terça-feira, 29 de setembro de 2015

O Invasor

          Então ele surgiu. Grande, peludo e com costumes felinos, não havia dúvidas, era um gato. Um animal enorme, do tamanho de um homem, no meio da sala. Não sabia como explicar a estranha aparição, muito menos como um gato poderia ser daquele tamanho e andar apenas sobre duas patas traseiras. Enquanto pensava o que fazer a respeito da inusitada presença, sentou-se em seu sofá, estava cansado e exausto, era início do mês e as solicitações e demandas avolumavam-se sobre sua mesa. Ligou a televisão para relaxar, mas o controle da TV por assinatura não estava em seu local habitual, encontrava-se nas patas do gato, que trocava o canal de forma aleatória. Tentou protestar, mas não obteve sucesso, o felino trocava de canais sem parar até que parou em um documentário sobre vida selvagem. Pensou em tomar o controle, exigir o poder da programação de sua televisão, porém, cansado, optou por assistir o que havia sido selecionado. Não conseguia manter a atenção às disputas animais. Afinal, o que um gato fazia em sua sala? Deveria estar na rua, correndo atrás de ratos pelos bueiros da cidade, apesar de que, pelo tamanho que o bichano possuía, não existia rato que pudesse lhe fazer frente. Tinha seu corpo coberto de pelos, espessos, que oscilavam entre o branco e preto. Ocupava um espaço considerável na poltrona no meio da sala, a poltrona que antes era ocupada pelo dono da casa. Suas patas eram um misto entre mãos humanas e patas animais, cobertas por grandes pelos que encobriam as terminações que lembravam dedos e culminavam em grandes e longas garras, que lembravam vagamente unhas humanas.
            Pensando no gato adormeceu. Despertou de forma repentina, o gato continuava ali, impassível, assistindo a um velho filme de bang-bang. Decidiu não criar problemas, amanhã resolveria o caso e, além do mais, trabalhara muito e trabalharia no dia seguinte, portanto precisava dormir. Não desligou a luz, pois, se o hóspede inusitado assim o quisesse, já o teria feito, e foi para o quarto. Não teve sonhos, apenas recordava de cerrar os olhos e ouvir o despertador. Foi fazer o café, ele estava sentado à mesa, aguardando, “maldito explorador”, pensou enquanto coletava os ingredientes para um simples sanduíche.
- Preciso chegar o quanto antes, é fim do mês, uma folha imensa para fechar. Ei, esse cereal é meu...
            Era tarde, o animal utilizava todo o espaço confortável da mesa. Alimentava-se com o cereal que havia comprado dois dias antes, cereal caro demais para o que podia proporcionar: um ruído crocante, um leve doce do açúcar e uma possibilidade de boa saúde a longo prazo. Não valia o investimento, por que o comprará? Questionava a si mesmo enquanto o bichano o devorava bem em sua frente. Desistiu de tentar reaver seu patrimônio, ”que se vá o cereal para o inferno, assim como esse gato, preciso é ir trabalhar” resmungou ao deixar à mesa e dirigir-se ao quarto para se arrumar.
           Trabalhou como sempre, fazendo hora extra, coisa rotineira em dias de fechamento de folhas de pagamento. Mesmo sabendo, quase que infantilmente, imaginou-se entrando em casa e encontrá-la vazia, seu sofá, o controle da televisão, seu império a sua disposição. Não aconteceu. Lá estava o peludo, no mesmo lugar, no seu lugar de direito, com as patas traseiras cruzadas sobre o banco convenientemente posto defronte a poltrona, as patas dianteiras repousadas sobre o ventre entrelaçadas como se ele estivesse orando para a televisão. Televisão que ainda estava pagando, 20 vezes, 20 meses, 20 horas extras todos os meses. Era sua, não poderia ser de mais ninguém.
            Sentou em uma cadeira próxima, acabou adormecendo sentado na cadeira pouco confortável da mesa de jantar. Sonhou que estava no mar, em um barco pequeno, acossado por enormes ondas que, a cada choque com a embarcação, produziam sons ensurdecedores. Não sabia como havia parado naquela situação, tentava sair dela, mas, sempre que ousava sair da posição fetal em que estava, era atingido violentamente pelo balançar do barco e, irritantemente, se via novamente na mesma posição e local. Podia sentir a salinidade da água marinha em sua garganta, um gosto de peixe e algas, o mar começava a ficar escuro como uma noite fria de inverno. Possuía um aspecto de sujeira, algo próximo da imundície. A água escura o sufocava cada vez mais, entrava por cada espaço do seu corpo, sentia o sal fundindo-se a sua essência, o ar tornando-se escasso a cada jato de água que espirrava contra ele. Continuava lutando, mas, internamente, começava a compreender que estava perdido, que dali somente a morte o libertaria. Sabia que não poderia, entretanto inspirou, de uma vez só, a maior quantidade que já havia sorvido de ar, ar para uma vida inteira, ar em forma de água escura e salgada que entrou violentamente pelas narinas e garganta, que lhe apertou o peito, que lhe trancou a vida...que o despertou.
            Acordou assustado. Podia sentir o sal em sua boca, a ausência de vida, a morte que não ocorrera. Foram necessários alguns instantes até se convencer que estava vivo e que a sala era firme, imutável, segura e em nada lembrava um barco. Correu os olhos na sala, o ser não estava mais lá, o sofá estava vazio, a televisão estava desligada, será que havia sonhado todo esse tempo? Talvez estivesse com algum distúrbio, não havia tempo para investigar, viu no relógio da parede que eram 3:30 da manhã, dormir era essencial, o dia prometia ser longo no setor que trabalhava. Seria devorado por montanhas de relatórios e papéis com nomes e números intermináveis, sentiria cansaço, levantaria inutilmente para pegar um café como forma de disfarçar a sensação de aprisionamento, porém, devido às constantes saídas, teria que ficar mais tarde que o habitual, mais do que as luzes da maioria das casas costumam aguentar acessas todos os dias, chegaria em casa escutando o silêncio da madrugada, sozinho, solitário e cansado, muito cansado. Dormir, realmente, não era uma opção, era uma necessidade.  
            Abriu a porta de seu quarto, seu recanto de tranquilidade, seu escudo contra o mundo veloz do lado externo daquelas paredes. Foi na penumbra, ainda quando os vultos e silhuetas são os seres mais vivos possíveis, que vislumbrou um volume sobre a cama, mais negro que a escuridão que dominava o ambiente, temeroso, aproximou-se lentamente, passo por passo, até chocar seu joelho, levemente, com a barra da cama, podendo, assim, distinguir o pelo, o bigode, as orelhas pontudas, as garras, emaranhadas em um misto de pelos, repousadas sobre o peito. O gato tomara sua cama, não havia dúvidas. Pensou em tirá-lo de lá, empurrá-lo, mas estava cansado, cansado para disputas fúteis que não levariam a nada. De repente, o tapete ao lado da cama lhe pareceu uma boa opção, pôs o despertador para às 5:20, dormiria apenas 2 horas, repousou sobre o tapete e adormeceu quase que instantaneamente.
            Não sonhou, apenas despertou com o alarde estridente do despertador. Olhou sobre a cama e não avistou o gato. Tratou de alongar as costas e juntas doloridas pela noite amparada sobre a crueldade do chão daquele quarto. Cada parte do corpo fazia questão de lembrá-lo o que havia feito. Tomaria um banho para reavivar as forças e encarar um longo dia de trabalho, foi até a porta e tentou abri-la, nada aconteceu. A porta não abria, entrou em desespero, tentou por quase 10 minutos, em vão, destravar a porta, foi à janela e a mesma coisa repetiu-se, estava preso, o gato o havia prendido. Pensou em solicitar socorro, arrombar a porta, arrombar a janela, contudo, estranhamente, a voz não lhe ajudava e as forças o abandonaram. O celular não respondia aos comandos, era refém em sua própria residência. Após horas de incômodo, desespero e luta, deixou-se cair na cama e apagou. Um sono calmo e tranquilo, novamente sem sonho, sem paisagens, apenas um desligar-se, um não estar.
            A primeira coisa que sentiu, quando acordou, foi a coleira, o importunava, deixava-o ansioso, tentou levantar, mas não conseguiu, a corrente não permitia. Foi apenas então que notou, estava na dispensa da casa, diante de um pote com comida e outro com água, era refém, estava confinado, aquele gato o enganara, tomara a sua vida, e, agora, ele estava ali, em um ambiente escuro, com um cheiro horrível, um misto de produtos químicos e gordura, sentia o piso gelado e, ao mesmo tempo, pegajoso, sentiu ânsia e ojeriza. Não fazia a mínima ideia do horário que poderia ser, apenas que estava sozinho, abandonado e perdido em sua própria casa. Ouviu um barulho, algo como uma porta, passos ecoaram, alguém estava caminhando pela casa. Os ruídos foram se aproximando, um facho de luz surgiu na fresta embaixo da porta, pôde vislumbrar pés, viu a maçaneta da porta girar, a luz entrou forte e seus olhos a rejeitaram de início, quando o choque se atenuou, conseguiu visualizar, com toda clareza, o animal, em pé, diante dele, usando o seu uniforme. Trajava o uniforme da sua empresa, carregando a sua pasta de trabalho. Imediatamente pensou: “ladrão! É minha vida, minha vida! ”. E, antes que o gato, enquanto agachava-se, pudesse alcançar o pote de água com um dos braços, o homem, como um animal raivoso, atacou aquele braço e berrou:
- Me tira daqui!!.
            O som que emitiu o chocou e emudeceu a si próprio, não era uma voz humana, não era nenhuma língua conhecida ou desconhecida. Na verdade, soltou um alto e estridente miado. Horrorizado, assistiu o braço do gato recuar, mas não era o braço peludo dos outros dias, era um braço humano, sangrando pelo ataque repentino. Olhou para si, e suas mãos possuíam garras manchadas com o sangue de seu rompante desesperado, seus braços ganhavam pelos espessos e escuros. Sem acreditar, olhou para cima, o gato já possuía olhos e bocas humanos, o nariz começava a alongar-se e avolumar-se, as orelhas diminuíam e deslocavam-se para as laterais do crânio, os pés calçavam confortáveis calçados, calçados que o homem comprara no último verão. Olhou novamente para cima, e a constatação que chegou o fez recuar contra a parede úmida e gelada, os olhos, nariz, boca, orelhas que surgiam no gato eram mais do que humanos, eram mais do que familiares, eram seus. E foi com a voz que era sua, que o gato, fechando a porta falou:
- É assim? Então vai ficar sem comida.

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