Era
uma vez, em um reino muito, mas muito distante. Cinderela, então já comemorando
seu sétimo ano de casamento com o príncipe, o mesmo do sapatinho de cristal,
apoiava-se no parapeito de seu quarto, mirando o horizonte onde, há poucos
instantes, estivera ele montado em seu poderoso alazão branco, antes de sumir
da visão, com destino a mais uma de suas inúmeras missões. Suspirava um tanto
quanto despontada, não pensara que colocar o pé naquele sapato lhe traria esta
rotina. Ficava a maior parte do tempo perambulando pelo castelo, vistoriando
construções desnecessárias, averiguando jardins pouco utilizados, experimentando
mais de mil vezes vestidos para as inúmeras festas de retorno do rei. Sim,
agora já eram rei e rainha. Por vezes,
no íntimo de seu coração, lamentava que aquele sapato tivesse servido,
imaginava a sua vida longe dali, distante das formalidades da corte, despida do
imenso vestido que a cobria. Imaginava-se correndo pelos campos, deslizando
sobre a relva verde oliva que banhava os montes à esquerda de seu reino. O rei
a amava com devoção, mas a devoção, por incrível que possa parecer, já estava a
chateá-la. Eram sempre os mesmos comentários, as mesmas mesuras, sofria da
falta de novidades, da falta de vida própria, de alegrias ou tristezas novas,
até mesmo suas tristezas eram velhas senhoras que viviam percorrendo seus
aposentos. Foi com esse desejo de liberdade que seus olhos encontraram os de um
jovem arqueiro desavisado que ignorou os avisos de nunca olhar nos olhos da
rainha.
Os
olhos passaram a se encontrar de forma cada vez mais constante, como uma força
de atração irresistível que insistia em fazer-se presente, e, com tempo, as
idas às compras pela própria rainha tornaram-se recorrentes. Em um dos raros momentos
de presença do marido, alegando estar sob um pressentimento ruim, solicitou uma
guarda pessoal para proteger seus aposentos. Essa guarda pessoal virou, com o
tempo, a guarda de uma pessoa só, tornando-se, logo em seguida, presença
constante em vigílias noturnas no quarto da rainha. E o povo começou a falar,
comentar, e logo os rumores caíram no ouvido do rei que, de longe ainda,
ordenou que o arqueiro fosse executado. Sabendo dos resultados possíveis, e da
vontade do marido, Cinderela implorou para que o jovem fugisse do reino e pra
lá nunca mais voltasse. Cansada e amargurada, aguardou a chegada do marido, que
ficara mais 2 meses afastado do lar. Ele, logo quando a avistou, tratou de
xingá-la e acusá-la de ter trocado o amor que dera a ela por um aventureiro
qualquer. Ela, cansada de tudo, respondeu que sabia de tudo, das viagens de
meses, das duas amantes que ele cultivava em paragens distantes, do fato de
todos no reino saberem da infidelidade do marido. Ele vociferou que
proporcionava a ela a vida que toda mulher sonhava e que ela lhe devia gratidão,
que a amava do seu jeito, que a amava por saber que ela estava em casa, pura,
sempre à prontidão. Por fim, ajoelhado diante dela, pediu perdão, disse que ela
era a mulher perfeita, porém tinha receio de não saber como lidar com a
aventura com o arqueiro. Ultrajada, ela disse que iria embora; ofendido, ele
disse que ela responderia por traição; certa de não ser a única a cometer o crime,
ela aceitou o julgamento.
No
dia do julgamento, contudo, o que ela viu a deixou sem esperanças, famílias nas
ruas a apontavam, mulheres abraçadas em homens que acompanhavam as cavalgadas
de seu marido a chamavam de meretriz, viu-se perdida e atordoada, por que só
ele podia? Maldisse aquele maldito sapato, aquela maldita fada madrinha, aquela
festa infeliz. Ainda olhou para o seu ex-amor enquanto ajustavam a corda em
torno do seu alvo e delicado pescoço, não reagiu, sentiu o desânimo da vida. Diante
de si, apenas enxergava os dias de sombra e privações aos quais se entregou
após o casamento, a corda apertou, o ar lhe faltou e a escuridão lhe dominou.
Despertou
com a vassoura na mão, as irmãs adotivas gritando que ela não podia dormir no
serviço, que onde já se vira uma trabalhadora dormir durante os afazeres? Olhou
para si, estava com os velhos trapos surrados e sujos, acompanhada de sua velha
vassoura de palha. Nunca se sentiu tão feliz e livre na vida. À noite, escutou
um barulho em sua janela, era a fada madrinha lhe prometendo o amor do príncipe
e uma vida de riquezas. Ela prontamente fechou a janela, naquele truque não cairia
mais. Passou a noite ouvindo os sons do baile enquanto flutuava em uma dança
silenciosa e só sua entre artigos e mais artigos. Não casou, formou-se na
Universidade e virou professora de filosofia. Namora, viaja, lê e não fica mais
em casa esperando ninguém.
E
viveu feliz para sempre.
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