Demorou-se um pouco mais com o garfo na mão,
criava com ele um ângulo fechado em relação à mesa, transformando-o em alavanca
e erguendo levemente a lateral do prato vazio em sua frente. Já se passavam dez
minutos e ele ainda não chegara. Nem ao menos tivera desejo ou vontade de sair
com ele, aceitara apenas como maneira de fazer algo diferente do que vinha fazendo
nas últimas cinco semanas. Impressionante o que se pode fazer, com a mente
aberta, em uma cidade tão grande como Porto Alegre. Em suas caminhadas pelas
noites – noites com cheiro e essência das fumaças e vapores que oscilam entre a
luz e a escuridão, verdadeiros encontros do desconhecido com o conhecido -, conhecera
uma “pá de gente” legal, descobrira que mulheres conhecem mulheres muito melhor
do que homens, que beijos podem ser tickets gratuitos para o paraíso, que o álcool
pode ser uma etapa para o transcendental ou para um dia seguinte de ressaca
infinita, mas, antes de tudo, aprendera que as pessoas eram vazias; ou será que
ela tornara-se vazia? Não sabia mais. Alternava entre as noites sem leis e as
leituras cada vez mais vorazes. E a única coisa que conseguia ter certeza era de
que nada era como antes. O conhecimento gera a incerteza sobre tudo.
Sentia-se,
nos últimos dias, como em Crime e Castigo, remoendo-se de pensamentos e conjecturas,
comentou isso com sua colega que não entendeu a referência. Lembrou que teve
ímpetos de lhe socar a face e berrar: como assim não leu Dostoievsky? Contudo,
o desejo do golpe foi logo substituído pelo impulso do vômito quando a moça
comentou sobre o último lançamento de uma famosa marca de sapatos. Tentou
controlar o fluxo, mas, antes que pudesse fazer algo, despejara um líquido
amarelo e viscoso no colo da apavorada menina, que a olhava incrédula com o
ocorrido. Não conseguiu pedir desculpas, manteve-se imóvel, olhando a colega
coberta por parte de sua essência interna enquanto um último fio escorria de
sua boca, sentia o amargor, não do vômito, mas, sim, da aquela preocupação com
um mero sapato; poxa, falava sobre uma inquietação existencial, um questionamento
muito maior. Não conseguira mais trabalhar aquele dia.
Agora,
nesse restaurante, novamente sentia-se uma estranha, uma extraterrestre,
perdida em um mundo distante do seu, asfixiada, presa em uma bolha de gestos e
posturas. Olhou a mulher à sua esquerda, que sorria satisfeita ao lado do
marido, um vestido elegante, o cabelo no seu devido lugar, mais parecia uma
estátua, um monumento à beleza eterna, como se tivesse sido transportada por
uma empresa para aquela mesa em especial. Não, na verdade, a família toda parecia
uma imensa obra de arte, representando a contemporaneidade, o estereótipo de
família do século XXI. Uma ode aos bons costumes, aos homens de bem. O que
pensariam aquelas pessoas puras e imaculadas se soubessem que ali, a três passos
de sua mesa perfeita, estava ela, a antítese de todas as ideias representadas
naquela mesa, a prova viva de que a vida opera por linhas tortas ou, até mesmo,
no seu caso em especial, sem linha alguma? Imaginou aquelas pessoas nos lugares
que frequentou, nos becos escuros, e como se chocariam ao presenciar o que os
becos e barzinhos de porões reservam aos seus visitantes. Como beberiam o
líquido ardente que servem nesses lugares? Como aspirariam os odores adocicados
da atmosfera negra e inebriante, quase que etérea? Onde estacionariam seu carro
importado e eternamente encerado sem correr o risco de tê-lo arranhado pelos
botões das calças rasgadas dos jovens de cabelos espetados e coloridos que se
apoiariam nele? Divertiu-se a imaginar a moça, com seu salto de quase 30
centímetros de altura, sendo levada de um lado para o outro ao som de batidas e
riffs constantes.
Olhou
para o lado, nada do rapaz chegar, aceitara o encontro, principalmente, porque,
pela primeira vez em meses, conseguira discutir um bom livro com alguém. Além
disso, ele demonstrara um brilho diferente no olhar, talvez por pertencer a um
mundo diferente do seu, algo que lhe despertava a curiosidade, uma vez que, até
mesmo o seu mundo subterrâneo, por vezes, apresentava uma realidade monocromática.
Contudo a verdade era que se sentia deslocada naquele ambiente, e a demora dele
apenas a fazia arrepender-se mais ainda de estar ali. Lembrou de Natália,
lembrou do cheiro de aventura e desafio que brotava dela, do frescor dos
cabelos soltos. Repentinamente aquele lugar, aquela situação, trouxeram-lhe uma
monotonia, um desânimo, a mesma sensação de mal estar do sapato, olhou uma vez
mais para o lado e sentiu o estômago revirar, precisava sair dali, empurrou a
cadeira para trás, a moça do sapato alto a olhou espantada, como se a paz de um
templo religioso houvesse sido interrompida, quase derrubou o garçom, que não
compreendeu nada, abriu a porta ofegante, precisava da fragrância das ruas. Por
coincidência, o rapaz chegava naquele instante, aos tropeços, roupa alinhada,
mas um rosto que denunciava o caráter involuntário do atraso, a boa convivência
aconselhava uma breve resposta, um contato ou uma satisfação. Foda-se os bons
modos pensou, deixou apenas um sinto muito no ar, recebido por um atônito e
perdido rapaz. Natália a esperava em algum canto perdido da noite. Feliz,
encheu os pulmões, o ar exalava perfumes, fumaças e todos os espíritos da noite.
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