entende? Graduado em Letras, especialização em escrita criativa, li todos os clássicos, estudei a teoria, mas aqui queriam que eu fizesse o óbvio. O dinheiro era bom, contudo precisava de mais. Uma reviravolta, uma trama elaborada, algo mirabolante, queria que você fosse para a guerra como voluntário.
- O quê?
- Sim, ajudaria as pessoas necessitadas...
- Mas eu sou...
- Corretor de imóveis, eu sei, escrevi, lembra? Era para ser contabilista. Ganharia seu dinheiro todo mês, mesma coisa, salário fixo. Protestei. Já que não poderia dar a vida que queria, que desse um pouco de emoção. Corretor de imóveis tem suas nuanças, um mês ganha muito, dois meses não ganha nada. Uma pitada de aventura.
- Me solta!
- Não, espere! Você viveria o que o mundo proporciona. Eu tiraria você dessa mesmice. Você viveria a vida em sua plenitude. Arriscaria. A Ritinha largaria você por um toureiro espanhol durante uma viagem para a Espanha. Inconsolável, você venderia todos os seus bens e sairia ´para visitar o mundo, sem pensar no que o amanhã lhe reserva. Um dia em cada cidade, uma experiência, nenhuma certeza, apenas o mundo para desbravar. Porém, disseram que era ousado demais, contrataram outro roteirista, que inventou uma história de entrevista em uma empresa de contabilidade imobiliária, um sonho secreto de criança. Você está indo para entrevista, não está?
- Sim, mas...
- Vai conseguir, irá trabalhar 8 horas por dia, 5 dias por semana, ganhará um salário razoável, casará com Ritinha e terão dois filhos. Quando se aposentar, viajará com Rita, somente após os filhos já estarem crescidos e formados, antes de terminar a faculdade deles não poderá pagar outra coisa. Morrerá de velhice, perguntando por que não aproveitou a dádiva da vida.
- Eu...hã...como você sabe disso?
- Li o roteiro dele, é um escritor medíocre e cheio de vícios. Texto típico desses lixos comerciais. Perfeito para uma novela, não para a nobre Literatura. Mas fique tranquilo, descobri alguns trabalhos medíocres que o danado omitiu da equipe, dou uns dois meses para eles correrem atrás de mim, e eu retornar para o meu posto. Logicamente, você não lembrará desse encontro.
- Por que me contou isso?
- Porque quero que não vá na entrevista, que o roteiro dele falhe. Até ele encontrar a causa externa, eu, a direção irá demiti-lo.
- Deixa eu sentar um pouco. Mas e as outras pessoas? Como é que funciona isso tudo?
- Não tenho como lhe explicar, apenas aceite, a sua vida é um imenso roteiro.
- Não pode.
- Quando você vendeu o seu primeiro imóvel, você pensou: vou tomar o maior porre da minha vida. Mas acabou chegando em casa, abrindo uma “latinha” de cerveja e assistindo a novela.
- Como você sabe disso?
- Eu escrevi. O revisor que acrescentou a parte da novela.
- Quer dizer então, que minha vida já está programada?
- Exato. Sua maior aventura até os seus 65 anos será deixar o guarda-chuva em casa pela manhã, sabendo que haverá chuvas esparsas.
                Pela primeira vez o silêncio imperou entre os dois, antes, estranhos.
- Você pode me contar mais?
- Não posso contar muito mais.
- Não, somente uma última dúvida.
- Para onde estamos indo?
- Você não disse que isso é um roteiro? Então precisamos tomar cuidado para não sermos pegos.
- Isso é verdade, mas...ei o que está fazendo?
                O movimento foi perfeito. Encaixou o braço direito rente ao pescoço do homem. Com a mão esquerda, segurou a cabeça forçando-a no sentido oposto ao do braço direito. O homem foi perdendo os sentidos lentamente, mas mesmo assim ele manteve a pressão. Foi assistindo a vida abandonar o corpo, agora, leve. Abandonou-o no fundo beco. Ajeitou a camisa agora amarrotada e rumou para a entrevista de emprego. Como informado, conseguiu a vaga. Sentira medo do desconhecido, gostava da segurança do tradicional. Tiveram dois filhos, e quando o mais novo completou três anos, ganharam uma viagem para Paris. No avião, felizes e eufóricos, ele olhou para a janela e resmungou:
- Trocaram o roteirista - e uma sombra de receio perpassou seu rosto.
- O que você disse, amor?
- Nada, não.

                A mulher sabia que algo o incomodava, mas ficou em silêncio, não iria atrapalhar o momento. Afinal, iriam para Paris.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O gato

O gato

Jeferson Luis de Carvalho 

Chegou ronronando, mansinho, desconfiado e curioso. Era uma visão nova, aquele ser enorme, aparado suavemente por uma rede, com uma das pernas suspensas para fora e o os olhos fixos em um livro. Livre, mas sempre por perto, era a primeira vez que o gato via a rede sendo utilizada. Era o seu horário de Sol e o seu lugar de repouso. Agora era presa fácil daquela ameaçadora perna que suspendia-se para frente e para trás. Banhou apenas as patas da frente naquele feixe de luz matinal. Poderia mudar de lugar, mas definitivamente não queria. Chegara primeiro, deveria ter privilégios. O homem notou sua presença, retirou o livro de seu rosto e resmungou algo do tipo “peguei o seu lugar?” em voz ridiculamente infantil. Ao menos, havia afastado aquela longa e asquerosa perna e o gato delicadamente, como um legítimo lorde, pousou seu corpo contra a agora morna superfície da murada.
A murada não possuía mais de 50 centímetros de altura, mas, repousado ali, o gato parecia um faraó contemplando seu reino. O homem desviou levemente o olhar para ver aquela forma estendida ao Sol. Assim como olhou, voltou a viajar sua viagem pelas palavras. Adorava ler, sentia-se livre, viajante sem fronteiras, um explorador munido de um passaporte irrestrito. Estava maravilhando-se com a leitura de um livro de Borges. Quanta sabedoria em poucas palavras. Na verdade não lia, degustava, sorvia as palavras, extraía cada paladar. Poderia passar anos naquele local, daquela maneira. Aquele gato pouco distraiu-o.   
O Sol se pôs, o homem entrou em casa e o gato foi para o local onde os gatos sem donos repousam. A noite chegou, cresceu, tornou-se corpo, presença e inundou o mundo com sua forma. Mas ela acabou. O Sol saiu de seu refúgio, o homem saiu de sua casa de pedra e abrigou-se na rede novamente com seu livro. E novamente o gato surgiu, sorrateiramente procurou seu espaço. Deteve-se apenas diante da perna suspensa ameaçadoramente para fora da rede. Apesar de inerte em sua leitura, o homem recolheu a perna em sinal de respeito pelo espaço sagrado do bichano, o que fez com que o felino imediatamente ocupasse o local.
E assim sucederam-se os dias, o Sol saía, o homem sentava a rede e o bichano sentava na murada. A perna parou com o tempo de ser uma inimiga, e, por vezes, contatos ocorriam, mas cada um mantinha-se em seu mundo, o homem lendo o mundo no livro e o gato lendo o livro no mundo. Os que passavam e viam a cena, juravam que ambos pareciam dois velhos amigos em uma tarde qualquer, outros afirmavam que eram como dois inimigos confinados em um pequeno espaço, tendo que conviverem forçadamente com a presença um do outro. A verdade é que não eram nem um e nem outro. Eram o que eram, sem querem ser. Faziam o que tinham que fazer, fosse pela natureza ou pela vontade.
O tempo passou para eles assim como passa para todos. E o que antes era obra do acaso, agora era obra da providência. Viviam aqueles momentos, homem e gato. Não passarem por aquele ritual passou a ser algo impensável para ambos. Certo dia, o gato cansou-se de ser gato, e para a rede saltou. Demorou-se a reconhecer o terreno, tateou cuidadosamente o livro depositado no interior da rede. Com dificuldade e contando com suas habilidades, virou uma folha. Não sabia ler, não como os humanos, mas sabia sentir. Deitou-se sobre as folhas e como mágica, sentiu as palavras subirem por suas pequenas patas, e adentrarem em sua cabeça, tornando forma e conteúdo. O homem chegou e viu a cena, teve um ímpeto de espantá-lo de lá, contudo, viu o que o gato via todos os dias. Então entendeu, o gato lia por ele, assim como agora ele lia pelo gato. Sentou-se na murada e ela pareceu-lhe mais alta. O Sol era mais quente ali. O local era aconchegante, então decidiu esticar as pernas como o gato fazia. Acomodou-se. Respirou um dos mais serenes ar que já havia respirado. Encostou a cabeça na pilastra que interrompia o fluxo da murada e ficou a admirar o gato com sua leitura. Mas gatos não podiam ler, ele pensava. Porém algo lhe ocorreu, alguém já havia questionado a algum gato esse fato? Viviam os homens a julgar o mundo sob seus conceitos e verdades.  Decidiu aceitar o fato de que o gato lia.
Daquele dia em diante, deixava sempre um livro na rede. Revezavam-se nela. Exceto quando um deles estava sofrendo com uma leitura e precisava urgentemente continuá-la, a ordem de chegada prevalecia. As pessoas não entendiam essa relação, mas eles entendiam-se. Liam poemas, filosofias e alguns romances. O gato gostava de filosofia, e sobre ela versava miados e ronrons firmes e seguros. Não conseguiam mais distinguir quem era o homem e quem era o gato.
Um dia, um deles não apareceu. Sem motivo ou explicação, simplesmente não mais se fez presente. A família entrou em desespero. Queriam chamar as autoridades, mas não sabiam como explicar o caso. Amigos empenharam-se nas buscas. Aquele que sobrou, sentou na rede pálido e sem vida. Fora separado de uma parte da vida, uma parte de si. Quem ali esteve jura até hoje que não se identificava quem havia sumido. Chegaram à conclusão que o gato desaparecera, e trataram de levar o homem a um especialista para sair daquele estado. O médico chamou a família e disse que dessem mais duas semanas que ele voltaria ao normal. E assim ocorreu. Mas estava diferente, não sentava mais a rede, apenas na murada. Gostava de andar à noite pela casa com maestria, como se estivesse em um dia claro. Lambia as mãos constantemente. A mulher desconfiou, mas preferiu aceitar a situação, tinha filhos e não queira desintegrar a paz da família.

O que ficou foi o gato. 

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Ponto de vista

Ponto de vista

Jeferson Luis de Carvalho 

- Olha, olha!
                Falou apontando para uma loira estonteante que desfilava pelo salão.
- Essa deveria ser presa.
- Nem fala, isso faz até mal.
- Olha, viu isso? Tava me cuidando.
- Mentira.
- Juro.
- Tava nada.
- Eu vou lá.
- Vai nada.
- Quer apostar?
- Cinquentinha.
- Feito. Fui.
- Duvido.
- Vai passar reto.
- Olha lá! Ele tá falando com ela mesmo.
- Eu não acredito.
- Ela tá rindo.
- Se não fosse casado, era minha.
- Era nada.
- Era sim.
- Para começar, você nem coragem de levantar dessa mesa teria.
- Não me leva mal, Jorginho, mas concordo com o Jurandir, você não teria nem coragem de dar oi.
- Eu? Você não me conheceu solteiro. Era o terror da mulherada.
- Era nada, não pegava nem gripe.
- E outra coisa, tive coragem para ter três filhos, não vou ter coragem de falar com uma mulher?
Jurandir tomou um grande gole de sua cerveja e balançou a cabeça de forma afirmativa. Carlos apenas abaixou a cabeça de forma solene. Eram todos casados, com seus filhos e compromissos dia a dia.
- Verdade! Sabe que pensei uma coisa agora? Ser solteiro é mamão com açúcar, casamento é para os fortes. Aquele que consegue suportar a rotina do casamento é guerreiro.
- Guerreiro? É herói. Trabalho, chefe, contas, mulher, filhos. Isso é muito para uma vida só.
- Com certeza, é...olha lá! Lá se foram os meus cinquentas.
- Por quê?
- Olha o jeito que estão dançando.
- O que tem?
- Está no papo, conheço dessas coisas.
- Sabe nada.
- Sei sim.
- O que você sabe é dançar Galinha Pintadinha.
- É...isso também. Quem foi que inventou esses DVD’s?
- Bah, eu adoro. Coloco e esqueço. O Marquinhos fica lá na frente, dançando e dançando. E eu, posso fazer minhas coisas.
- Eu não aguento mais. Dia desses, deixei de assistir um jogo do campeonato inglês porque o Juliano queria assistir essa coisa.
- Qual jogo? Do Manchester?
- Não, era segunda divisão.
- Segunda divisão? Mas então o Juliano estava certo.
- Segunda divisão inglesa é demais Jorginho.
- Tem bons jogos. Eu gosto. Putz.
- O que foi?
- Ele acabou de cochichar no ouvido dela.
- E?
- Ela riu despreocupada. Não tem mais volta.
- De onde você tirou isso?
- Experiência.
- Essa é boa.
- Vocês dois estão querendo me derrubar.
- Falar a verdade não é derrubar ninguém.
- Estão vendo aquela morena?
- Qual?
- Ali, perto do bar.
- Virge, que coisa mais linda.
- Pois então, não para de olhar para cá.
- Deve estar intrigada com sua cara de bobo para ela.
- Ah, se eu estivesse sozinho.
- Você está sozinho, vai lá.
- Vou mesmo.
- Cinquentinha.
- Vou mesmo.
- Vai aonde?
A voz feminina quebrou a discussão masculina da mesa. Os três, como crianças pegas roubando brigadeiro antes da festa, se entreolharam.
- Onde está o Ricardo?
- Adivinha.
- Ricardo não toma jeito.
- Solteiro, o que você queria? E que demora foi essa no banheiro?
- Estava lotado. E que cobrança é essa Jorginho? Tá pensando o quê?
                Os outros riram disfarçadamente. Milena era geniosa e extremamente dura. Jorginho, era apenas sorrisos. Combinavam. Já estavam há mais de quatro horas na festa e o cansaço começou a bater.
- Vamos embora, amor?
- Já?
- Sim, temos que pegar as crianças na mãe.
- Tá certo.
- Nós também vamos indo.
- Então vamos todos.
                Na saída, Jorginho acenou para Ricardinho que confundia-se com a misteriosa loira de tão juntos que estavam. Ficou imaginando o que faria se estivesse sozinho naquela festa. Imaginou-se dando oi para a morena. Bebendo até cair com Ricardinho e a loira. Os quatro saírem juntos da festa para uma saideira. Entrou no carro, olhou para Milena. A esposa era muito bonita ainda, mesmo após dois filhos, tinha sorte.
- Vamos dar uma esticadinha?
- Ué? Tá doente?
- Por quê?
- E as crianças?
- Como se minha mãe fosse se importar de ficar a noite toda com elas.
                Não foram para casa. Passaram a noite fora. No outro dia, pegaram as crianças, Jorginho fez um churrasco, as crianças brigaram, Milena gritou para Jorginho dar jeito, ele disse que estava fazendo o almoço, ela retrucou afirmando que ele estava fazendo o churrasco e ela “apenas” o arroz, a maionese, a sobremesa e ainda lavaria a louça. Ele pediu para as crianças pararem. Após dez minutos tentando sem sucesso acalmar os ânimos, tirou do jogo de futebol e pegou o DVD da Galinha Pintadinha. À noite, a garganta reclamou da noite anterior. Milena lhe mandou para a cama, fez um chá e aos cafunés fez o marido dormir.  
                Ricardinho avistou a turma saindo da festa, mas não queria abandonar a companhia. Acenou de longe para Jorginho. Pobre Jorginho, antes tão alegre, agora indo para casa às 3 da manhã. Antigamente, não saiam antes das 7. A loira já estava a quinze minutos falando com uma amiga, queria chama-la, mas não lembrava o nome. Meu Deus, como era linda. Era um sujeito de sorte. Saíram de lá às 4:20, ele chegou em casa às 8 h. Caiu na cama. Acordou às 2 da tarde. Às 3, pediu um lanche. Que noite, que mulher, como era mesmo o nome dela? Pensou em sair durante a tarde, não teve ânimo. Sentiu a garganta, caiu de cama. Queria alguém para lhe cuidar, quem sabe assistir um filme. Onde enfiou o telefone dela? Lembrou, não adianta ter o número, não lembrava o nome dela. Só conseguiu dormir às 3 da manhã.

                Na segunda-feira, todos acordaram muito cedo. A semana iniciava novamente. A festa havia sido ótima.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O sonho

 O sonho

Jeferson Luis de Carvalho

Acordou mais uma vez assustado. Já estava ficando recorrente. Sempre o mesmo sonho. O mesmo restaurante, o mesmo pedido, a mesma garçonete, o mesmo horário, mas principalmente a mesma mulher virando-se lentamente na sua direção. Cabelos escuros, sorriso farto, mirava-lhe diretamente nos olhos. Ele, imediatamente, levantava, caminhava em sua direção, a abordava e sem falar muito a beijava apaixonadamente. Entretanto, o beijo nunca acabava, sempre despertava assustado antes. 
Toda noite era a mesma coisa. Procurou ajuda psiquiátrica, reviveu momentos traumáticos, comprou pílulas milagrosas, nada ajudava, bastava adormecer para o mesmo sonho iniciar. 
Foi a uma cartomante que lhe informou que era um aviso. Uma premonição. Passou a investigar todos os restaurantes da cidade, definitivamente não era dali. Vendeu a casa, seus bens, saiu do emprego e passou a peregrinar por restaurantes pelo país inteiro. Não encontrava.
Descobriu que estava apaixonado por aquele beijo que ocorria todas as noites. Não tinha mais descanso. Tentava pensar em outra coisa, iniciar outros projetos, mas o sonho não o abandonava. Seus recursos financeiros estavam se esgotando. As pesquisas pela internet, as visitas aos mais diversos estabelecimentos, não surtiram efeitos. Não encontrava o restaurante. Após mais uma noite e mais um beijo, decidiu retornar. Pegou sua bagagem e iniciou o caminho de volta.
No ônibus, apoiou a cabeça lentamente no banco e ficou pensando em tudo que havia deixado para trás, na frustração, mas, principalmente, naquele beijo. O beijo mais irreal real que existe. Sim, real. Afinal, pensava, cada fato, cada momento vivido na suposta “vida real”, após a realização, escondia-se no campo da lembrança, dividindo espaço com os sonhos. Portanto, aquele beijo era tão real quanto. 
Absorto em seus pensamentos, entrou no mundo dos sonhos. Como sempre ocorria, à tarde, o restaurante não surgia, a linda morena também não. Na verdade, era apenas à noite, após a meia-noite que ela chegava. Acordou de sobressalto, o ônibus estava fazendo uma parada para o almoço. Desceu a contragosto. Não conhecia aquele restaurante. Apesar do aparente bom movimento externo, o local aparentava uma gradual falta de cuidados estruturais. A tinta estava desbotada e as escadas que levavam para o segundo nível apresentavam buracos em seus degraus. Entretanto, qual não foi a surpresa que teve ao entrar no prédio. O ambiente externo era bem cuidado e lembrava muito um lugar familiar. Não conseguia lembrar qual. Sentou no primeiro banco à esquerda. Nem pensou muito no quer pedir, já sabia há anos. A garçonete ele conhecia muito bem, deixou-a confusa quando deu um olá como se fosse a uma velha amiga. Evitou olhar para frente, teve medo, estava finalmente no restaurante do sonho. 
Ela estava lá. Cabelos escuros, uma indefinição entre o liso e ondulado, como um mar calmo chacoalhado por ondas isoladas. Ela virou e sorriu para ele. Imediatamente, voltou-se novamente para frente. Ele não podia mais esperar, levantou, caminhou até ela. Parou ao seu lado, ela mirou-o de cima a baixo. Ele disse oi. Ela respondeu. Ele a pegou pela mão, ela retirou. Ele pegou a mão novamente, dessa vez ela não recuou. Inclinou o rosto em direção ao rosto dela. Os lábios se tocaram, o beijo guardado é sempre juvenil, intenso em sua primeira liberdade. Foi como no sonho. Entretanto, ele não despertou e pode contemplar o rosto de sua musa com os olhos fechados se afastando lentamente. Ela abriu os olhos, eram como dois furacões atraindo tudo e a todos. 
- Como no sonho, achei que nunca veria você. Estou há três anos pagando cafés nesse mesmo lugar, nessa mesma hora, todos os dias.
 Sonhava com ele há mais de seis anos.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A foto


          Cortou. De forma firme e decisiva. Doeu, não pôde negar, mas conseguira. Olhava vitorioso o órgão pulsando em suas mãos, vermelho, algumas manchas esbranquiçadas, mas no conjunto, vermelho. A faca resolvera guardar. Fez ele mesmo os pontos. Como um ritual de passagem. Aproveitara o feriadão, três dias em casa seriam suficientes. Passou a antiga mistura da avó, cicatrização rápida. Guardou o órgão em um desses potes de conservas e colocou na geladeira, ao lado de uma velha foto. Que ele sofra, que ele veja, eu serei senhor de meus próprios desejos.
            E assim acordou na manhã da segunda-feira. Não pensou em pegar o telefone, em ligar, não pensou nela. Aliás, pensava com clareza nunca antes experimentada. Estava avesso aos medos humanos. Resolvera poupar tempo. Abriu a janela de sua cozinha e meteu o pé direito para fora. Eram dez andares, mas bastou verificar que a superfície era firme para caminhar pelas amuradas vizinhas interrompendo o passo apenas para saltar para os andares inferiores. Assim, em menos de 1 minuto pedia um táxi.
          Chegou ao trabalho e nunca rendera tanto. O chefe, espantado, lhe deu uma promoção imediata. No almoço, calculou e previu cada movimento, e, antes que os colegas sentassem para comer, já estava servido e sesteando na salinha da repartição.
           Despertou sem precisar de aviso. Pela manhã era funcionário, à tarde era gerente. À noite, seria presidente. A cada empreitada, seu sucesso e domínio eram tão extraordinários e evidentes, que as três promoções seguintes foram lhe passadas pelos antigos ocupantes. Sua lógica era infalível, um diretor, diante de mais uma tarefa impossível realizada, entregou-lhe a chave e pediu demissão. Eram 17 horas e já era diretor. Faltava-lhe a presidência. Estavam há três horas em reunião, acionistas, presidente e os representantes do maior cliente da empresa. O impasse parecia impossível de ser resolvido. Entrou na sala, escutou todas as partes envolvidas, traçou uma saída em menos de 5 minutos. Foi o maior contrato da história da companhia. Os acionistas sem titubear, nomearam-no presidente.
            Um dia, apenas um dia, e seu procedimento cirúrgico havia lhe dado a presidência. Tentou sentir emoção, mas tudo que sentia era um não sentir. Uma não existência. Apenas pensava, raciocinava. Ousou fazer algo irracional, não conseguiu. Tentou escrever algo sem sentido, mas lhe escaparam versos rigidamente metrificados e frios. Extremamente frios. Um desespero lhe tomaria o corpo se tivesse tal sentimento. Lutou para sair da empresa, o corpo não permitiu. Mesmo na rua, a luta corporal foi terrível. Não estava cansado, poderia trabalhar mais, fazer o que em casa? Buscar aquele objeto ilógico para quê?
               Chegou em casa. Não havia excitação, raiva, nada. Apenas, razão. Abriu a geladeira e viu a fotografia. O possível erro, sofrimento, o incorreto. Olhou para seu coração ao lado da fotografia. Pegou ela e olhou. Uma pontinha de emoção veio-lhe à mente. Era isso, identificara o problema. Instantaneamente abriu a camisa e cortou os pontos de forma rápida e direta, lá no fundo, bem no fundo, um pequeno pedaço do que fora seu coração batia bravamente. Cortou-o. Nunca mais sofreu.       

No banco

Jeferson Luis de Carvalho    


      
- Que demora!
- Como?
- Que demora! No atendimento!
- Ah, sim, como sempre.
- Ao menos, estamos sentados.
- É verdade.
- Seguro desemprego?
- Sim, saí mês passado, ou melhor, saíram comigo!
- Isso acontece.
- E você? Trabalha ou trabalhava com o quê?
- Sou matador.
                O sujeito caiu na risada.
- Essa é boa.
- Como?
- Você, matador.
- O que tem?
- O que você faz de verdade?
- Já disse, sou matador.
- Tipo matador, matador?
- É, matador.
- Mas isso lá é profissão?
- Bem, para ganhar dinheiro, limpo vidraças.
- Então você é limpador de vidraças?
- Não, eu sou um matador que limpa vidraças.
- Você ganha dinheiro para matar pessoas?
- Não. Mato pessoas por princípios, não por dinheiro.
- Por princípios?
- Sim, mato pessoas que estejam desperdiçando a vida.
- E como você sabe?
- Ué, converso com elas, abordo, investigo e decido.
- Como assim? Você decide na hora?
- Sim.
- E como ter certeza?
- Certeza?
- Sim, e se você matar alguém enganado?
- O que tem?
- Ora, imagina, alguém morrer enganado.
- Todos erram, é natural, não vejo problemas nisso.
- Mas é uma vida.
- Entre 6 bilhões, uma vida não significa lá aquela coisa. Não sinto culpa, não tenho pretensão de ser perfeito. Costumo acertar a grande maioria das vezes, os erros, são ossos do ofício. Mas, realmente, nunca terei certeza.
- Como assim? É uma vida, um ser humano.
- A vida é supervalorizada, a existência ou não do ser humano não modifica o andamento do restante do planeta. A nossa existência aqui nesta espera, não influência a ordem das coisas. Poderíamos desaparecer nesse exato instante e aquela mulher mexendo no celular nem ao menos notaria.
- E a polícia? Nunca pegou você?
- Sou o melhor no que faço, já matei em uma praça pública. Em pleno domingo. É surpreendente o desespero das pessoas em cuidarem apenas das suas vidas. Você acha que alguém se importa?
- Ninguém deixaria alguém caído no chão sem vida.
- Você realmente acha?
                Nisso, levantou, e antes que o outro pudesse fazer qualquer coisa, acertou-lhe um golpe seco um pouco abaixo da costela. O homem surpreendido sentiu o ar lhe faltar e o grito sair silencioso. O atacante deitou seu corpo lentamente contra a parede e saiu tranquilamente. O homem deixou-se tomar por uma sensação estranha de bem estar. Seus olhos foram fechando, e a última coisa que viu foi o número da sua senha sendo chamado.

                Ao final daquele turno de trabalho, um funcionário da limpeza viu, embaixo de um cliente dormindo, uma mancha de sangue.


terça-feira, 4 de novembro de 2014

A promessa

A promessa

                                                                                                             Jeferson Luis de Carvalho

O parque, ao lado, era o mesmo que lembrava daqueles anos perdidos.  E o campo surpreendentemente ainda apresentava aquela leve inclinação para o lado da “goleira do mercado”. Era domingo, dia de jogo no campo da cidade, e seu filho, “Junior Montanha”, jogaria pela primeira vez um jogo da taça da cidade. Assim que chegou o avistou. Uma cabeça mais alta que a mais alta cabeça em campo. O jogo era entre garotos de onze anos de idade, mas o rapaz aparentava no mínimo quinze. Sentou-se no espaço destinado informalmente aos pais, identificado apenas por uma aglomeração de câmeras fotográficas e rostos vermelhos de orgulho. Acomodou-se ao lado de um senhor miúdo que lhe perguntou qual deles era seu filho, respondeu que era o número 5, recebendo um ar de surpresa causado pelo tamanho do menino.
                O jogo começou. O adversário, um menino ruivo muito inteligente, driblou dois marcadores de uma só vez, deu uma linda “janelinha” no terceiro marcador e... A cena foi forte. O pobre rapaz ameaçou que ia para um lado e foi para outro, porém não contava que Montanha, após ver que perderia a jogada, virasse o corpo, como se estivesse perdido devido ao drible, na direção do habilidoso meio campo. Foi como se o canhoto ruivo encontrasse de frente uma locomotiva, o barulho do rosto no corpo de seu filho foi ouvido da arquibancada. Montanha correu atrás da bola, agora abandonada, e saiu driblando ao seu estilo: levando todos pelo caminho. Os pais do time adversário berravam contra o juiz, mas a verdade é que Montanha fora esperto e maldoso, fez falta sem fazê-la, levantando saudações da torcida.
                Eram 20 minutos de jogo e o placar mostrava 3 x 0, três gols de Montanha, dois meninos adversários machucados e um bravo pequeno guerreiro que jogava com um pedaço de algodão nas narinas devido a uma cotovelada “involuntária” de Montanha. O pai estava abismado com o que via. Seu filho era amado pela torcida do time, movida por um espírito de competição fervoroso, e odiado mortalmente pela torcida adversária. O campo era como o seu domínio, e ali ele era senhor absoluto.
                O segundo tempo começou como terminou o primeiro. Montanha era soberano. A essa altura do jogo, os jogadores adversários já evitavam dividir ou mesmo chegarem próximo de uma bola visada pelo poderoso meio-campo. O jogo já apontava 5 x 0 quando em uma escapada pela esquerda o time adversário conseguiu descontar com o garoto do algodão nas narinas.
                Estranhamente, quando o jogo foi reiniciado, Montanha não correu como uma avalanche monte abaixo atrás da bola, mas sim foi lentamente em direção do artilheiro adversário e falou algo no ouvido do rapaz. Dois minutos depois, o rapaz fez sinal para o banco que estava cansado e precisava sair. 7 x 1, 7 x 1, uma vitória acachapante. Entretanto, o pai não sorria. Entre tapinhas nas costas de outros pais ali presentes, correu em direção ao filho e lhe deu os parabéns. Apenas isso. O filho, por sua vez, sorria orgulhoso de ter feito 7 gols em uma partida.
                Ao entrar no carro, após toda a cerimônia de entrega de troféus, o pai mudou seu semblante. Estava sério e pensativo. O filho radiante pela sua conquista, individual e coletiva, não compreendeu, primeiramente, que o pai estava com um estado de espírito totalmente avesso ao que imaginava. Contudo não haveria cara ou mau humor no mundo que diminuiria sua emoção, ganhara o campeonato, sim, ganhara, com o verbo conjugado na primeira pessoa. Marcara, driblara, fizera todos os gols, era um craque. Brincava distraidamente com um troféu que em sua base apresentava: Melhor jogador da partida! Estava simulando que escrevia as palavras com os dedos, realizando os contornos com o indicador. Em um semáforo, o pai falou:
- Aquele menino, o ruivo, será que se machucou?
- Sei lá, viu como bati e o juiz nem viu?
                O pai olhou de relance para o menino e captou seu sorriso malicioso. Uma lembrança lhe veio à cabeça, uma memória que ele relutava, uma comparação que não queria fazer. O filho perguntou se podiam parar na lanchonete para poder comemorar, o pai afirmou que precisava chegar a casa o quanto antes.
                Antes de entrar em casa, parou na calçada com o carro, um vizinho com seu cachorro aguardava impacientemente o motorista decidir. Falou para Junior descer na frente, precisava ir buscar uma encomenda que havia feito.
                Retornou após duas horas, uma sacola com inúmeros DVD’s. Encontrou a esposa mimando o grande campeão, e pediu para que o filho o acompanhasse até a sala de televisão. O filho correu do lado do pai, troféu de melhor jogador em campo nas mãos. Enquanto o pai colocava o dvd, o filho curioso sentava no sofá.
- O que quer que eu veja?
                E o pai sem dizer nada apertou o play e chaveou a porta. Após duas horas, dez batidas na porta da esposa, o filho saiu com os olhos marejados. A mãe surpresa perguntou o que havia acontecido e o menino sentenciou:
- Não jogo mais futebol! – e correu para o quarto sem ao menos olhar para trás.
                Aflita, a mulher foi ter com o marido, e o encontrou olhando velhas fotos em uma gaveta.
- O que aconteceu com o Junior?
- Mostrei apenas o necessário, a realidade. O futebol é duro, não quero que ele perca o foco nos estudos. Ele tem que fazer uma faculdade, virar doutor, ser alguém na vida, não dá para ficar preso a esse sonho de ser jogador de futebol.
- Mas ele tem apenas onze anos!
- É no início que surgem os sonhos que irão atormentar o futuro. Que farão com que todos os objetivos alcançados sejam pequenos perante o que não foi.
                Incrédula, a mulher saiu do cômodo inconformada com a situação.
                Enquanto ouvia os baques causados pelos passos da esposa no corredor, o homem passou a mão em seu joelho olhando o velho retrato, o time dente de leite do bairro, no qual era a figura mais sorridente, o craque do time. Aquele jogo, aquele drible, a lenta movimentação do volante, a vantagem obtida, a perna surpresa na altura do joelho, a dor lancinante, o sorriso do menino duas cabeças mais alto, a perda do título e de um sonho.  Olhou a cicatriz um pouco acima do início do joelho e lembrou-se da promessa que fez a si mesmo de que nunca mais deixaria que a força prevalecesse diante da técnica. Devia isso ao menino ruivo, ao pequeno lutador e os algodões entancando o sangue nas narinas, mas principalmente, devia ao pequeno menino que nunca mais pode jogar futebol há longínquos 33 anos.

                A bola nunca mais foi vista naquela casa. Junior tornou-se arquiteto e torce para o Fluminense.