sábado, 5 de setembro de 2015

Talvez

Fonte: http://imguol.com/c/noticias/f3/2015/09/03/3set2015---ao-abracar-aylan-kurdi-um-anjo-diz-espero-que-a-humanidade-encontre-a-cura-para-os-vistos-de-entrada-1441316749554_956x500.jpg
Era um garoto na praia. Não estava brincando na água, não berrava exigindo um picolé, um milho verde, um refrigerante, muito menos, atenção para uma brincadeira mais arrojada, um movimento diferenciado, um mergulho arriscado. Era muito jovem para boa parte dos atos citados. Na verdade, era muito jovem para a grande maioria das coisas.
            Talvez, não tenha compreendido, por que teria que sair de sua casa, abandonar seus brinquedos e seus amiguinhos. Não tenha entendido que os sons frequentes que ouvia, não eram fogos de artifício, era jovem demais para compreender as maldades dos homens. Talvez, tenha recebido com alegria a possibilidade de poder desbravar um mar imenso que se desenhava a sua frente, poderia ser como os heróis dos desenhos animados, que manejavam com habilidade aqueles imensos construtos humanos que desafiavam os nervosos e constantes movimentos marítimos. Talvez tenha se alegrado ao ver tanta gente tendo a possibilidade de ingressar naquela aventura, como conquistadores, um alento para o fato de precisar abandonar sua casa, seu quarto, sua cama, seu travesseiro. Sim, o garoto não nascera na praia, nascera, possivelmente, em um hospital, recebera um nome, fora abraçado com entusiasmo pela mãe quando o médico o deixou nos braços cansados da moça após o parto. Mesmo que inconsciente, fora assistido pelo pai através de um vidro, sendo venerado e saudado como um presente, um milagre da vida. Fora posto para dormir, inúmeras noites, embalado por canções de ninar e promessas de um futuro lindo e promissor que não chegou: “dorme, meu pequeno craque”, “ dorme, meu filho, você será um lindo e forte rapaz”, “dorme, meu coração, meu futuro doutor”.
            Talvez, quando o barco deu sinais de que naufragaria, possa ter ficado tranquilo, pois era pequeno demais para saber que o pai não possuía superpoderes, que não poderia fazer as águas do mediterrâneo abrirem para transportar o menino em segurança à costa. Muito menos conseguia entender, enquanto a água começava a lhe importunar, por que a família precisava fazer tudo isso para visitar um lugar, que mal eles poderiam causar a alguém para que não pudessem ser recebidos de bom grado em qualquer lugar do mundo? Ele seria um bom menino, não pediria nada, ficaria quietinho brincando, não seria um estorvo aos habitantes de qualquer região desse planeta. Era jovem demais para saber que uma vida é barata, descartável, e apenas um grão de areia diante de preceitos políticos, religiosos, culturais e econômicos. Era jovem demais.
            Talvez, e gosto desse talvez, uma espécie de anjo tenha se apiedado de tudo isso. Tenha movido suas asas imensas, descido lentamente em direção daquelas pessoas em pânico, pego, delicadamente, a diminuta mão daquela criança e levado ela para um mundo sem pátria, sem cor, sem política, sem guerra e sem rancor, onde todos são respeitados, sem importar suas escolhas. Talvez, tenha ficado com receio que aquela criança conhecesse o que há de pior na humanidade, e, assim, deixou intacto seu coração.
            Talvez, aquela criança esteja sã e salva em algum lugar. Talvez, naquela praia na Turquia, tenha ficado, dolorosamente escancarada, apenas a nossa humanidade.

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