Falou
Shakespeare que “Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar
nossa vã filosofia”. Renato adorava dizer isso. Em todas as conversas ou
discussões que travava, sempre encontrava um jeito de encaixar a citação, uma
espécie de titulação de intelectualidade. Ruth caíra nessa estratégia na festa
de aniversário de Flavinha há anos, em uma cobertura no centro da cidade.
Bebera demais e, mesmo estando combinada com Rogério, acabou cedendo aos
encantos intelectuais de Renato. Um ano depois, estavam casando, mas a sensação
de ter cometido um engano se reforçou com o beijo fortuito em Rogério na saída
do banheiro da festa.
Com
o tempo, os beijos foram evoluindo, Rogério evoluiu para Denílson, Adroaldo,
Marcinho, entre outros. Não conseguia controlar os impulsos, eram mais fortes
que ela. Porém, que não a acusem os moralistas de não ser uma boa esposa,
tratava Renato com devoção comovente para os que presenciavam a rotina do
casal. Estava sempre disposta e atenciosa, nunca lhe negligenciava os afetos de
uma esposa amorosa. A família fechava os olhos para as inúmeras viagens de
negócio e ausências não justificadas, diziam que não podiam negar a Renato a
felicidade, pois, na verdade, ele exalava felicidade por todos os poros do seu
corpo. O amor o fazia ver um mundo por meio de um caleidoscópio. Foi com
apreensão que a família ouviu a notícia:
- Ruth está grávida. Teremos um filho!
A
mãe desmaiou, o pai teve um ataque de tosse, a irmã uma crise de risos, na mente
de todos, havia um só pensamento: como saber se o herdeiro a caminho fosse
mesmo fruto concebido junto a Renato. Com dúvidas ou não, a gestação
transcorreu de forma tranquila como qualquer outra, e envolveu desejos
noturnos, massagens providenciais nos pés e nas costas, reuniões com as amigas
para discutirem assuntos inerentes a mulheres grávidas, tudo organizado e prontamente
realizado por Renato. A todos, além do desejo natural de ver a criança, havia o
desejo de saber como aparentaria aquele ser que estrearia nesse mundo.
Foi
em uma manhã de terça-feira que Renato, de forma apressada e beirando o
desespero, anunciou aos familiares que estava indo a caminho do hospital. Dois
entraram, três saíram. Lá estava, Renato uma linda menina, um retrato da
fragilidade e, ao mesmo tempo, milagre da vida humana. Todos, sem exceção,
empoleiravam-se na esperança de vislumbrar aquele pequenino rosto. “Ai, deixa
eu ver essa coisa fofa!”, “Então esse é o herdeiro?”, as mais típicas frases
pronunciadas por pessoas próximas ao se depararem com novos integrantes de uma
casa. Entretanto, toda a ingênua curiosidade em relação à maternidade servia
como disfarce para a dúvida da traição, a esperança de visualizar nos olhos, no
sorriso, no formato do rosto ou no esparso cabelo algum vestígio que
denunciasse algum ato ilícito por parte da esposa no tocante ao matrimônio. E
todos, sem exceção, após conseguirem pôr os olhos na criança, encontravam uma
menina linda, saudável, que, não raramente, arrancava sentenças como “são os
olhos do Renato”, “ Viu a boca? Igualzinho a do Renato quando pequeno”, “ela
sorriu quando estava mexendo em sua barriguinha, igualzinho ao sorriso do
Renato”. Parecia óbvio, a filha era mesmo do casal, dessa feita, Ruth era
inocente.
Os
meses foram passando, e a filha cada vez mais se parecia com Renato, e todos da
família aprenderam a amar e venerar aquela criança. Tê-la em casa era motivo
para júbilo, tal era a alegria que trazia junto de si a menina. Ruth, ficava
mais em casa, esperava o marido com um sorriso e uma devoção exemplar. Foi no
décimo terceiro mês após a gestão que ela informou o marido em tom formal
enquanto admirava seu reflexo no espelho:
- Preciso de uma academia.
- Precisa nada, meu amor. Está linda assim. E
mais, sabe o quanto gosto de sustância.
- Para, Renato. Estou falando sério, estou com
no mínimo uns 10 quilos acima do peso. Preciso de um milagre.
Renato
achava linda a mulher, achava linda como ela estava, mas, como sempre fazia, no
dia seguinte a matriculou em uma academia nova que abrira no centro da cidade,
dessas academias que só entram quatro alunos por vez, todos acompanhados
individualmente por um personal trainee
que dedicava todos os seus conhecimentos para propiciar aos frequentadores a
magia do corpo simétrico e sem saliências indesejadas socialmente. Não poupava
esforços, financeiros e pessoais, para agradar e mimar a esposa. Afinal, ela
merecia, era uma mãe exemplar além de uma mulher que, mesmo com uma criança
para cuidar, manteve suas atenções sempre focadas ao marido.
Um
ano passara e Ruth estava mais bela do que nunca. Na verdade, era comum as
pessoas duvidarem que tivera um filho há dois antes, os exercícios diários e a
alimentação balanceada começara a fazer efeito. Tudo estava tranquilo até o dia
em que Renato voltou mais cedo de uma viagem de negócios para casa, como havia
ficado de levar a mãe para lhe auxiliar a cultivar algumas coisas novas na
horta, uma de suas paixões, passou na casa dela para aproveitar a folga
surpresa para resolver aquela questão.
Foi
ao estacionar o carro que algo indicou que havia um erro naquela paisagem
normalmente monótona. O carro negro, estacionado em frente a garagem da casa, proporcionava
a cena um odor de problemas, Renato questionou se a mãe não gostaria de tomar
um café com o objetivo de tirar a mulher de lá, mas ela relutou, seja por um
instinto de mãe que deseja fazer seu filho acordar, seja para poder saciar a
sede por assistir aquela meretriz (e sempre pedia perdão a Deus quando pensava
isso) fosse pega no ato. Por fim, entraram os dois, um com coração ansioso pelo
que poderia ver, o outro com a tristeza como companheira ao prever, sem
precisar de auxílios místicos, o que veria na parte interna da casa. Abriram a
porta.
Os
que se fizeram presentes aos alarmes emitidos pelos primeiros gritos da mãe
afirmaram presenciar um homem escapando o mais rápido possível da cena de um
crime; uma mulher acuada como um animal selvagem pego em uma arapuca esperando
o golpe de misericórdia; uma mulher cuspindo cólera à adúltera; e um homem
sentado na cama, prostrado, olhos perdidos e buscando o inalcançável, não
demonstrava emoção alguma, na verdade, parecia não estar ali, presente,
compartilhando o mesmo espaço com os demais atores da tragédia. E foi assim que
ficou até a expulsão da Dalila, da meretriz, que cuspiu na santidade do
matrimônio.
Antes
de sair, mal postas as roupas sobre o corpo pecaminoso, Ruth olhou nos olhos de
Renato, profundamente, como mandam as canções melosas das rádios AM’s durante
as tardes, e disse:
- Eu nem sei o seu nome, não sei nada, ele não
era nada para mim, você, só você sempre, você sabe, meu amor, você...
E
antes que pudesse continuar, com o que a mãe de Renato classificou de ser cara
de pau em sua essência, foi interrompida pela senhora por um tapa repentino que
a derrubou na calçada em frente ao portão que refletia de forma fantástica a
luz, ainda plena, do Sol no alto da tarde. A queda foi assistida com total
dedicação pelos presentes, que já somavam uma considerada, interativa e
entusiasmada plateia, fazendo com que uma espécie de som de espanto coletivo
irradiasse pela rua. Ajudaram a levantar a moça, que não chorava, apenas olhava
fixamente para Renato, como se argumentasse com os olhos, discussão que ele
visivelmente perdeu ao baixar os olhos em sinal de submissão.
E
foi acompanhada do silêncio daqueles que estavam no palco, das balbúrdias dos
espectadores e da tristeza, que a dignidade abandonou a Renato. Foi
acompanhando o pôr do Sol que ele sentiu a vergonha escorrer por todo o seu
corpo. No fim daquele dia, na solidão do quarto da casa, compreendeu o
inevitável: o quarto nunca seria dele, já fora dela, não importava se há
algumas horas um outro homem estivesse ali e todos tivessem visto, o quarto
continuava dela, o cheiro, as risadas, era tudo dela, nada dele.
A
família passou a se preocupar, Renato era a corporificação da tristeza, não
vivia, apenas sobrevivia. Ninguém entendia, ainda mais após os escândalos anteriores
vieram à tona, pois, com o desenlace da relação, todos acharam por direito
relatar os inúmeros casos de adultério cometidos por Ruth. Entendia-se, dessa
forma, que assistiriam a um período de uma espécie de luto sem velório, algo
natural, afinal, um homem traído era um homem traído, entretanto, por esse
mesmo motivo, acreditava-se que, assim que se recuperasse do luto, partiria
para a desforra porque possuía uma condição financeira favorável, uma aparência
que, segundo muitas mulheres, lembravam um galã de novela das oito. Contudo,
contrariando a todas as expectativas, não só abriu mão da desforra como não se recuperou
do luto. Manteve-se fiel, enlutado, um viúvo de uma não morta. Trabalhava
normalmente, ia ao supermercado, ao jogo de futebol, mas nunca era visto com
uma mulher, reservara seu corpo como um templo, onde se venerava a apenas uma
religião: o culto Ruth.
Se
o comportamento de Renato trazia inquietação, o comportamento de Ruth não se
distinguia muito dessa anormalidade. Simplesmente, não havia mais notícias de
transgressões sociais ligadas as práticas amorosas de Ruth. Na verdade, ela
poderia, muito bem, adentrar um convento sem que lhe fossem negadas a comunhão
e a unção tais eram a sua condição imaculada. Seria a vergonha ou um acesso de
consciência? Disso poucos sabiam, o que se tinha conhecimento é que havia ali
uma nova Ruth, que alternava entre casa e trabalho sem intervalos.
Foi
em um intervalo forçado, em uma ida ao supermercado, que Ruth foi avistada por
Renato. Imediatamente, o coração dele reconheceu nela seu anseio, assim como,
apesar do que possam dizer as más línguas, o dela também. Cumprimentaram-se
discretamente, a vergonha berrando aos seus ouvidos, mas a semente da
reconciliação já estava plantada nos jardins da paixão, e ela foi regada por
conversas telefônicas, trocas de e-mails e bate-papos da internet. Antes que
familiares e amigos pudessem protestar, Ruth e Renato estavam juntos outra vez,
e a felicidade retornava aos seus convívios. Renato voltou a sorrir, a estar
presente na vida, desfilava pelas ruas com a mesma altivez e confiança de
antes, comprou roupas novas, não parecia ter existido aquela tarde, aquele
homem ou aquele adultério. Ruth, por sua vez, para desespero da família de
Renato, voltou a ter comportamentos condenáveis. Estendia-se no trabalho,
viajava constantemente, desfilava pelas ruas da cidade. Contudo, dentro de
casa, transformava a vida do marido em um paraíso na terra. Foi com o coração partido
que a mãe foi ter com o filho, não aceitava mais tê-lo como motivo de chacota.
- Meu filho, não sei nem como dizer, mas acho
que a Ruth está te enganando.
- Como assim, mãe?
- Enganando, traindo, saindo com outro. Pelo
amor de Deus, você sabe!
- Mãe, a Ruth é maravilhosa para mim. Tenho a
mulher que sempre sonhei e desejei. Não estrague isso pela segunda vez.
- Não acredito no que estou ouvindo. Não criei
filho para ser corno na vida!
- Não criou para o quê? Francamente, mãe. Nunca
pensei ouvir isso de você.
A
mulher titubeou, cuspira de forma acidental o que ouvia de todos, de toda a
cidade. Largara ali, sem nenhuma preparação, o que estava a sufocando há muito.
A culpa, repentinamente, reclamou seu espaço e fez com que se sentisse muito
mal com o que havia dito.
- Renato, eu não quis...
- Olha mãe, tudo que posso pedir para mim é a
felicidade. E posso lhe garantir, Deus atendeu minhas preces.
- Mas Renato...você não vê que...- interrompeu
seu raciocínio, era feliz seu filho com a realidade que vivia, e mais, era
também feliz Ruth com seu Renato.
- Tem café, meu filho?
- Não tem, mãe.
- Vou passar um rapidinho. Ficou sabendo do
Vadão?
- Vadão? Não. O que tem ele?
Talvez
fosse pela possibilidade de fugir de um problema ou de um sermão mais profundo
da mãe, Renato aceitou a mudança repentina de assunto.
- Perdeu o emprego outra vez.
- Esse nunca foi muito de trabalhar mesmo.
- Com açúcar?
- Não, não. Sem açúcar.
- Faço pra três?
- Não, só para dois. A Ruth está em viagem,
está viajando muito ultimamente. Coitada, muito atarefada.
- É...coitada. – apertou com força a colher
contra xícara como se fosse possível perfurá-la com o objeto. Um estopim
estourara em sua cabeça: o filho era corno, mas era feliz; a nora o traía
compulsivamente, mas só fazia isso com seu filho, no fim, era fiel em sua pouca
vergonha. Afrouxou a colher, liberou a tensão.
- Pouca vergonha, tudo isso.
- O que mãe?
- O Vadão.
- Ah...
- Pensou que estivesse falando do quê?
- Nada, deixa pra lá.
- É...deixa pra lá.
- Mas o que a mãe acha disso?
- Do quê?
- Ora, do Vadão. Estamos falando de quem?
- Do Vadão, é claro.
A
tarde seguiu leve e proveitosa. Assim como a vida.
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