terça-feira, 18 de agosto de 2015

Incompreendido



            Falou Shakespeare que “Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”. Renato adorava dizer isso. Em todas as conversas ou discussões que travava, sempre encontrava um jeito de encaixar a citação, uma espécie de titulação de intelectualidade. Ruth caíra nessa estratégia na festa de aniversário de Flavinha há anos, em uma cobertura no centro da cidade. Bebera demais e, mesmo estando combinada com Rogério, acabou cedendo aos encantos intelectuais de Renato. Um ano depois, estavam casando, mas a sensação de ter cometido um engano se reforçou com o beijo fortuito em Rogério na saída do banheiro da festa.
            Com o tempo, os beijos foram evoluindo, Rogério evoluiu para Denílson, Adroaldo, Marcinho, entre outros. Não conseguia controlar os impulsos, eram mais fortes que ela. Porém, que não a acusem os moralistas de não ser uma boa esposa, tratava Renato com devoção comovente para os que presenciavam a rotina do casal. Estava sempre disposta e atenciosa, nunca lhe negligenciava os afetos de uma esposa amorosa. A família fechava os olhos para as inúmeras viagens de negócio e ausências não justificadas, diziam que não podiam negar a Renato a felicidade, pois, na verdade, ele exalava felicidade por todos os poros do seu corpo. O amor o fazia ver um mundo por meio de um caleidoscópio. Foi com apreensão que a família ouviu a notícia:
- Ruth está grávida. Teremos um filho!
            A mãe desmaiou, o pai teve um ataque de tosse, a irmã uma crise de risos, na mente de todos, havia um só pensamento: como saber se o herdeiro a caminho fosse mesmo fruto concebido junto a Renato. Com dúvidas ou não, a gestação transcorreu de forma tranquila como qualquer outra, e envolveu desejos noturnos, massagens providenciais nos pés e nas costas, reuniões com as amigas para discutirem assuntos inerentes a mulheres grávidas, tudo organizado e prontamente realizado por Renato. A todos, além do desejo natural de ver a criança, havia o desejo de saber como aparentaria aquele ser que estrearia nesse mundo.
            Foi em uma manhã de terça-feira que Renato, de forma apressada e beirando o desespero, anunciou aos familiares que estava indo a caminho do hospital. Dois entraram, três saíram. Lá estava, Renato uma linda menina, um retrato da fragilidade e, ao mesmo tempo, milagre da vida humana. Todos, sem exceção, empoleiravam-se na esperança de vislumbrar aquele pequenino rosto. “Ai, deixa eu ver essa coisa fofa!”, “Então esse é o herdeiro?”, as mais típicas frases pronunciadas por pessoas próximas ao se depararem com novos integrantes de uma casa. Entretanto, toda a ingênua curiosidade em relação à maternidade servia como disfarce para a dúvida da traição, a esperança de visualizar nos olhos, no sorriso, no formato do rosto ou no esparso cabelo algum vestígio que denunciasse algum ato ilícito por parte da esposa no tocante ao matrimônio. E todos, sem exceção, após conseguirem pôr os olhos na criança, encontravam uma menina linda, saudável, que, não raramente, arrancava sentenças como “são os olhos do Renato”, “ Viu a boca? Igualzinho a do Renato quando pequeno”, “ela sorriu quando estava mexendo em sua barriguinha, igualzinho ao sorriso do Renato”. Parecia óbvio, a filha era mesmo do casal, dessa feita, Ruth era inocente.
            Os meses foram passando, e a filha cada vez mais se parecia com Renato, e todos da família aprenderam a amar e venerar aquela criança. Tê-la em casa era motivo para júbilo, tal era a alegria que trazia junto de si a menina. Ruth, ficava mais em casa, esperava o marido com um sorriso e uma devoção exemplar. Foi no décimo terceiro mês após a gestão que ela informou o marido em tom formal enquanto admirava seu reflexo no espelho:
- Preciso de uma academia.
- Precisa nada, meu amor. Está linda assim. E mais, sabe o quanto gosto de sustância.
- Para, Renato. Estou falando sério, estou com no mínimo uns 10 quilos acima do peso. Preciso de um milagre.
            Renato achava linda a mulher, achava linda como ela estava, mas, como sempre fazia, no dia seguinte a matriculou em uma academia nova que abrira no centro da cidade, dessas academias que só entram quatro alunos por vez, todos acompanhados individualmente por um personal trainee que dedicava todos os seus conhecimentos para propiciar aos frequentadores a magia do corpo simétrico e sem saliências indesejadas socialmente. Não poupava esforços, financeiros e pessoais, para agradar e mimar a esposa. Afinal, ela merecia, era uma mãe exemplar além de uma mulher que, mesmo com uma criança para cuidar, manteve suas atenções sempre focadas ao marido.
            Um ano passara e Ruth estava mais bela do que nunca. Na verdade, era comum as pessoas duvidarem que tivera um filho há dois antes, os exercícios diários e a alimentação balanceada começara a fazer efeito. Tudo estava tranquilo até o dia em que Renato voltou mais cedo de uma viagem de negócios para casa, como havia ficado de levar a mãe para lhe auxiliar a cultivar algumas coisas novas na horta, uma de suas paixões, passou na casa dela para aproveitar a folga surpresa para resolver aquela questão.
            Foi ao estacionar o carro que algo indicou que havia um erro naquela paisagem normalmente monótona. O carro negro, estacionado em frente a garagem da casa, proporcionava a cena um odor de problemas, Renato questionou se a mãe não gostaria de tomar um café com o objetivo de tirar a mulher de lá, mas ela relutou, seja por um instinto de mãe que deseja fazer seu filho acordar, seja para poder saciar a sede por assistir aquela meretriz (e sempre pedia perdão a Deus quando pensava isso) fosse pega no ato. Por fim, entraram os dois, um com coração ansioso pelo que poderia ver, o outro com a tristeza como companheira ao prever, sem precisar de auxílios místicos, o que veria na parte interna da casa. Abriram a porta.
            Os que se fizeram presentes aos alarmes emitidos pelos primeiros gritos da mãe afirmaram presenciar um homem escapando o mais rápido possível da cena de um crime; uma mulher acuada como um animal selvagem pego em uma arapuca esperando o golpe de misericórdia; uma mulher cuspindo cólera à adúltera; e um homem sentado na cama, prostrado, olhos perdidos e buscando o inalcançável, não demonstrava emoção alguma, na verdade, parecia não estar ali, presente, compartilhando o mesmo espaço com os demais atores da tragédia. E foi assim que ficou até a expulsão da Dalila, da meretriz, que cuspiu na santidade do matrimônio.
            Antes de sair, mal postas as roupas sobre o corpo pecaminoso, Ruth olhou nos olhos de Renato, profundamente, como mandam as canções melosas das rádios AM’s durante as tardes, e disse:
- Eu nem sei o seu nome, não sei nada, ele não era nada para mim, você, só você sempre, você sabe, meu amor, você...
            E antes que pudesse continuar, com o que a mãe de Renato classificou de ser cara de pau em sua essência, foi interrompida pela senhora por um tapa repentino que a derrubou na calçada em frente ao portão que refletia de forma fantástica a luz, ainda plena, do Sol no alto da tarde. A queda foi assistida com total dedicação pelos presentes, que já somavam uma considerada, interativa e entusiasmada plateia, fazendo com que uma espécie de som de espanto coletivo irradiasse pela rua. Ajudaram a levantar a moça, que não chorava, apenas olhava fixamente para Renato, como se argumentasse com os olhos, discussão que ele visivelmente perdeu ao baixar os olhos em sinal de submissão.  
            E foi acompanhada do silêncio daqueles que estavam no palco, das balbúrdias dos espectadores e da tristeza, que a dignidade abandonou a Renato. Foi acompanhando o pôr do Sol que ele sentiu a vergonha escorrer por todo o seu corpo. No fim daquele dia, na solidão do quarto da casa, compreendeu o inevitável: o quarto nunca seria dele, já fora dela, não importava se há algumas horas um outro homem estivesse ali e todos tivessem visto, o quarto continuava dela, o cheiro, as risadas, era tudo dela, nada dele.
            A família passou a se preocupar, Renato era a corporificação da tristeza, não vivia, apenas sobrevivia. Ninguém entendia, ainda mais após os escândalos anteriores vieram à tona, pois, com o desenlace da relação, todos acharam por direito relatar os inúmeros casos de adultério cometidos por Ruth. Entendia-se, dessa forma, que assistiriam a um período de uma espécie de luto sem velório, algo natural, afinal, um homem traído era um homem traído, entretanto, por esse mesmo motivo, acreditava-se que, assim que se recuperasse do luto, partiria para a desforra porque possuía uma condição financeira favorável, uma aparência que, segundo muitas mulheres, lembravam um galã de novela das oito. Contudo, contrariando a todas as expectativas, não só abriu mão da desforra como não se recuperou do luto. Manteve-se fiel, enlutado, um viúvo de uma não morta. Trabalhava normalmente, ia ao supermercado, ao jogo de futebol, mas nunca era visto com uma mulher, reservara seu corpo como um templo, onde se venerava a apenas uma religião: o culto Ruth.  
            Se o comportamento de Renato trazia inquietação, o comportamento de Ruth não se distinguia muito dessa anormalidade. Simplesmente, não havia mais notícias de transgressões sociais ligadas as práticas amorosas de Ruth. Na verdade, ela poderia, muito bem, adentrar um convento sem que lhe fossem negadas a comunhão e a unção tais eram a sua condição imaculada. Seria a vergonha ou um acesso de consciência? Disso poucos sabiam, o que se tinha conhecimento é que havia ali uma nova Ruth, que alternava entre casa e trabalho sem intervalos.
            Foi em um intervalo forçado, em uma ida ao supermercado, que Ruth foi avistada por Renato. Imediatamente, o coração dele reconheceu nela seu anseio, assim como, apesar do que possam dizer as más línguas, o dela também. Cumprimentaram-se discretamente, a vergonha berrando aos seus ouvidos, mas a semente da reconciliação já estava plantada nos jardins da paixão, e ela foi regada por conversas telefônicas, trocas de e-mails e bate-papos da internet. Antes que familiares e amigos pudessem protestar, Ruth e Renato estavam juntos outra vez, e a felicidade retornava aos seus convívios. Renato voltou a sorrir, a estar presente na vida, desfilava pelas ruas com a mesma altivez e confiança de antes, comprou roupas novas, não parecia ter existido aquela tarde, aquele homem ou aquele adultério. Ruth, por sua vez, para desespero da família de Renato, voltou a ter comportamentos condenáveis. Estendia-se no trabalho, viajava constantemente, desfilava pelas ruas da cidade. Contudo, dentro de casa, transformava a vida do marido em um paraíso na terra. Foi com o coração partido que a mãe foi ter com o filho, não aceitava mais tê-lo como motivo de chacota.
- Meu filho, não sei nem como dizer, mas acho que a Ruth está te enganando.
- Como assim, mãe?
- Enganando, traindo, saindo com outro. Pelo amor de Deus, você sabe!
- Mãe, a Ruth é maravilhosa para mim. Tenho a mulher que sempre sonhei e desejei. Não estrague isso pela segunda vez.
- Não acredito no que estou ouvindo. Não criei filho para ser corno na vida!
- Não criou para o quê? Francamente, mãe. Nunca pensei ouvir isso de você.
            A mulher titubeou, cuspira de forma acidental o que ouvia de todos, de toda a cidade. Largara ali, sem nenhuma preparação, o que estava a sufocando há muito. A culpa, repentinamente, reclamou seu espaço e fez com que se sentisse muito mal com o que havia dito.
- Renato, eu não quis...
- Olha mãe, tudo que posso pedir para mim é a felicidade. E posso lhe garantir, Deus atendeu minhas preces.  
- Mas Renato...você não vê que...- interrompeu seu raciocínio, era feliz seu filho com a realidade que vivia, e mais, era também feliz Ruth com seu Renato.
- Tem café, meu filho?
- Não tem, mãe.
- Vou passar um rapidinho. Ficou sabendo do Vadão?
- Vadão? Não. O que tem ele?
            Talvez fosse pela possibilidade de fugir de um problema ou de um sermão mais profundo da mãe, Renato aceitou a mudança repentina de assunto.
- Perdeu o emprego outra vez.
- Esse nunca foi muito de trabalhar mesmo.
- Com açúcar?
- Não, não. Sem açúcar.
- Faço pra três?
- Não, só para dois. A Ruth está em viagem, está viajando muito ultimamente. Coitada, muito atarefada.
- É...coitada. – apertou com força a colher contra xícara como se fosse possível perfurá-la com o objeto. Um estopim estourara em sua cabeça: o filho era corno, mas era feliz; a nora o traía compulsivamente, mas só fazia isso com seu filho, no fim, era fiel em sua pouca vergonha. Afrouxou a colher, liberou a tensão.
- Pouca vergonha, tudo isso.
- O que mãe?
- O Vadão.
- Ah...
- Pensou que estivesse falando do quê?
- Nada, deixa pra lá.
- É...deixa pra lá.
- Mas o que a mãe acha disso?
- Do quê?
- Ora, do Vadão. Estamos falando de quem?
- Do Vadão, é claro.
            A tarde seguiu leve e proveitosa. Assim como a vida.

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