Zezinho morava na Rua das Dores em uma casa de
pau a pique, herança da família, tradicional dentro daquela comunidade. O pai de Zezinho, Zezé, era considerado o
louco oficial da cidade. Perambulava por todos os lugares carregando uma
pequena maleta, afirmando que possuía nela, todos os males do mundo, sendo ele
um guardião das mazelas da humanidade, cargo que o tornava, segundo ele mesmo,
a pessoa mais importante do planeta, um escolhido divino. No decorrer dos anos,
passou a ser o filho predileto da cidade, uma espécie de mascote, uma
celebridade não oficial. Contudo, mesmo possuindo um papel destacado em seu
mundo, não teve como burlar as agruras do tempo e, assim, como todos, partiu.
Mas deixou sua herança, que carinhosamente recebeu a alcunha do pai devidamente composta por um diminutivo.
Zezinho
não andava com uma mala, na verdade, apenas andava. Sempre estava atrasado para
um compromisso que nunca chegava, despertava com o sol, passando altivo e
decidido pela cidade, sem antes não deixar de falar com cada um dos habitantes que
davam vida às manhãs citadinas.
Vizinho
da Rua das Flores, Teodoro, padeiro oficial da cidade, corpulento e sempre
disposto, era sempre o primeiro a ser saudado:
- Bom dia, seu Teodoro!
- Bom dia, seu Zezinho! Já vai?
- Já vou, compromisso, sabe como é. Como passou
a noite?
- Muito bem. Aceita um pão? Saiu agora do
forno.
- Olha, não gosto de me aproveitá, não. Mas
como é presente. Presente é presente.
O
presente era rotina, o pão sempre saia de trás do balcão manhã após manhã.
Zezinho, o pegava, sempre de forma a parecer que estava fazendo, ele, um favor
ao padeiro, que limpava as mãos no avental sobre o balcão do caixa.
- Fique com a graça de Deus, seu Teodoro. Não
posso ficá pra conversa.
- Vá lá. E se cuida.
- Pode deixar, seu Teodoro. Segurança sempre.
E
assim, iniciava a peregrinação de Zezinho. Percorria a Avenida Dom Pedro I como
um executivo em direção a uma reunião inadiável. Enquanto percorria o trajeto,
fazia questão de saudar aos proprietários e funcionários que abriam as portas
de seus estabelecimentos para receberem a vida diurna da pacata cidade. Era bom-dia
para todos, Carlinhos da joalharia, Toró da barbearia, Maria Lúcia da loja de
roupas, Feijó da banca de revistas. Próximo das 10 horas, parava sempre no
mesmo banco da praça e comia o pão de seu Teodoro, e ali permanecia até próximo
do meio-dia, questionando a todos que passavam a respeito de suas noites de
sono, filhos, serviços e outros assuntos pertinentes a vida racional em sua
cidade.
Após
o meio-dia, levantava do banco e partia para seu compromisso em um lugar que
ninguém conhecia, ausentava-se da vista de todos para ressurgir apenas ao fim
de tarde. Ressurgia na esquina da Dom
Pedro I e, ao longo de todo trajeto, desejava a cada transeunte uma ótima
noite, sempre finalizando a saudação com o desejo final de “fique com a graça
de Deus”. Todos o gostavam desgostando, sempre o apontando, “olha lá o Zezinho,
mais louco não existe”.
Pois
eis que, em um desses casos imprevisíveis que os homens nomeiam como “golpe do
destino”, todos tiveram notícia do causo da madrugada, da ambulância berrando,
do arranhar da maca veloz pelo corredor do hospital e do silêncio após o se
for. Zezinho era diabético, hipertenso e cardíaco, morrera no meio da madrugada.
Por
alguns dias, Zezinho continuou a desfilar na cidade, a andar por entre os habitantes
através das conversas e discussões sobre o ocorrido. Fato era que o assunto
seria longo não fosse a estranheza que se instalou na cidade. O primeiro a
notar foi seu Teodoro que, ao abrir as portas da padaria, achou a luz matinal
um tanto sem graça. Sentimento que percorreu a Dom Pedro I na mesma velocidade
das passadas de Zezinho. A cidade vivia um período de dormência coletiva, anestesiada,
sobre efeito de algo que não se sabia o quê. Os pães de Teodoro já não tinham
sabor, as massas de Dona Gê perderam o encanto, as revistas de Feijó não carregavam
novidades interessantes, eram, todos, habitantes sem cidade.
Foi
Neto, filho do padeiro, que em uma manhã, após o pai abrir a padaria, virou
para o velho e perguntou:
- Dormiu bem, pai?
- Dormi.
- Como estão as coisas para hoje? Dia bonito,
né?
De
repente, a luz da manhã voltou a existir. Sem responder ao filho, Teodoro pediu
para a esposa ficar de olho na padaria naquela manhã, e passou a percorrer toda
Dom Pedro I cumprimentando a todos, sem formalismo, sem perguntas automáticas,
preocupando-se em ouvir o que tinham a dizer, querendo ouvi-los. Foi
aproximadamente às 10 horas que alcançou a praça e o banco utilizado uma vida
antes por Zezinho. E ali, assistiu a manhã ganhar vida, as calçadas se ocuparem
da gente daquele lugar, os pássaros pousarem a procura dos espólios da noite,
os velhos percorrerem seus trajetos em uma corrida sem pressa, as crianças
correndo para os brinquedos. Pela primeira vez em anos, sentiu o ar percorrer
seus pulmões, ar que há anos não respirava. Por toda aquela manhã, conheceu uma
cidade que conhecia não conhecendo. Apaixonara-se pela vida novamente.
Com
o tempo, todos passaram a revezar-se na tarefa, sempre iniciavam pela padaria e
paravam na praça, esperavam ansiosamente a oportunidade de falar a todos,
caminhar pela, agora, linda Dom Pedro I e, principalmente, por viver, nem que
fosse por uma manhã, a vida que ali sempre estivera disponível.
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