A manhã chegou nervosa naquele dia. Seu pequeno
coração descompassava com batidas aleatórias que lhe davam a sensação de alguém
tentando abrir o seu peito. Olhava para a janela e o que via eram pequenos
raios de sol que lutavam contra a escuridão que predominava no quarto, queria
levantar, mas a casa ainda estava silenciosa, a mãe não havia levantado e o
café não o esperava sobre a mesa. O pai já devia ter saído para o serviço. Tinha
no serviço do pai um grande inimigo, feroz e insaciável. Imaginava o serviço
como um daqueles buracos que surgiam no céu de seus desenhos animados e sugavam
tudo ao redor. Pobre pai. Era sugado todos dias para aquela imensidão. Queria
possuir os poderes do seu personagem favorito que, com um carro preto, cheio de
engenhocas tecnológicas, poderia explodir qualquer coisa que ameaçasse sua
tranquilidade. Na verdade, se fosse o Batman, nem precisaria combater o
Serviço, pois, apesar da idade, sabia que o pai recebia uma recompensa
financeira para estar lá, e o Batman é rico. Sua cabecinha interrompeu o
raciocínio ao ver o seu boneco do homem-morcego com a perna direita destroçada
devido a uma mordida poderosa de Leão, o feroz cachorro da família. Leão era
seu melhor amigo e único a nunca abandoná-lo, na verdade, Leão nem existia sem
ele, ficava na porta da sala, esperando ele abrir a porta para então ganhar
vida e correr pelo jardim. Olhou para a janela, a luz aumentava de intensidade,
iluminando mais ainda a cortina repleta de pequenos Homens-Aranha nas mais
variadas poses de combate. Remexeu-se na cama, o lençol escorregou pelo corpo,
levando a colcha junto de si. Sentiu um arrepio gelado e procurou recolar as
cobertas em seus lugares. Onde estava a mãe para lhe chamar? Precisava alinhar
as tropas para a maior batalha que aquela casa já vira.
Aninhou
uma vez mais a cabeça no travesseiro, afundando-a naquela imensidão macia e reconfortante,
por um segundo cerrou novamente os olhos, deixando-se levar pelo transe que lhe
tomava conta, sentia o corpo leve, etéreo, deslizando para longe da cama, para
longe de si, até ser interrompido da viagem, ser puxado de volta para a cama,
pelo contato de dedos invadindo os seus cabelos. Explorando-os de uma forma
conhecida e já familiar. Virou-se rapidamente para trás e o que estava diante
de seus olhos era o que sonhava e idealizava: seu pai sorria por trás de seus
óculos apoiados no nariz levemente curvado para a direita. Exibindo o sorriso
que tanto encantava o garoto, aproximou-se o bastante para que o garoto pudesse
confundir as respirações e sussurrou:
- Preparou os guerreiros?
O
menino, de sobressalto, pôs-se sentado na cama, as cobertas acumuladas, pesando
sobre suas pernas. Explicou, detalhadamente, a disposição de cada soldado no
cenário de guerra, alguns protegidos em trincheiras revestidas com a camurça do
tênis no meio do quarto, outros acompanhados por ursos armados com canetas
esferográficas que detinham, naquele universo, o poder supremo de derrubar
inúmeros soldados. Informou ao pai quais soldados lhes pertenciam e quais
soldados compunham a armada inimiga.
Ainda
em transe pela presença do pai, ignorou o horário incomum para a presença do
pai em sua casa, era jovem demais para compreender que todo aquele conforto, a
coberta aconchegante, a legião de Comandos em ação por todo o quarto, os ursos,
a roupa quentinha que vestia, a comida sempre à disposição e a bola costurada à
mão com a inscrição “Oficial” em torno do ventil cobravam como taxa uma dedicação
quase exclusiva de seu herói, um importante contabilista de uma multifuncional,
fazendo com que passasse a maior parte do tempo entre números e relatórios, que
invadiam os fins de semana, a sala de estar, o quarto do casal e roubava de seu
pai boa parte das horas de vida. Brincou como nunca com o ele, a guerra não
tinha fim, ursos perderam suas vidas de forma honrosa, soldados foram
soterrados por avalanches de cobertas, um batalhão foi dizimado por uma bola
lançada pelas tropas inimigas, mas, no fim, o exército inimigo finalmente foi
derrotado, exatamente alguns minutos após o pai informar que precisava ir.
Lentamente,
ainda em êxtase, foi para cama conduzido pelas mãos fortes e seguras do pai.
Aconchegou-se no travesseiro, colocou uma das mãos sob aquele pequeno mundo de
flocos e olhou para o pai. Como ele era grande, pensou, será que um dia seria
como ele?
- Posso usar óculos, pai? – perguntou.
- Um dia, quem sabe, irá precisar, hoje ainda
não.
- Eu quero ser como você. Poder olhar tv até
tarde e ter uma carteira. – o pai riu diante da ambição do filho. Acariciou o
cabelo do pequeno da maneira que sabia que o filho gostava.
- Um dia, um dia. A carteira talvez possamos
dar um jeito, mas apenas para brincadeira. Agora descansa, brincamos demais,
já. O pai te ama.
- Também te amo, pai!
E,
aos poucos, sob embalo dos dedos que roçavam sua cabeça por entre seus cabelos,
sentiu os olhos pesarem, o corpo ficar leve, a imagem do pai sumir e surgir,
até desaparecer completamente e o sono assumir o controle.
Despertou
com o sussurro da mãe em seu ouvido, “acorda, meu amor. Que bagunça é essa no
seu quarto?”. Com os olhos e o pensamento ainda confusos, respondeu que
brincara com o pai e não conseguira guardar todas as coisas. A mãe começou a
soluçar baixinho, o choro fez o garoto voltar ao mundo real, virou-se para a
mulher que o olhava com ternura.
- Filho, eu sei que dói, mas papai está bem,
está em um lugar melhor e, com certeza, está cuidando de nós.
O
choro começou a vir mais forte e a mulher tentou debilmente controlá-lo. Abraçou
o filho forte e o choro irrompeu mais forte ainda.
- Não chora, mamãe.
- Tudo bem, às vezes chorar faz bem.
- Papai foi embora mesmo, né? – e de repente as
lembranças trouxeram a imagem da família reunida, do pai dormindo em uma caixa
de madeira, de falarem algo sobre ir para o céu, de estar sozinho, de ficar com
a avó, das caras de tristeza e pena que todos o olhavam. Das lamentações que
não deveriam ser ouvidas por uma criança tão nova: “tão novo, tão novo, e essa
pobre criança agora sem pai?”. Contudo não sentia tristeza, o pai esteve ali
naquela manhã, com os óculos, com o sorriso, brincara como nunca conseguira
antes devido ao trabalho. Contou para a mãe, relatou como fora a brincadeira,
como se divertiram, porém isso apenas fazia a mãe chorar cada vez mais, ela o
apertou contra o peito, disse o quanto o amava mais quatro vezes, levantou da
cama e avisou que faria leite com achocolatado bem quentinho para espantar o
frio, que as coisas dariam certas e que nunca o abandonaria. Abriu a janela do
quarto e o sol iluminou o campo de batalha, revelando as cenas do combate recém
travado. “Arruma isso para a mãe, tá?”. O menino assentiu com a cabeça, a mãe
lhe deu um beijo na testa e disse que o amava, ele também disse o mesmo, ela
apanhou algumas peças de roupa no chão e sumiu pela porta.
O
menino deitou novamente no travesseiro, mas sentiu um incômodo, investigou com
as pequenas mãos entre o travesseiro e o lençol. Ali estava uma carteira, na
verdade, a carteira. Com aquele cheiro característico, o couro levemente gato
na ponta e um bilhete. Lamentou não poder compreender o que estava escrito, mas
sabia que o coração significava coisa boa.
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