segunda-feira, 14 de março de 2016

O Mar

            Tropicou no primeiro degrau, o que ocasionou um novo torpeço no seguinte e, consequentemente um escorregão no terceiro que culminou em uma queda nada teatral na areia úmida da noite. Era a coroação daquela noite desastrosa, olhou para a garrafa tombada ao lado, ainda conservava uma essência de líquido. “Ao menos isso”, pensou. Um grupo de jovens passava por ali e gritou algo que denegrisse um homem bebendo mais do que deve em uma noite de quarta-feira. Preparou-se para revidar o insulto quando deu de cara com um casal que o olhava do alto daquela perfeição amorosa com repugnância, como se olhassem uma cena dantesca. Apoiou uma das mãos na areia, afundando-a o bastante para a areia alcançar os seus pulsos, e iniciou o longo processo para levar o seu corpo a posição ereta. O movimento envolvia apoiar a outra mão na areia fofa para produzir uma base na qual o tronco pudesse sustentar-se. Na primeira tentativa, o braço esquerdo cedeu e ele sentiu novamente o gosto crocante da areia entre os dentes, a língua e toda a sua boca. Repetiu o movimento com melhor desempenho logo em seguida, ou assim lhe pareceu fazer, diferentemente do homem que vendia abacaxis e cansou-se de assistir as tentativas inúteis do pobre bêbado de levantar de sua prisão momentânea.
            Já com o corpo livre da areia úmida, abaixou-se com esmero para apanhar a garrafa provisoriamente abandonada na areia. Ignorando os apelos do vendedor, arrastou os pés com enorme esforço, emaranhando-se na areia como se estivesse percorrendo um pântano pegajoso para a escuridão que se apresentava à sua frente, usando como norte de sua bússola a sinfonia noturna das ondas que trabalham eternamente. Parou bruscamente ao sentir o primeiro contato da gélida água com seus pés. A areia, recém embebida com a liquidez, engoliu seus pés rapidamente, fazendo com que perdesse o frágil equilíbrio que o mantinha de pé, acarretando em uma queda desassistida do mundo e apenas presenciada por um distraído caranguejo que, curiosamente, esbanjava equilíbrio deslocando-se ao contrário do mundo sem derrapar em nenhuma oportunidade. Deixou-se pesar sobre o chão arenoso, a cabeça girava constantemente, protestava contra si mesmo parado no nada, discutia e lamentava o acontecido. Como ela pôde fazer aquilo com ele? Balançava a garrafa debilmente em direção à escuridão que se apresentava diante de si. Experimentou levantar do chão da mesma maneira que fizera nos degraus de instantes atrás, mas não conseguia.
            Por um instante, o cheiro da bebida foi substituído pelo aroma da água, que o encharcava as roupas e já alcançava o bolso da calça. A maré estava subindo, não havia dúvidas. Mas não se importava. Idealizara-a em sua cabeça, desenhara-a, venerara-a como uma deusa inalcançável, demandara uma parte da sua vida em um culto à imagem dela. Elaborara o plano perfeito, imaginara a resposta perfeita, filhos, casa, família e todos as bonanças do amor verdadeiro e puro. Tudo em vão, tempo perdido, o destino brincara com ele, chacoalhara sua vida como a um brinquedo infantil qualquer. Logo com ele, logo com ele. A garrafa lhe pareceu, uma vez mais, apetitosa e convidativa, retirou-lhe da água que já submergia a garrafa até o rótulo, um gole violento desceu-lhe o ventre com a mesma violência que o que vira à noite atacou-lhe o coração. Conservava na mente, mesmo que contra a vontade, como uma invasora indesejada que recusa ausentar-se, a imagem dela nos braços de um qualquer, alguém que não a valorizava como deveria, como merecia. Lançou as mãos na escuridão na esperança de desvanecer a imagem que enxergava, como se ela fosse um mural diante de si, porém não conseguira. A imagem permanecia lá, os dois juntos, será que riram dele? Não, nem o conheciam para sorrirem. Será que ela sorriu? Será que gostou das piadas? A imaginação de como haviam ficado juntos, o que fizeram, o que falaram, o que passava na cabeça dele ao se despedir destruía lhe a paz. Provavelmente para ele foi apenas um momento fugaz, um bom divertimento, uma boa distração na vida. Pensou nas riquezas que teve em mãos e que não valorizou. Será que aquele estranho pensaria o mesmo amanhã? Sabia que não.
            Uma onda súbita o derrubou. Conseguiu salvar o restante do líquido da garrafa da invasão da água salgada. O mesmo não conseguiu em relação a si mesmo. Estava encharcado. As lágrimas irromperam e, dessa forma, tinha em seu rosto as lágrimas fundindo-se à agua do mar e a areia. Desejava possuir o poder para regredir a maré que subia e o envolvia em água e escuridão, o poder para clarear o dia mais uma vez para ter a oportunidade de ver a imensidão que estava inacessível diante de si, queria regredir o tempo, desfilar por entre as tristezas e alegrias, as horas e os minutos, retirá-la daquele quarto, impedira de entrar, abordá-la anos antes, antes de tudo. Contudo a verdade era que restava apenas aquela sensação, aquele momento. Chorou uma vez mais, por um instante, teve a impressão de ter gritado algo tão alto que as ondas, em sinal de solidariedade, silenciaram-se, cessando por um instante os seus trabalhos. E foi no silêncio momentâneo que tentou visualizar uma vida, uma continuação, entretanto o que viu foi tristeza.
            E o mar, finalmente, apiedou-se do pobre desiludido. Ergueu-o com cuidado, sabia como lidar com os desassistidos de felicidade, consolara aos homens desde o princípio dos dias, reforçara-se muitas vezes nas incontáveis lágrimas que os homens nele derramaram; marinheiros, viajantes, esposas e crianças. O homem estava pesado, carregado pela tristeza e pelo o que não foi, deslizou o corpo aos poucos, trazendo-o lentamente, como a um amigo, como se o recebesse como um velho morador. Tomou cuidado de não o fazer sofrer, separou-o da garrafa que lhe denegria a imagem, ajeitou-lhe os cabelos.
Porém, todos sabem, ao mar o homem não pode adentrar sem uma ruptura, sem um instante de dor, como um portal, uma última tarefa. Em algumas vezes, despojado de qualquer tipo de desejo cruel, o Mar, um tanto desajeitado com esses estranhos sem guelras ou nadadeiras, solicita socorro à sua rainha. E, naquela noite, mais uma vez ela atendeu. Ergueu-se imponente entre uma linha de ondas, deslizando lentamente na direção do infeliz apaixonado. Apesar de seu poder e distanciamento para as coisas terrenas, sentia um aperto no peito ao enxergar as lágrimas que corriam daquele rosto desprovido de luz. Acariciou lhe as faces de forma amorosa enquanto o fazia deslizar lentamente mar adentro. O Mar, obediente, recebeu-o como um dos seus, sem dor, sem sofrimento, sem provação. Já havia sofrido a maior das provações, sofrer por amor.
            Ao fundo, debruçado no balcão de sua banca, o vendedor de abacaxi estranhou o silêncio do mar. Aguçou a visão inutilmente mirando o horizonte no intuito de difundir alguma imagem que denunciasse o que ocorria, mas não conseguiu. Pensou em descer na areia para verificar, pois parecia ouvir uma voz feminina ecoando uma linda canção, mas desistiu assim que uma onda quebrou o silêncio, seguida de outra, e outra, e, assim, o Mar seguiu seu trabalho ininterrupto e solitário.


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