segunda-feira, 7 de setembro de 2015

A cidade esquecida



           Zezinho morava na Rua das Dores em uma casa de pau a pique, herança da família, tradicional dentro daquela comunidade.  O pai de Zezinho, Zezé, era considerado o louco oficial da cidade. Perambulava por todos os lugares carregando uma pequena maleta, afirmando que possuía nela, todos os males do mundo, sendo ele um guardião das mazelas da humanidade, cargo que o tornava, segundo ele mesmo, a pessoa mais importante do planeta, um escolhido divino. No decorrer dos anos, passou a ser o filho predileto da cidade, uma espécie de mascote, uma celebridade não oficial. Contudo, mesmo possuindo um papel destacado em seu mundo, não teve como burlar as agruras do tempo e, assim, como todos, partiu. Mas deixou sua herança, que carinhosamente recebeu a alcunha do pai devidamente composta por um diminutivo.
            Zezinho não andava com uma mala, na verdade, apenas andava. Sempre estava atrasado para um compromisso que nunca chegava, despertava com o sol, passando altivo e decidido pela cidade, sem antes não deixar de falar com cada um dos habitantes que davam vida às manhãs citadinas.
            Vizinho da Rua das Flores, Teodoro, padeiro oficial da cidade, corpulento e sempre disposto, era sempre o primeiro a ser saudado:
- Bom dia, seu Teodoro!
- Bom dia, seu Zezinho! Já vai?
- Já vou, compromisso, sabe como é. Como passou a noite?
- Muito bem. Aceita um pão? Saiu agora do forno.
- Olha, não gosto de me aproveitá, não. Mas como é presente. Presente é presente.
            O presente era rotina, o pão sempre saia de trás do balcão manhã após manhã. Zezinho, o pegava, sempre de forma a parecer que estava fazendo, ele, um favor ao padeiro, que limpava as mãos no avental sobre o balcão do caixa.
- Fique com a graça de Deus, seu Teodoro. Não posso ficá pra conversa.
- Vá lá. E se cuida.
- Pode deixar, seu Teodoro. Segurança sempre.
            E assim, iniciava a peregrinação de Zezinho. Percorria a Avenida Dom Pedro I como um executivo em direção a uma reunião inadiável. Enquanto percorria o trajeto, fazia questão de saudar aos proprietários e funcionários que abriam as portas de seus estabelecimentos para receberem a vida diurna da pacata cidade. Era bom-dia para todos, Carlinhos da joalharia, Toró da barbearia, Maria Lúcia da loja de roupas, Feijó da banca de revistas. Próximo das 10 horas, parava sempre no mesmo banco da praça e comia o pão de seu Teodoro, e ali permanecia até próximo do meio-dia, questionando a todos que passavam a respeito de suas noites de sono, filhos, serviços e outros assuntos pertinentes a vida racional em sua cidade.
            Após o meio-dia, levantava do banco e partia para seu compromisso em um lugar que ninguém conhecia, ausentava-se da vista de todos para ressurgir apenas ao fim de tarde.  Ressurgia na esquina da Dom Pedro I e, ao longo de todo trajeto, desejava a cada transeunte uma ótima noite, sempre finalizando a saudação com o desejo final de “fique com a graça de Deus”. Todos o gostavam desgostando, sempre o apontando, “olha lá o Zezinho, mais louco não existe”.
            Pois eis que, em um desses casos imprevisíveis que os homens nomeiam como “golpe do destino”, todos tiveram notícia do causo da madrugada, da ambulância berrando, do arranhar da maca veloz pelo corredor do hospital e do silêncio após o se for. Zezinho era diabético, hipertenso e cardíaco, morrera no meio da madrugada.
            Por alguns dias, Zezinho continuou a desfilar na cidade, a andar por entre os habitantes através das conversas e discussões sobre o ocorrido. Fato era que o assunto seria longo não fosse a estranheza que se instalou na cidade. O primeiro a notar foi seu Teodoro que, ao abrir as portas da padaria, achou a luz matinal um tanto sem graça. Sentimento que percorreu a Dom Pedro I na mesma velocidade das passadas de Zezinho. A cidade vivia um período de dormência coletiva, anestesiada, sobre efeito de algo que não se sabia o quê. Os pães de Teodoro já não tinham sabor, as massas de Dona Gê perderam o encanto, as revistas de Feijó não carregavam novidades interessantes, eram, todos, habitantes sem cidade.
            Foi Neto, filho do padeiro, que em uma manhã, após o pai abrir a padaria, virou para o velho e perguntou:
- Dormiu bem, pai?
- Dormi.
- Como estão as coisas para hoje? Dia bonito, né?
            De repente, a luz da manhã voltou a existir. Sem responder ao filho, Teodoro pediu para a esposa ficar de olho na padaria naquela manhã, e passou a percorrer toda Dom Pedro I cumprimentando a todos, sem formalismo, sem perguntas automáticas, preocupando-se em ouvir o que tinham a dizer, querendo ouvi-los. Foi aproximadamente às 10 horas que alcançou a praça e o banco utilizado uma vida antes por Zezinho. E ali, assistiu a manhã ganhar vida, as calçadas se ocuparem da gente daquele lugar, os pássaros pousarem a procura dos espólios da noite, os velhos percorrerem seus trajetos em uma corrida sem pressa, as crianças correndo para os brinquedos. Pela primeira vez em anos, sentiu o ar percorrer seus pulmões, ar que há anos não respirava. Por toda aquela manhã, conheceu uma cidade que conhecia não conhecendo. Apaixonara-se pela vida novamente.
            Com o tempo, todos passaram a revezar-se na tarefa, sempre iniciavam pela padaria e paravam na praça, esperavam ansiosamente a oportunidade de falar a todos, caminhar pela, agora, linda Dom Pedro I e, principalmente, por viver, nem que fosse por uma manhã, a vida que ali sempre estivera disponível.

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