domingo, 1 de maio de 2016

A carteira e o travesseiro

A manhã chegou nervosa naquele dia. Seu pequeno coração descompassava com batidas aleatórias que lhe davam a sensação de alguém tentando abrir o seu peito. Olhava para a janela e o que via eram pequenos raios de sol que lutavam contra a escuridão que predominava no quarto, queria levantar, mas a casa ainda estava silenciosa, a mãe não havia levantado e o café não o esperava sobre a mesa. O pai já devia ter saído para o serviço. Tinha no serviço do pai um grande inimigo, feroz e insaciável. Imaginava o serviço como um daqueles buracos que surgiam no céu de seus desenhos animados e sugavam tudo ao redor. Pobre pai. Era sugado todos dias para aquela imensidão. Queria possuir os poderes do seu personagem favorito que, com um carro preto, cheio de engenhocas tecnológicas, poderia explodir qualquer coisa que ameaçasse sua tranquilidade. Na verdade, se fosse o Batman, nem precisaria combater o Serviço, pois, apesar da idade, sabia que o pai recebia uma recompensa financeira para estar lá, e o Batman é rico. Sua cabecinha interrompeu o raciocínio ao ver o seu boneco do homem-morcego com a perna direita destroçada devido a uma mordida poderosa de Leão, o feroz cachorro da família. Leão era seu melhor amigo e único a nunca abandoná-lo, na verdade, Leão nem existia sem ele, ficava na porta da sala, esperando ele abrir a porta para então ganhar vida e correr pelo jardim. Olhou para a janela, a luz aumentava de intensidade, iluminando mais ainda a cortina repleta de pequenos Homens-Aranha nas mais variadas poses de combate. Remexeu-se na cama, o lençol escorregou pelo corpo, levando a colcha junto de si. Sentiu um arrepio gelado e procurou recolar as cobertas em seus lugares. Onde estava a mãe para lhe chamar? Precisava alinhar as tropas para a maior batalha que aquela casa já vira.
            Aninhou uma vez mais a cabeça no travesseiro, afundando-a naquela imensidão macia e reconfortante, por um segundo cerrou novamente os olhos, deixando-se levar pelo transe que lhe tomava conta, sentia o corpo leve, etéreo, deslizando para longe da cama, para longe de si, até ser interrompido da viagem, ser puxado de volta para a cama, pelo contato de dedos invadindo os seus cabelos. Explorando-os de uma forma conhecida e já familiar. Virou-se rapidamente para trás e o que estava diante de seus olhos era o que sonhava e idealizava: seu pai sorria por trás de seus óculos apoiados no nariz levemente curvado para a direita. Exibindo o sorriso que tanto encantava o garoto, aproximou-se o bastante para que o garoto pudesse confundir as respirações e sussurrou:
- Preparou os guerreiros?
            O menino, de sobressalto, pôs-se sentado na cama, as cobertas acumuladas, pesando sobre suas pernas. Explicou, detalhadamente, a disposição de cada soldado no cenário de guerra, alguns protegidos em trincheiras revestidas com a camurça do tênis no meio do quarto, outros acompanhados por ursos armados com canetas esferográficas que detinham, naquele universo, o poder supremo de derrubar inúmeros soldados. Informou ao pai quais soldados lhes pertenciam e quais soldados compunham a armada inimiga.
            Ainda em transe pela presença do pai, ignorou o horário incomum para a presença do pai em sua casa, era jovem demais para compreender que todo aquele conforto, a coberta aconchegante, a legião de Comandos em ação por todo o quarto, os ursos, a roupa quentinha que vestia, a comida sempre à disposição e a bola costurada à mão com a inscrição “Oficial” em torno do ventil cobravam como taxa uma dedicação quase exclusiva de seu herói, um importante contabilista de uma multifuncional, fazendo com que passasse a maior parte do tempo entre números e relatórios, que invadiam os fins de semana, a sala de estar, o quarto do casal e roubava de seu pai boa parte das horas de vida. Brincou como nunca com o ele, a guerra não tinha fim, ursos perderam suas vidas de forma honrosa, soldados foram soterrados por avalanches de cobertas, um batalhão foi dizimado por uma bola lançada pelas tropas inimigas, mas, no fim, o exército inimigo finalmente foi derrotado, exatamente alguns minutos após o pai informar que precisava ir.
            Lentamente, ainda em êxtase, foi para cama conduzido pelas mãos fortes e seguras do pai. Aconchegou-se no travesseiro, colocou uma das mãos sob aquele pequeno mundo de flocos e olhou para o pai. Como ele era grande, pensou, será que um dia seria como ele?
- Posso usar óculos, pai? – perguntou.
- Um dia, quem sabe, irá precisar, hoje ainda não.
- Eu quero ser como você. Poder olhar tv até tarde e ter uma carteira. – o pai riu diante da ambição do filho. Acariciou o cabelo do pequeno da maneira que sabia que o filho gostava.
- Um dia, um dia. A carteira talvez possamos dar um jeito, mas apenas para brincadeira. Agora descansa, brincamos demais, já. O pai te ama.
- Também te amo, pai!
            E, aos poucos, sob embalo dos dedos que roçavam sua cabeça por entre seus cabelos, sentiu os olhos pesarem, o corpo ficar leve, a imagem do pai sumir e surgir, até desaparecer completamente e o sono assumir o controle.
            Despertou com o sussurro da mãe em seu ouvido, “acorda, meu amor. Que bagunça é essa no seu quarto?”. Com os olhos e o pensamento ainda confusos, respondeu que brincara com o pai e não conseguira guardar todas as coisas. A mãe começou a soluçar baixinho, o choro fez o garoto voltar ao mundo real, virou-se para a mulher que o olhava com ternura.
- Filho, eu sei que dói, mas papai está bem, está em um lugar melhor e, com certeza, está cuidando de nós.
            O choro começou a vir mais forte e a mulher tentou debilmente controlá-lo. Abraçou o filho forte e o choro irrompeu mais forte ainda.
- Não chora, mamãe.
- Tudo bem, às vezes chorar faz bem.
- Papai foi embora mesmo, né? – e de repente as lembranças trouxeram a imagem da família reunida, do pai dormindo em uma caixa de madeira, de falarem algo sobre ir para o céu, de estar sozinho, de ficar com a avó, das caras de tristeza e pena que todos o olhavam. Das lamentações que não deveriam ser ouvidas por uma criança tão nova: “tão novo, tão novo, e essa pobre criança agora sem pai?”. Contudo não sentia tristeza, o pai esteve ali naquela manhã, com os óculos, com o sorriso, brincara como nunca conseguira antes devido ao trabalho. Contou para a mãe, relatou como fora a brincadeira, como se divertiram, porém isso apenas fazia a mãe chorar cada vez mais, ela o apertou contra o peito, disse o quanto o amava mais quatro vezes, levantou da cama e avisou que faria leite com achocolatado bem quentinho para espantar o frio, que as coisas dariam certas e que nunca o abandonaria. Abriu a janela do quarto e o sol iluminou o campo de batalha, revelando as cenas do combate recém travado. “Arruma isso para a mãe, tá?”. O menino assentiu com a cabeça, a mãe lhe deu um beijo na testa e disse que o amava, ele também disse o mesmo, ela apanhou algumas peças de roupa no chão e sumiu pela porta.

            O menino deitou novamente no travesseiro, mas sentiu um incômodo, investigou com as pequenas mãos entre o travesseiro e o lençol. Ali estava uma carteira, na verdade, a carteira. Com aquele cheiro característico, o couro levemente gato na ponta e um bilhete. Lamentou não poder compreender o que estava escrito, mas sabia que o coração significava coisa boa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário