Nunca havia obtido nota melhor
antes. Talvez, aquele tenha sido o momento de maior felicidade e vitória que obteve
em sua vida. Foi com apreensão que saiu de casa naquela manhã. Morava em uma
casa pequena, perfeita aos moldes do pai que adorava a simplicidade, ao lado de
um terreno ocupado apenas por uma linha de 5 árvores imponentes que quase
riscavam o céu. Costumavam utilizar duas delas para servirem de base de goleira
para as partidas de futebol dos fins de tarde. A altura do gol era questão
duvidosa que sempre acabava em eterna discussão e variava conforme a altura do
goleiro. Entretanto, naquela tarde, o futebol estava em segundo plano, toda a
sua vontade e pensamentos estavam direcionados na prova à tarde.
Saiu com o caderno à mão, com folhas
soltas penduradas demonstrando toda sua aversão a organização, para poder dar
uma última revisada no conteúdo. Suava como nunca. “Mais uma nota ruim e sem
futebol por uma semana”, havia sentenciado a mãe após a sua última prova de
português ter sido exposta sobre a mesa diante da família no almoço de domingo. Era uma espécie de promotora do lar, encarregada de levantar as acusações
e determinar possíveis punições para cada falta realizada. Ao pai, cabia o
cargo de juiz de primeira e última estância, que durante as semanas, proferia
suas decisões aos fins de tarde enquanto tomava seu chimarrão. Na prática, sua imparcialidade,
enquanto voz definidora de juízo, era duvidosa visto seus laços afetivos com a
promotora da casa e, além disso, a indisposição para conflitos ideológicos e dispendiosos
com a esposa. Por isso, sabia muito bem que as palavras proferidas pela mãe,
enquanto apontava para o 3,4 em vermelho no alto da folha de avaliação, eram
muito mais do uma simples ameaça, eram uma sentença homologada. Devido a isso,
passou a tarde de domingo longe do campo, mirando pela janela a disputada
partida que reunia todos os garotos do bairro, mantendo-se concentrado e
absorvido pelas fórmulas matemáticas e os números e letras que as acompanhavam.
“Merda de x” pensou antes de fechar a veneziana como se fechasse um portal que
o permitia assistir a um mundo alegre e feliz que contrastava com o seu, triste
e sem vida. E assim, o domingo passou como uma sombra que surge e perde seu
corpo tão rápido quanto a luz solar, desprendida por um breve faixo entre as
fechadas árvores do arvoredo da rua no fim da vila, iluminava o gramado de seu
Teodoro.
No dia seguinte, durante a manhã,
estudou mais um pouco até chegar o momento de dirigir-se ao colégio.
A sala de aula estava em polvorosa, a tensão quase podia ser
tocada e sentida, todas aquelas mentes esperavam pelo teste que colocaria a todos
diante de um veredito final. Para seu alento, o fim de semana de privações dera
resultado, realizou a prova com maestria, conduzia os números com a aptidão e
naturalidade de um peixe na água, não encontrava as respostas, visualizava-as
como se o chamassem, gritassem por atenção, dominava a Fórmula de Bhaskara, a
professora nem tivera tempo de demonstrar impaciência pela demora da turma,
tratou de entregar a prova com a mesma sensação que um artista entrega sua obra
de arte. “Já terminou?” questionou a professora com a incredulidade daqueles de
pouca fé. “Prontinho, sora”. “Preciso corrigir?”, “Não precisa, tá tudo certo!”.
E estava mesmo, tinha certeza.
Não foi com surpresa que dois dias depois, em uma
quarta-feira, recebeu a prova com um 10 acompanhado de um “parabéns!”. Correu
para a casa, os amigos questionaram se ele não iria jogar, afinal, eram os
jogos semifinais do campeonato de duplas, campeonato periódico disputado entre
os garotos do bairro no campo ao lado de sua casa. Um garoto ficava no gol
enquanto que outros quatro disputavam a partida em duas duplas. Recusou a
diversão momentânea e barata, aspirava a algo mais profundo e duradouro: a
felicidade dos campeões, a redenção dos oprimidos. Entrou em disparada na
residência, arrancando uma reprimenda da mãe para relembrá-lo para não correr
dentro de casa, acenou positivamente com a cabeça e foi para o quarto. O
coração vacilante, a respiração acelerada, precisava conter a euforia, não
poderia transparecer a excitação, afinal, queria realizar a apresentação da tão
aguardada nota de forma solene durante o jantar, o retorno do guerreiro ferido.
O relógio passou a ser seu inimigo,
teimava em manter-se imóvel, os minutos arrastavam-se, estava tão próximo do
momento esperado, mas, agora, o tempo parecia pregar-lhe uma peça sem graça,
parecia-lhe que o tempo havia desistido de passar e decidido permanecer onde
estava. Foi a chegada, sempre
espalhafatosa, do pai que o lembrou que o tempo é imparável e que o jantar
estava próximo. Ensaiou inúmeras maneiras para comunicar a todos a nota
recebida, primeiro imaginou colocando a prova sob o assento da mãe que, surpresa, viria aos
prantos e falaria o quão injusta fora com ele, mas, nessa situação, corria-se o
risco dela não notar nada de estranho e a folha passar despercebida; pensou em
chegar esbravejando, protestando contra a falta de confiança demonstrada pelos
pais em sua capacidade, exigindo que contemplassem o real talento intelectual
que possuía, entretanto, ao imaginar a cena, logo veio a sua mente o pano de
prato sempre úmido que a mãe levava consigo e que , certamente, já estaria em
pleno ar nas primeiras palavras mais fortes que pronunciasse. Decidiu ficar em
um meio termo, não seria tão obtuso e nem tão passivo, sentaria na mesa, o pai
perguntaria como fora o dia, ele responderia que fora tudo bem, a mãe lhe
questionaria por que não jogara futebol com os outros garotos, ele responderia
que estava sem vontade, os pais voltariam suas atenções para os outros irmãos;
sim, possuía outros irmãos, três na verdade, duas meninas e um menino, todos
mais novos; seria nesse instante, quando os irmãos virassem foco de atenção,
que chamaria os pais novamente, despreocupado, como se fosse algo banal a
comunicar, “ah! Quase esqueci, minha nota de matemática!” e largaria a prova
sobre a mesa. Os pais se olhariam atônitos, a mãe, que chorava até em sessão da
tarde, irromperia em lágrimas, o pai o abraçaria e diria “esse é meu garoto!”,
e o restante da noite a mãe diria o quão bom é estudar e o deixaria comer
sozinho uma lata de leite condensado de colherinha. E assim foi, exceto pelo
choro da mãe que não ocorreu. Virara um guerreiro vitorioso que usufruía de
seus espólios.
Terminou de comer sua lata de leite condensado enquanto
admirava aquele 10. Como era bonito aquele número, como era bonita a letra da
professora ao escrever parabéns. Mas, mais do que tudo, como era gostosa aquela
sensação, sabia que na sala, os pais assistiam ao programa de auditório
preferido deles com a certeza de que estavam no caminho certo, que educaram
muito bem o seu filho e que ele teria um lindo futuro pela frente. Possuía a
admiração dos pais e, além disso, descobrira um talento: a matemática. Poderia
ser engenheiro, professor, arquiteto, e outras tantas profissões, a matemática
lhe abria um mundo de possibilidades. Dormiu com a tranquilidade e satisfação como
companheiras naquela noite, ainda inocente, sem saber que logo mais as equações
ficariam mais complexas, ele voltaria a ficar relapso, o colégio passaria
veloz, a faculdade também, os pais partiriam e ele esqueceria a, naquela noite,
inesquecível Fórmula de Bhaskara para sempre.
Porém, o que ele nunca suspeitaria, era que o leite condenado
nunca mais teria o mesmo gosto.
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