Então ele surgiu. Grande,
peludo e com costumes felinos, não havia dúvidas, era um gato. Um animal
enorme, do tamanho de um homem, no meio da sala. Não sabia como explicar a
estranha aparição, muito menos como um gato poderia ser daquele tamanho e andar
apenas sobre duas patas traseiras. Enquanto pensava o que fazer a respeito da
inusitada presença, sentou-se em seu sofá, estava cansado e exausto, era início
do mês e as solicitações e demandas avolumavam-se sobre sua mesa. Ligou a
televisão para relaxar, mas o controle da TV por assinatura não estava em seu
local habitual, encontrava-se nas patas do gato, que trocava o canal de forma
aleatória. Tentou protestar, mas não obteve sucesso, o felino trocava de canais
sem parar até que parou em um documentário sobre vida selvagem. Pensou em tomar
o controle, exigir o poder da programação de sua televisão, porém, cansado,
optou por assistir o que havia sido selecionado. Não conseguia manter a atenção
às disputas animais. Afinal, o que um gato fazia em sua sala? Deveria estar na
rua, correndo atrás de ratos pelos bueiros da cidade, apesar de que, pelo
tamanho que o bichano possuía, não existia rato que pudesse lhe fazer frente. Tinha
seu corpo coberto de pelos, espessos, que oscilavam entre o branco e preto.
Ocupava um espaço considerável na poltrona no meio da sala, a poltrona que
antes era ocupada pelo dono da casa. Suas patas eram um misto entre mãos
humanas e patas animais, cobertas por grandes pelos que encobriam as
terminações que lembravam dedos e culminavam em grandes e longas garras, que lembravam
vagamente unhas humanas.
Pensando no gato adormeceu.
Despertou de forma repentina, o gato continuava ali, impassível, assistindo a
um velho filme de bang-bang. Decidiu não criar problemas, amanhã resolveria o
caso e, além do mais, trabalhara muito e trabalharia no dia seguinte, portanto
precisava dormir. Não desligou a luz, pois, se o hóspede inusitado assim o
quisesse, já o teria feito, e foi para o quarto. Não teve sonhos, apenas
recordava de cerrar os olhos e ouvir o despertador. Foi fazer o café, ele
estava sentado à mesa, aguardando, “maldito explorador”, pensou enquanto
coletava os ingredientes para um simples sanduíche.
- Preciso chegar o quanto antes, é fim do mês,
uma folha imensa para fechar. Ei, esse cereal é meu...
Era
tarde, o animal utilizava todo o espaço confortável da mesa. Alimentava-se com
o cereal que havia comprado dois dias antes, cereal caro demais para o que
podia proporcionar: um ruído crocante, um leve doce do açúcar e uma
possibilidade de boa saúde a longo prazo. Não valia o investimento, por que o
comprará? Questionava a si mesmo enquanto o bichano o devorava bem em sua
frente. Desistiu de tentar reaver seu patrimônio, ”que se vá o cereal para o
inferno, assim como esse gato, preciso é ir trabalhar” resmungou ao deixar à
mesa e dirigir-se ao quarto para se arrumar.
Trabalhou como sempre, fazendo
hora extra, coisa rotineira em dias de fechamento de folhas de pagamento. Mesmo
sabendo, quase que infantilmente, imaginou-se entrando em casa e encontrá-la
vazia, seu sofá, o controle da televisão, seu império a sua disposição. Não
aconteceu. Lá estava o peludo, no mesmo lugar, no seu lugar de direito, com as
patas traseiras cruzadas sobre o banco convenientemente posto defronte a
poltrona, as patas dianteiras repousadas sobre o ventre entrelaçadas como se
ele estivesse orando para a televisão. Televisão que ainda estava pagando, 20
vezes, 20 meses, 20 horas extras todos os meses. Era sua, não poderia ser de
mais ninguém.
Sentou
em uma cadeira próxima, acabou adormecendo sentado na cadeira pouco confortável
da mesa de jantar. Sonhou que estava no mar, em um barco pequeno, acossado por
enormes ondas que, a cada choque com a embarcação, produziam sons
ensurdecedores. Não sabia como havia parado naquela situação, tentava sair dela,
mas, sempre que ousava sair da posição fetal em que estava, era atingido violentamente
pelo balançar do barco e, irritantemente, se via novamente na mesma posição e
local. Podia sentir a salinidade da água marinha em sua garganta, um gosto de
peixe e algas, o mar começava a ficar escuro como uma noite fria de inverno.
Possuía um aspecto de sujeira, algo próximo da imundície. A água escura o
sufocava cada vez mais, entrava por cada espaço do seu corpo, sentia o sal
fundindo-se a sua essência, o ar tornando-se escasso a cada jato de água que
espirrava contra ele. Continuava lutando, mas, internamente, começava a
compreender que estava perdido, que dali somente a morte o libertaria. Sabia
que não poderia, entretanto inspirou, de uma vez só, a maior quantidade que já
havia sorvido de ar, ar para uma vida inteira, ar em forma de água escura e
salgada que entrou violentamente pelas narinas e garganta, que lhe apertou o
peito, que lhe trancou a vida...que o despertou.
Acordou
assustado. Podia sentir o sal em sua boca, a ausência de vida, a morte que não
ocorrera. Foram necessários alguns instantes até se convencer que estava vivo e
que a sala era firme, imutável, segura e em nada lembrava um barco. Correu os
olhos na sala, o ser não estava mais lá, o sofá estava vazio, a televisão
estava desligada, será que havia sonhado todo esse tempo? Talvez estivesse com
algum distúrbio, não havia tempo para investigar, viu no relógio da parede que
eram 3:30 da manhã, dormir era essencial, o dia prometia ser longo no setor que
trabalhava. Seria devorado por montanhas de relatórios e papéis com nomes e
números intermináveis, sentiria cansaço, levantaria inutilmente para pegar um
café como forma de disfarçar a sensação de aprisionamento, porém, devido às
constantes saídas, teria que ficar mais tarde que o habitual, mais do que as
luzes da maioria das casas costumam aguentar acessas todos os dias, chegaria em
casa escutando o silêncio da madrugada, sozinho, solitário e cansado, muito
cansado. Dormir, realmente, não era uma opção, era uma necessidade.
Abriu
a porta de seu quarto, seu recanto de tranquilidade, seu escudo contra o mundo
veloz do lado externo daquelas paredes. Foi na penumbra, ainda quando os vultos
e silhuetas são os seres mais vivos possíveis, que vislumbrou um volume sobre a
cama, mais negro que a escuridão que dominava o ambiente, temeroso, aproximou-se
lentamente, passo por passo, até chocar seu joelho, levemente, com a barra da
cama, podendo, assim, distinguir o pelo, o bigode, as orelhas pontudas, as
garras, emaranhadas em um misto de pelos, repousadas sobre o peito. O gato
tomara sua cama, não havia dúvidas. Pensou em tirá-lo de lá, empurrá-lo, mas
estava cansado, cansado para disputas fúteis que não levariam a nada. De
repente, o tapete ao lado da cama lhe pareceu uma boa opção, pôs o despertador
para às 5:20, dormiria apenas 2 horas, repousou sobre o tapete e adormeceu
quase que instantaneamente.
Não
sonhou, apenas despertou com o alarde estridente do despertador. Olhou sobre a
cama e não avistou o gato. Tratou de alongar as costas e juntas doloridas pela
noite amparada sobre a crueldade do chão daquele quarto. Cada parte do corpo
fazia questão de lembrá-lo o que havia feito. Tomaria um banho para reavivar as
forças e encarar um longo dia de trabalho, foi até a porta e tentou abri-la,
nada aconteceu. A porta não abria, entrou em desespero, tentou por quase 10
minutos, em vão, destravar a porta, foi à janela e a mesma coisa repetiu-se,
estava preso, o gato o havia prendido. Pensou em solicitar socorro, arrombar a
porta, arrombar a janela, contudo, estranhamente, a voz não lhe ajudava e as
forças o abandonaram. O celular não respondia aos comandos, era refém em sua
própria residência. Após horas de incômodo, desespero e luta, deixou-se cair na
cama e apagou. Um sono calmo e tranquilo, novamente sem sonho, sem paisagens,
apenas um desligar-se, um não estar.
A
primeira coisa que sentiu, quando acordou, foi a coleira, o importunava,
deixava-o ansioso, tentou levantar, mas não conseguiu, a corrente não permitia.
Foi apenas então que notou, estava na dispensa da casa, diante de um pote com
comida e outro com água, era refém, estava confinado, aquele gato o enganara,
tomara a sua vida, e, agora, ele estava ali, em um ambiente escuro, com um
cheiro horrível, um misto de produtos químicos e gordura, sentia o piso gelado
e, ao mesmo tempo, pegajoso, sentiu ânsia e ojeriza. Não fazia a mínima ideia
do horário que poderia ser, apenas que estava sozinho, abandonado e perdido em
sua própria casa. Ouviu um barulho, algo como uma porta, passos ecoaram, alguém
estava caminhando pela casa. Os ruídos foram se aproximando, um facho de luz
surgiu na fresta embaixo da porta, pôde vislumbrar pés, viu a maçaneta da porta
girar, a luz entrou forte e seus olhos a rejeitaram de início, quando o choque se
atenuou, conseguiu visualizar, com toda clareza, o animal, em pé, diante dele,
usando o seu uniforme. Trajava o uniforme da sua empresa, carregando a sua
pasta de trabalho. Imediatamente pensou: “ladrão! É minha vida, minha vida! ”.
E, antes que o gato, enquanto agachava-se, pudesse alcançar o pote de água com
um dos braços, o homem, como um animal raivoso, atacou aquele braço e berrou:
- Me tira daqui!!.
O
som que emitiu o chocou e emudeceu a si próprio, não era uma voz humana, não
era nenhuma língua conhecida ou desconhecida. Na verdade, soltou um alto e
estridente miado. Horrorizado, assistiu o braço do gato recuar, mas não era o
braço peludo dos outros dias, era um braço humano, sangrando pelo ataque repentino.
Olhou para si, e suas mãos possuíam garras manchadas com o sangue de seu
rompante desesperado, seus braços ganhavam pelos espessos e escuros. Sem acreditar,
olhou para cima, o gato já possuía olhos e bocas humanos, o nariz começava a
alongar-se e avolumar-se, as orelhas diminuíam e deslocavam-se para as laterais
do crânio, os pés calçavam confortáveis calçados, calçados que o homem comprara
no último verão. Olhou novamente para cima, e a constatação que chegou o fez
recuar contra a parede úmida e gelada, os olhos, nariz, boca, orelhas que
surgiam no gato eram mais do que humanos, eram mais do que familiares, eram
seus. E foi com a voz que era sua, que o gato, fechando a porta falou:
- É assim? Então vai ficar sem comida.
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