sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O melhor presente de todos



                Era com a ansiedade e as primeiras chacoalhadas do pano contra a água do balde que o Natal comunicava sua presença. Acordei com as promessas daquela noite povoando a minha mente, imagens de presentes que ainda não eram evocavam feitos jorros de imaginação que me impeliam a saltar da cama com a disposição de um leão.  Foi ao sair do quarto que a realidade desfez a todos esses sonhos, era véspera de Natal, o que significava que a casa estava em trabalho, trabalho árduo e incansável. Mamãe já iniciara seu ritual costumeiro na tentativa de deixar o velho chalé com o mesmo aspecto dos mais nobres castelos europeus. Erguia aquele cabo de madeira com um pano encharcado na ponta como um maestro defronte a orquestra, abaixando o com força e o balançando para um lado e para o outro, em um movimento frenético que, aos poucos, por incrível que pareça, davam uma pontinha de nobreza ao velho chalé que morávamos.
- Passa guri, passa guri.
            Passei correndo, na ponta dos pés, segurando os chinelos para não macular aquele chão que se transformava. E ela, pouco influenciada, voltava aos seus movimentos frenéticos: ergue, esfrega, ergue, coloca no balde, torce o pano e recomeça tudo novamente. Morávamos em um chalé com dois quartos, uma cozinha, uma pequena sala e um banheiro. Nada luxuoso, mas nada tão ruim. Na verdade, naquele dia, o que importava realmente era o fato de ser véspera de Natal. Por isso, precisava marcar um jogo, uma brincadeira, um passeio de bicicleta, pois, mais cedo ou mais tarde, achariam um afazer para mim naquele mutirão natalino. Papai estava lá fora, serrava, media, pregava, voltava a serrar. Fazia uma mesa de madeira para abrigar aos convidados para a ceia da noite que envolveria uma grande e sadia galinha que faria o papel do Peru, ave um tanto metida a nobres costumes e que não frequentava aqueles ambientes. Nunca sentia falta de seu sabor porque não podemos sentir falta do que não conhecemos, fato era que a galinha era imensamente desejada por aquelas bandas. Meu pai deu bom dia e mandou que lhe alcançasse o saco com pregos que estava próximo do velho moerão, meu dia já estava destinado. Entreguei-lhe o prego e acompanhei o martelar de cada um deles, nos seus devidos lugares, sem erros, sem medo, batidas firmes e fortes, admirava meu pai.
- Já escolheu o presente? – disse entre dentes enquanto equilibrava com a boca alguns pregos.
- Já sim. – respondi de forma apressada.
- Merece ganhar?
- Não sei.
- Como não sabe?
- Sei lá, simplesmente não sei. – respondi. Na verdade, sabia muito mais do que transparecia. Sabia que não seria visitado por um velho de vermelho, mas que era aquele sujeito me questionando que colocaria, bem no horário da missa, o presente, que eu tanto desejava, sob a árvore. Adorava tudo aquilo, permitia que me enganasse para que, talvez, desse modo, pudesse ter um dia especial e resguardado das dificuldades de todos os dias. Ajudei de forma obediente meu pai na confecção do que viria a ser nosso altar de oferendas para uma boa janta em família. Ajudá-lo possuía seu prêmio: não precisar ajudar a mamãe. Ajudá-la significaria estar frente a frente com os meus desleixos semanais como acusadores em prontidão para dedurar-me a uma inquisitora, por vezes, maldosa, que não trabalhava com misericórdia.  Em compensação, se eu não estivesse por perto quando ela encontrasse as evidências, apenas ouviria uma bronca mais tarde. Foi o que fiz naquele dia.
            Paramos de trabalhar para almoçarmos, eu estava suado, e minha mãe, piedosa, preparou uma deliciosa limonada gelada para nós, homens da casa. A conversa no almoço foi em torno da ceia da noite e, como não poderia deixar de ser, das visitas que chegariam para comemorar o dia de festa. Papai comentava que, possivelmente, meu tio, irmão da minha mãe, não traria nada e diria que esquecera. Mamãe repreendia-o. Na verdade, a família que estaria sentada à mesa que estávamos construindo seria a de minha mãe, pois meu pai não trouxe, junto consigo, uma bagagem familiar, perdera sua mãe, minha avó, um tanto cedo, e o pai, meu avô, se perdera de meu pai mais cedo ainda. Sozinho, órfã de família, assim chegou meu pai para o casamento com minha mãe.
            Após o almoço, meu pai retirou-se para sua estada particular, em seu recanto sagrado. Fui incumbido de auxiliar minha mãe na retirada das louças e restos do almoço. O término da refeição diurna, deixava no ar o cheiro e a promessa de que a hora estava aproximando-se. Involuntariamente, flertava com a, ainda, vazia árvore de Natal na esperança de que, em um dos segundos que os olhos haviam perdido a árvore de vista, um pacote misterioso pudesse ter sido acrescido ao cenário, um pacote quadrado, aproximadamente com meio metro de altura, com um daqueles papéis coloridos que embalam os sonhos mais bonitos. Meu sonho era relativo ao futebol, ao mais recente lançamento. Eu, acostumado a gastar tardes de joelhos disputando campeonatos que se decidiam em um “à gol” ou “dois toques”, tendo como astros jogadores achatados que não podiam se afastar do campo de jogo, agora, somente visualizava aqueles jogadores eretos, como os reis que via nos livros de história, jogadores que chutavam de verdade, chutavam uma bola, em miniatura, mas redonda como toda bola deve ser. Todos os garotos do colégio desejavam esse jogo, desejavam poder disparar uma pancada ao estilo Roberto Carlos, assistir a bola viajar para o ângulo das enormes goleiras que acompanhavam o conjunto; eu não era diferente, era isso que comentava como se fosse assunto banal com meu pai e minha mãe, na esperança que eles compreendessem e, como bons pais, propiciassem ao filho a oportunidade de poder se divertir de forma ilimitada. Era com impulso da possibilidade que meu dia passava.
Trabalhei com meu pai, finalizamos a mesa e mamãe finalizou a limpeza da casa. Arrumamo-nos, coloquei minha camiseta mais nova e o tênis que havia ganho há alguns meses, mas que só usava em situações especiais, parecíamos membros das castas mais elevadas, assim fomos à missa. Passei todo o tempo pedindo perdão a Deus por desejar que o padre terminasse o sermão, que meus pais realizassem a comunhão e que o padre nos mandasse realizar o sinal da cruz e irmos todos em paz.
            A saída da igreja, por incrível que pareça, era o momento mais tenso. Saíamos em sintonias diferentes, meus pais caminhando, discutindo os preparativos da ceia que se aproximava, eu, corria por dentro, o coração desejando estar em casa defronte a árvore, desembrulhando o presente que me aguardava.
            Cheguei em casa alguns passos antes de meus pais que, providencialmente, haviam depositado, sorrateiramente, antes de sairmos, o embrulho mágico sob a guarda da pequena, mas bonita, árvore de Natal. E lá estava ele, a promessa de alegria corporificada, um mundo de possibilidades envolto em papel mágico vendido a rolo. As dimensões não eram as esperadas, uma ponta de frustração apertou um tanto o peito. Será que não ganharia o presente? A esperança é ilógica, luta contra as evidências, luta contra os fatos. Mesmo sabendo que ali, diante de mim, não estava o jogo que tanto almejava, ainda assim violei o embrulho como se minha vida dependesse daquilo. As nuvens da dúvida abandonaram o céu do conhecimento e revelaram um Jogo de botão. Nada de jogadores com pernas flexíveis, nada de bolinhas redondas, eram apenas times novos, ou melhor, fichas achatadas com adesivos novos para serem fixados. Entretanto, aquele Natal seria diferente, e iniciou quando olhei o pequeno espelho pendurado no pinheiro em forma de bola de natal e vi o rosto de meu pai. Demonstrava ansiedade, apreensão, a não possibilidade de aquisição do presente ideal e a necessidade de tentar compensar com algo mais simples. Foi naquele instante que despertei para a verdade, quem estava esperando o presente, mais do que eu, era ele. E tudo que ele pedia e esperava era poder proporcionar ao filho o melhor Natal do mundo, mesmo sem poder lhe conceder o presente sonhado.
            Então, de forma repentina, mais rápido que qualquer coisa, aquele brinquedo presente passou a significar mais do que qualquer outra coisa. Quis exclamar para ele o quanto aquilo fazia com que meu Natal se tornasse algo maravilhoso e especial. Corri para meu quarto, sem olhar para meus pais que aguardavam como um réu o veredito. Voltei com o velho campo de botão nos braços, meu pai abriu um dos sorrisos mais alegres que já vi em minha vida. Um sorriso que atestava sua felicidade enquanto pai. Olhei para ele e disse “Vamos jogar? Temos times novos!”. Ele, no mesmo instante, como se entrasse em um túnel do tempo, imediatamente agachou-se junto de mim indagando quais os times que constavam naquela caixa, quais as possibilidades que surgiam diante daquele novo objeto na casa. Estava feliz, havia ganho o melhor presente de todos, a felicidade do filho.

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