quinta-feira, 5 de maio de 2016

Batidas, riffs e salto alto

               Demorou-se um pouco mais com o garfo na mão, criava com ele um ângulo fechado em relação à mesa, transformando-o em alavanca e erguendo levemente a lateral do prato vazio em sua frente. Já se passavam dez minutos e ele ainda não chegara. Nem ao menos tivera desejo ou vontade de sair com ele, aceitara apenas como maneira de fazer algo diferente do que vinha fazendo nas últimas cinco semanas. Impressionante o que se pode fazer, com a mente aberta, em uma cidade tão grande como Porto Alegre. Em suas caminhadas pelas noites – noites com cheiro e essência das fumaças e vapores que oscilam entre a luz e a escuridão, verdadeiros encontros do desconhecido com o conhecido -, conhecera uma “pá de gente” legal, descobrira que mulheres conhecem mulheres muito melhor do que homens, que beijos podem ser tickets gratuitos para o paraíso, que o álcool pode ser uma etapa para o transcendental ou para um dia seguinte de ressaca infinita, mas, antes de tudo, aprendera que as pessoas eram vazias; ou será que ela tornara-se vazia? Não sabia mais. Alternava entre as noites sem leis e as leituras cada vez mais vorazes. E a única coisa que conseguia ter certeza era de que nada era como antes. O conhecimento gera a incerteza sobre tudo.
            Sentia-se, nos últimos dias, como em Crime e Castigo, remoendo-se de pensamentos e conjecturas, comentou isso com sua colega que não entendeu a referência. Lembrou que teve ímpetos de lhe socar a face e berrar: como assim não leu Dostoievsky? Contudo, o desejo do golpe foi logo substituído pelo impulso do vômito quando a moça comentou sobre o último lançamento de uma famosa marca de sapatos. Tentou controlar o fluxo, mas, antes que pudesse fazer algo, despejara um líquido amarelo e viscoso no colo da apavorada menina, que a olhava incrédula com o ocorrido. Não conseguiu pedir desculpas, manteve-se imóvel, olhando a colega coberta por parte de sua essência interna enquanto um último fio escorria de sua boca, sentia o amargor, não do vômito, mas, sim, da aquela preocupação com um mero sapato; poxa, falava sobre uma inquietação existencial, um questionamento muito maior. Não conseguira mais trabalhar aquele dia.
            Agora, nesse restaurante, novamente sentia-se uma estranha, uma extraterrestre, perdida em um mundo distante do seu, asfixiada, presa em uma bolha de gestos e posturas. Olhou a mulher à sua esquerda, que sorria satisfeita ao lado do marido, um vestido elegante, o cabelo no seu devido lugar, mais parecia uma estátua, um monumento à beleza eterna, como se tivesse sido transportada por uma empresa para aquela mesa em especial. Não, na verdade, a família toda parecia uma imensa obra de arte, representando a contemporaneidade, o estereótipo de família do século XXI. Uma ode aos bons costumes, aos homens de bem. O que pensariam aquelas pessoas puras e imaculadas se soubessem que ali, a três passos de sua mesa perfeita, estava ela, a antítese de todas as ideias representadas naquela mesa, a prova viva de que a vida opera por linhas tortas ou, até mesmo, no seu caso em especial, sem linha alguma? Imaginou aquelas pessoas nos lugares que frequentou, nos becos escuros, e como se chocariam ao presenciar o que os becos e barzinhos de porões reservam aos seus visitantes. Como beberiam o líquido ardente que servem nesses lugares? Como aspirariam os odores adocicados da atmosfera negra e inebriante, quase que etérea? Onde estacionariam seu carro importado e eternamente encerado sem correr o risco de tê-lo arranhado pelos botões das calças rasgadas dos jovens de cabelos espetados e coloridos que se apoiariam nele? Divertiu-se a imaginar a moça, com seu salto de quase 30 centímetros de altura, sendo levada de um lado para o outro ao som de batidas e riffs constantes.

            Olhou para o lado, nada do rapaz chegar, aceitara o encontro, principalmente, porque, pela primeira vez em meses, conseguira discutir um bom livro com alguém. Além disso, ele demonstrara um brilho diferente no olhar, talvez por pertencer a um mundo diferente do seu, algo que lhe despertava a curiosidade, uma vez que, até mesmo o seu mundo subterrâneo, por vezes, apresentava uma realidade monocromática. Contudo a verdade era que se sentia deslocada naquele ambiente, e a demora dele apenas a fazia arrepender-se mais ainda de estar ali. Lembrou de Natália, lembrou do cheiro de aventura e desafio que brotava dela, do frescor dos cabelos soltos. Repentinamente aquele lugar, aquela situação, trouxeram-lhe uma monotonia, um desânimo, a mesma sensação de mal estar do sapato, olhou uma vez mais para o lado e sentiu o estômago revirar, precisava sair dali, empurrou a cadeira para trás, a moça do sapato alto a olhou espantada, como se a paz de um templo religioso houvesse sido interrompida, quase derrubou o garçom, que não compreendeu nada, abriu a porta ofegante, precisava da fragrância das ruas. Por coincidência, o rapaz chegava naquele instante, aos tropeços, roupa alinhada, mas um rosto que denunciava o caráter involuntário do atraso, a boa convivência aconselhava uma breve resposta, um contato ou uma satisfação. Foda-se os bons modos pensou, deixou apenas um sinto muito no ar, recebido por um atônito e perdido rapaz. Natália a esperava em algum canto perdido da noite. Feliz, encheu os pulmões, o ar exalava perfumes, fumaças e todos os espíritos da noite. 

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