Era
com a ansiedade e as primeiras chacoalhadas do pano contra a água do balde que
o Natal comunicava sua presença. Acordei com as promessas daquela noite
povoando a minha mente, imagens de presentes que ainda não eram evocavam feitos
jorros de imaginação que me impeliam a saltar da cama com a disposição de um
leão. Foi ao sair do quarto que a
realidade desfez a todos esses sonhos, era véspera de Natal, o que significava
que a casa estava em trabalho, trabalho árduo e incansável. Mamãe já iniciara
seu ritual costumeiro na tentativa de deixar o velho chalé com o mesmo aspecto
dos mais nobres castelos europeus. Erguia aquele cabo de madeira com um pano
encharcado na ponta como um maestro defronte a orquestra, abaixando o com força
e o balançando para um lado e para o outro, em um movimento frenético que, aos
poucos, por incrível que pareça, davam uma pontinha de nobreza ao velho chalé
que morávamos.
- Passa guri, passa guri.
Passei
correndo, na ponta dos pés, segurando os chinelos para não macular aquele chão
que se transformava. E ela, pouco influenciada, voltava aos seus movimentos
frenéticos: ergue, esfrega, ergue, coloca no balde, torce o pano e recomeça
tudo novamente. Morávamos em um chalé com dois quartos, uma cozinha, uma
pequena sala e um banheiro. Nada luxuoso, mas nada tão ruim. Na verdade,
naquele dia, o que importava realmente era o fato de ser véspera de Natal. Por
isso, precisava marcar um jogo, uma brincadeira, um passeio de bicicleta, pois,
mais cedo ou mais tarde, achariam um afazer para mim naquele mutirão natalino.
Papai estava lá fora, serrava, media, pregava, voltava a serrar. Fazia uma mesa
de madeira para abrigar aos convidados para a ceia da noite que envolveria uma
grande e sadia galinha que faria o papel do Peru, ave um tanto metida a nobres
costumes e que não frequentava aqueles ambientes. Nunca sentia falta de seu
sabor porque não podemos sentir falta do que não conhecemos, fato era que a
galinha era imensamente desejada por aquelas bandas. Meu pai deu bom dia e
mandou que lhe alcançasse o saco com pregos que estava próximo do velho moerão,
meu dia já estava destinado. Entreguei-lhe o prego e acompanhei o martelar de
cada um deles, nos seus devidos lugares, sem erros, sem medo, batidas firmes e
fortes, admirava meu pai.
- Já escolheu o presente? – disse entre dentes
enquanto equilibrava com a boca alguns pregos.
- Já sim. – respondi de forma apressada.
- Merece ganhar?
- Não sei.
- Como não sabe?
- Sei lá, simplesmente não sei. – respondi. Na
verdade, sabia muito mais do que transparecia. Sabia que não seria visitado por
um velho de vermelho, mas que era aquele sujeito me questionando que colocaria,
bem no horário da missa, o presente, que eu tanto desejava, sob a árvore. Adorava tudo aquilo, permitia
que me enganasse para que, talvez, desse modo, pudesse ter um dia especial e
resguardado das dificuldades de todos os dias. Ajudei de forma obediente meu
pai na confecção do que viria a ser nosso altar de oferendas para uma boa janta
em família. Ajudá-lo possuía seu prêmio: não precisar ajudar a mamãe. Ajudá-la significaria
estar frente a frente com os meus desleixos semanais como acusadores em
prontidão para dedurar-me a uma inquisitora, por vezes, maldosa, que não
trabalhava com misericórdia. Em
compensação, se eu não estivesse por perto quando ela encontrasse as
evidências, apenas ouviria uma bronca mais tarde. Foi o que fiz naquele dia.
Paramos
de trabalhar para almoçarmos, eu estava suado, e minha mãe, piedosa, preparou
uma deliciosa limonada gelada para nós, homens da casa. A conversa no almoço foi
em torno da ceia da noite e, como não poderia deixar de ser, das visitas que
chegariam para comemorar o dia de festa. Papai comentava que, possivelmente,
meu tio, irmão da minha mãe, não traria nada e diria que esquecera. Mamãe
repreendia-o. Na verdade, a família que estaria sentada à mesa que estávamos
construindo seria a de minha mãe, pois meu pai não trouxe, junto consigo, uma
bagagem familiar, perdera sua mãe, minha avó, um tanto cedo, e o pai, meu avô,
se perdera de meu pai mais cedo ainda. Sozinho, órfã de família, assim chegou
meu pai para o casamento com minha mãe.
Após
o almoço, meu pai retirou-se para sua estada particular, em seu recanto
sagrado. Fui incumbido de auxiliar minha mãe na retirada das louças e restos do
almoço. O término da refeição diurna, deixava no ar o cheiro e a promessa de
que a hora estava aproximando-se. Involuntariamente, flertava com a, ainda,
vazia árvore de Natal na esperança de que, em um dos segundos que os olhos
haviam perdido a árvore de vista, um pacote misterioso pudesse ter sido
acrescido ao cenário, um pacote quadrado, aproximadamente com meio metro de
altura, com um daqueles papéis coloridos que embalam os sonhos mais bonitos.
Meu sonho era relativo ao futebol, ao mais recente lançamento. Eu, acostumado a
gastar tardes de joelhos disputando campeonatos que se decidiam em um “à gol”
ou “dois toques”, tendo como astros jogadores achatados que não podiam se
afastar do campo de jogo, agora, somente visualizava aqueles jogadores eretos,
como os reis que via nos livros de história, jogadores que chutavam de verdade,
chutavam uma bola, em miniatura, mas redonda como toda bola deve ser. Todos os
garotos do colégio desejavam esse jogo, desejavam poder disparar uma pancada ao
estilo Roberto Carlos, assistir a bola viajar para o ângulo das enormes
goleiras que acompanhavam o conjunto; eu não era diferente, era isso que
comentava como se fosse assunto banal com meu pai e minha mãe, na esperança que
eles compreendessem e, como bons pais, propiciassem ao filho a oportunidade de
poder se divertir de forma ilimitada. Era com impulso da possibilidade que meu
dia passava.
Trabalhei com meu pai,
finalizamos a mesa e mamãe finalizou a limpeza da casa. Arrumamo-nos, coloquei
minha camiseta mais nova e o tênis que havia ganho há alguns meses, mas que só
usava em situações especiais, parecíamos membros das castas mais elevadas,
assim fomos à missa. Passei todo o tempo pedindo perdão a Deus por desejar que
o padre terminasse o sermão, que meus pais realizassem a comunhão e que o padre
nos mandasse realizar o sinal da cruz e irmos todos em paz.
A
saída da igreja, por incrível que pareça, era o momento mais tenso. Saíamos em
sintonias diferentes, meus pais caminhando, discutindo os preparativos da ceia
que se aproximava, eu, corria por dentro, o coração desejando estar em casa
defronte a árvore, desembrulhando o presente que me aguardava.
Cheguei
em casa alguns passos antes de meus pais que, providencialmente, haviam
depositado, sorrateiramente, antes de sairmos, o embrulho mágico sob a guarda
da pequena, mas bonita, árvore de Natal. E lá estava ele, a promessa de alegria
corporificada, um mundo de possibilidades envolto em papel mágico vendido a
rolo. As dimensões não eram as esperadas, uma ponta de frustração apertou um
tanto o peito. Será que não ganharia o presente? A esperança é ilógica, luta
contra as evidências, luta contra os fatos. Mesmo sabendo que ali, diante de
mim, não estava o jogo que tanto almejava, ainda assim violei o embrulho como
se minha vida dependesse daquilo. As nuvens da dúvida abandonaram o céu do
conhecimento e revelaram um Jogo de botão. Nada de jogadores com pernas
flexíveis, nada de bolinhas redondas, eram apenas times novos, ou melhor,
fichas achatadas com adesivos novos para serem fixados. Entretanto, aquele
Natal seria diferente, e iniciou quando olhei o pequeno espelho pendurado no
pinheiro em forma de bola de natal e vi o rosto de meu pai. Demonstrava
ansiedade, apreensão, a não possibilidade de aquisição do presente ideal e a
necessidade de tentar compensar com algo mais simples. Foi naquele instante que
despertei para a verdade, quem estava esperando o presente, mais do que eu, era
ele. E tudo que ele pedia e esperava era poder proporcionar ao filho o melhor
Natal do mundo, mesmo sem poder lhe conceder o presente sonhado.
Então,
de forma repentina, mais rápido que qualquer coisa, aquele brinquedo presente
passou a significar mais do que qualquer outra coisa. Quis exclamar para ele o
quanto aquilo fazia com que meu Natal se tornasse algo maravilhoso e especial.
Corri para meu quarto, sem olhar para meus pais que aguardavam como um réu o
veredito. Voltei com o velho campo de botão nos braços, meu pai abriu um dos
sorrisos mais alegres que já vi em minha vida. Um sorriso que atestava sua
felicidade enquanto pai. Olhei para ele e disse “Vamos jogar? Temos times
novos!”. Ele, no mesmo instante, como se entrasse em um túnel do tempo,
imediatamente agachou-se junto de mim indagando quais os times que constavam
naquela caixa, quais as possibilidades que surgiam diante daquele novo objeto
na casa. Estava feliz, havia ganho o melhor presente de todos, a felicidade do
filho.
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