sexta-feira, 31 de julho de 2015

O contabilista

        Tentava casar débitos com ganhos, prazos com datas. O notebook iluminava um rosto cansado e um tanto abatido. Ocupava um canto afastado da sala, um cômodo não muito grande, condizente com a importância que possuía para o restante do mundo, ou seja, nenhuma. A casa era composta por dez cômodos distribuídos de maneira arquitetônica e moderna, reflexo perfeito da condição social que ocupava. Alternava a atenção entre a planilha, os carnês, os extratos e a televisão no outro canto da sala que lhe fazia companhia.  A casa preservava um silêncio absoluto, nada se ouvia além dos cliques constantes do mouse e da orquestra produzida pelos dedos no teclado do computador. A inconsistência dos números mantinha-se soberana naquela noite.
     Então, ouviu um estrondo perto da porta.
     Barulho forte o suficiente para tirar os números da cabeça, o que seria aquilo? Já eram 2 da manhã. Seriam os pássaros? Difícil, não recordava de pássaros com hábitos noturnos, viviam importunando com seus bateres de asas e batidas insistentes nas portas e janelas durante os dias. Não possuía restrições especiais contra aves, eram apenas os barulhos que o importunavam, na verdade, guardava lembranças da infância, do dia que fora caçar com o pai e do disparo efetuado com a ajuda paterna, o pássaro caindo indefeso da segurança de seu santuário, os inseguros e breves movimentos das asas suplantados pela inércia, da presença da ausência e do não mais ser. Lembrou da raiva que sentiu naquele instante, por que foi auxiliado a fazer aquilo? Não queria tirar a vida daquela indefesa criatura. Sentiu-se mal, odiou ter sido coagido a fazer algo que não desejava. O pai, a princípio impaciente, desculpou-se, levou o filho a casa para comerem um sorvete, fez todo o possível para fazê-lo esquecer o que acontecera, a mãe brigara com o pai pelo que havia feito com a inocente criança. Nunca esqueceu daquele dia.
        As contas reclamaram sua atenção, voltou aos números que não batiam. Eram como agulhas que penetravam em cada canto de sua razão, afetando seu estado de espírito e tranquilidade. Não encontrava saída para aquilo. Preparava-se para excluir um dos valores que o atormentava de uma das células do excel;
     Quando um novo estrondo lhe interrompeu.
     Estava mais próximo que o anterior, ecoou pela casa, chegando alto e forte na sala. O que poderia ser agora? Sentiu medo, deveria ir verificar o que era, certificar que não era um invasor querendo roubar-lhe todos os pertences. Pertences que não contabilizavam, surpreendentemente, um grande montante, principalmente, para alguém que abandonara o sonho de tornar-se um grande pintor pela possibilidade de conseguir um emprego rentável financeiramente. Tinha certa habilidade para as artes plásticas, seus trabalhos foram elogiados em mais de uma exposição, mas a falta de perspectiva financeira, o desejo de ter um carro do ano, uma casa espaçosa, roupas de grife e outros atrativos o fizeram optar pelo curso de Direito. Não podia negar que aproveitara de um todo, houveram as festas, o convívio social e o próprio curso, que, por vezes o satisfazia. Entretanto, hoje, vê que a simples satisfação ocasional não pode ser o suficiente para se viver, é preciso mais, é necessário o prazer, e esse não sentia. Não pode, também, afirmar que não alcançara boa parte do que o curso lhe prometera. Após formado, com a ajuda de contatos do pai, ingressou em um respeitado escritório de advocacia. Com as portas certas estando sempre abertas, logo estava com seu escritório próprio pautado de inúmeras recomendações, culminando em um sucesso fulminante. 
        Foi nessa época que conheceu a bela Fernanda, dentista, de boa família e com dentes perfeitos. O namorou foi repentino, o noivado durou um pouco mais, precisava ter certeza absoluta de que aquela mulher era digna de dividir as benfeitorias que conquistaria ao longo de sua carreira. Com o tempo, descobriu que ela era, sabia combinar com perfeição o vestido com a maquiagem, distribuía cada peça de roupa de maneira cirúrgica sobre seu corpo esculpido em longas sessões de academia que revezou com longas tardes de estudos durante a faculdade. Sua vida ficava mais bela ao lado daquela mulher, o noivado e o casamento ocorreram próximos um do outro, viajaram para uma ilha paradisíaca, os negócios prosperavam e a vida desenhava-se como deveria ser quando optou pelo abandono do sonho de ser artista. Contudo, os anos e a rotina cobraram seus encargos; e eles eram dolorosos, correspondiam a noites em claro, horas cada vez maiores de trabalho, pressão sobre cifras maiores e metas inconscientes que solicitavam a necessidade de uma segunda vida, um segundo dia além do já fornecido pelo escasso tempo. Respirava montantes e status como um alpinista aspira o oxigênio rarefeito, quanto mais surgiam possibilidades de ganhos, mais esses ganhos tornavam-se insuficientes.
    A primeira perda fora no casamento. Talvez faltasse algo a mais, talvez pensara demasiadamente na beleza, talvez tenha sido o não surgimento de um filho, de um herdeiro para tudo aquilo que havia construído, o motivo dificilmente conseguiria determinar e o resultado dessa equação, o que realmente importava, era o fim de seu relacionamento. Longos casos jurídicos vencidos, noites debruçados sobre livros, mas, no momento em que ocupava o lugar de seus clientes, assistiu a metade de tudo que havia construído ser levada por sua ex-companheira. O stress, a desilusão e o cansaço de correr uma corrida sem ponto de chegada foram razões que o levaram a diminuir o ritmo, negligenciar os detalhes, e, como consequência, o negócio começou a degringolar. Quase que como uma grande e infeliz ironia, apesar da queda nos negócios, a necessidades de consolidação social não cessaram, e, assim, logo estava com as contas incalculáveis. Era diante dessas intermináveis contas que se encontrava naquele instante.
        Um terceiro estrondo foi ouvido.
        Foi próximo, muito próximo, mais precisamente na parede imediatamente atrás de onde se encontrava. O coração bateu acelerado, era como se ocupava todo o seu corpo, quase podia sentir o sangue fluindo de forma acelerada e contínua por suas veias. Precisava virar, deveria, não podia ignorar o fato, estava ali, quase diante dele. Poderia estar o observando naquele exato momento, não podia ficar passível, aguardando a tragédia, apesar de a passividade estar internalizada dentro do seu ser, omitiu-se ao deixar seus sonhos em prol de uma conquista profissional que possibilitasse ganhos financeiros, estabilização social e reconhecimento de todos. Vendera a si, vendera uma vida inteira, penhorou sua existência e, somente naquela noite, concluiu o cálculo que evitou, por anos, solucionar; havia fracassado, o valor recebido fora insuficiente, sentiu-se iludido, corrompido e usado, sendo que o usurpador havia sido o próprio usurpado. Era duplamente culpado, primeiro por vender sua vida, segundo por ter desejado isso.
        Ouviu um novo estalo. Foi em sua cadeira, era tarde demais para virar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário