A fumaça aqueceu uma vez mais sua garganta
naquela noite, aspirava as decisões tomadas por ela. Tragava os nãos recebidos,
as exigências não atendidas, as perguntas mal respondidas. Sentia-se péssimo.
Olhava pela janela, a noite que amadurecia lembrava-o dos beijos não dados,
mas, também, de tudo vivido. Torturava-se com aquela tempestade que se alojara dentro
de si, podia escutar os trovões abafando seus pensamentos, os lampejos de
imagens que desejava desvanecer confundiam-se com a noite. Levou a mão ao
cinzeiro que transbordava sua mágoa, mas o cigarro encontrou a beirada da
janela, um erro a mais em um emaranhado de equívocos.
Um
som suave rompeu a melancolia do lugar. Olhou para trás e de sobressalto
desequilibrou-se para trás. A figura a sua frente ostentava um par de asas,
asas brancas e enormes, que repousavam sobre o seu dorso, ocultando a cadeira na
qual acomodava-se. Vestia vestes surradas, uma espécie de túnica de comprimento
pouco abaixo da cintura que, pela aparência, há tempos não era limpa ou
reformada, a calça, de estado semelhante, contrastava com os pés limpos e
puros. O rosto era disforme, confuso, uma profusão de matizes indissociáveis.
Antes que pudesse fazer algo, a figura estendeu a mão em direção a carteira de
cigarros sobre a mesa. Ele entendeu, retirou um cigarro, acendeu-o e colocou-o entre
os dedos do ser. Assistiu imóvel e silencioso a fumaça ser exalada após cada
ponto incandescente brotar da ponta do alvo tabaco que sumia de forma
assustadoramente veloz.
- Problemas?
A
voz emitida era etérea, não corporal, inexistente, contudo estranhamente
acolhedora. Teve ímpetos de lhe contar das exigências que fez, da negativa em relação
a elas, do que havia passado por Ela, do quanto a amava. Entretanto sentia-se
idiota e irrelevante, afinal ele possuía asas, nem rosto para rir ou chorar
aquela figura, terminando o cigarro, tinha. Desejou também não ter rosto para
não chorar, olhos para não vê-la, desejava ter asas para voar a algum lugar
longe dali, quem sabe assim não teria também as lembranças que não desejava, os
julgamentos que detestava, as imagens que não vivera e que estavam vivas como
armadilhas no seu mais profundo íntimo.
- Não é possível.
A
figura largou o cigarro no chão sem cerimônia alguma.
- Obrigado pelo cigarro, fazia anos que não
experimentava. Na verdade, talvez, tudo resume-se a isso: experimentar, provar,
decidir se é bom ou ruim, escolher repetir ou não e aceitar quando há algo que
se possa fazer e quando não há. E o que se sente após isso é o mais perto de
realmente experimentar a vida em plenitude. A dor é subvalorizada, ela é a
prova que há vida, que há existência dentro de si. E, na pior das hipóteses,
sempre há um cigarro e uma janela. Lembre-se, não fume.
Antes
que pudesse indagar alguma coisa, a figura sumiu tão rápido quanto surgiu. Ao
olhar no espelho, chorava copiosamente, não sabia por quê, mas as lágrimas
estavam ali e, pelo desenho que formavam em seu rosto, já residiam sua face
algumas horas, talvez o tempo do cigarro da criatura. Desistiu de controlá-las,
deixou cada uma cair, levando um pouco de tudo que carregava, seus erros e
acertos. Teve prazer em seu choro, libertou o que guardava em seu peito como um
animal enjaulado ao experimentar a liberdade pela primeira vez, soluçou como
não fazia desde de sua infância. Se a dor era a plenitude da vida, vivia como
poucos viveram. A noite seria longa, acendeu mais um cigarro.
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