Era apenas uma pacata cidade do
interior. Não imaculada e manchada por estradas negras ou prédios que riscassem
o céu de forma acintosa, mantinha intacta a antiga arquitetura, sem a influência
das revoluções. Janelas nas ruas ao alcance de mãos que nunca as tocavam sem o
consentimento de seus donos. Defronte à igreja, bancos ostentavam longos
debates sob o Sol matutino. Aos domingos, a praça ao lado da igreja ganhava um
colorido todo especial das conversas, rodas de chimarrão e brincadeiras que ali
ocorriam. Entretanto, o melhor lugar da cidade, para alguns, estava em frente à
estação de ônibus: o velho bar de Seu Tomé.
Seu Tomé não era doutor em nenhuma
universidade, dizem as lendas que abandonou no colegial, a família afirmava que
foi no ginásio, mas, na verdade, aprendera a ler e escrever e só, apenas isso,
nunca comentava isso com ninguém, não possuía nem ao menos a terceira série.
Entretanto, conseguiu, aos poucos, consolidar-se primeiro nos negócios e depois
na sociedade. Conseguiu casamento com Dona Rita, que dizem as más línguas,
antes não era Dona e se chamava Ritinha. Ninguém nunca questionou tal fato com
Seu Tomé. Era feliz ao seu modo, e deixava feliz uma parcela da população. Em
sua maioria, os homens que ali apareciam, manhã após manhã, foram a juventude
de outrora. Deslocavam-se com dificuldades até as mesas onde jogavam conversa
fora e jogavam os mais variados jogos, sempre com muita cortesia.
Foi em uma manhã que chegou aquele
alemão. Olhar bondoso, emanando ternura, daqueles sujeitos que, quando se
coloca os olhos, já se cria o desejo de compartilhar momentos sentados à mesa.
E de fato, era cortês e agradável aquele senhor que já pedia o quarto copo de “pinga”.
Conversava sobre sua infância sofrida na Alemanha, da pobreza que chegara a
presenciar, e, principalmente, da viagem para o novo mundo, para a terra
desconhecida, para uma vida nova. Contou que escolhera uma cidade próxima para
prosperar, iniciou trabalhando com arrendamentos, trabalhou duro no campo,
inúmeras safras até ganhar o direito de um pedaço de terra que pudesse chamar
de seu. Nesse meio tempo, casou-se com uma moça, neta de alemães que haviam
cruzado o atlântico no final do século XIX. Relatava a sua vida expondo-a como
um livro. Casaram com a benção do Senhor e prosperaram juntos, pelo menos no
campo financeiro e profissional, pois nunca conseguiram ter filhos. Nesse
momento, ele travou, engoliu de um só gole o restante em seu copo, ninguém
ousou solicitar mais detalhes, há coisas que não deveriam ser detalhadas, dores
que deveriam ser resumidas, esquecidas, insignificantes tanto quanto um copo de
trago. Relatou que estava na pousada de Seu Schaller; todos os proprietários,
além do imóvel, possuíam o Seu antes do nome; resolvera conhecer a região após
a morte da esposa. Mencionou ter 65 anos, carregava um forte sotaque alemão,
não tão incomum para aquela região, afinal, grande parte dos moradores possuíam
em suas raízes a origem germânica.
Apesar de tudo, em diversos
momentos, aquele senhor simples deixava escapar, por sob a carapaça de
simplicidade, um ar aristocrata, um deslumbre de soberba, de alguém que, em um
mundo distante, havia sido importante, ocupado lugar de destaque. Com o passar
dos copos, contou de suas façanhas em Munique, as bebedeiras em Berlim e a
saída da Alemanha destruída pela guerra. Apesar de muitos “alemães” ali presentes
serem netos do velho Império Alemão e apenas terem ouvido falar da Alemanha do
passado recente, poucos ousavam indagar sobre os anos de guerra. E assim os
assuntos revezavam entre passagens cômicas do novo integrante do bar de Seu
Tomé a alguns “pitacos” sobre o futuro das seleções brasileira e alemã
ocidental na copa que ocorreria no ano seguinte na Inglaterra. Foi uma tarde
agradável para todos os presentes, e o velho alemão, cambaleante, saiu pela
porta do bar sendo saudado por todos, menos por um, por mim.
Já contava, naquela época, meus 78
anos. Apesar disso, havia, em meu velho corpo, disposição e muita vitalidade.
Exatamente o oposto de quando cheguei da Alemanha 33 anos antes. Fora um
professor de uma conceituada escola em Frankfurt, lecionava Literatura, possuía
uma vida estabilizada, esposa, dois filhos e uma boa casa. Foi com tristeza que
presenciei o crescimento do ódio e da intolerância. Quando as primeiras
orientações educacionais chegaram às escolas, tive certeza do que estava por
acontecer, adverti meus amigos para que advertissem seus amigos judeus. A Alemanha
começava a ferver. Na época em que os primeiros “impuros” foram retirados de
suas casas sob os mais esdrúxulos preceitos, encontrei-me em uma encruzilhada.
O cerco fechava-se sobre as minorias e só existiam dois caminhos a se tomar:
conviver com a situação ou partir do país. Foi sentado em minha sala,
assistindo as crianças brincarem, que cheguei à conclusão de que não poderia
lutar, havia muito a perder. Organizamo-nos, minha família e dois colegas da
escola para partirmos, abandonando tudo que havíamos construído por anos.
Foi no meio do percurso que uma patrulha
nos abordou. Solicitaram nossos documentos, indagaram nossa procedência,
informamos sermos professores. Meu colega era judeu, estava há um ano desempregado
devido à impossibilidade de um judeu poder lecionar, sua esposa, também
professora, equilibrava as contas da casa e passara o último ano fazendo-o
abandonar seus ideais e deixar o país. Nada demais teríamos ali, não fosse a
proibição da relação entre arianos e judeus. Um tenente, com olhar arrogante e
presunçoso, referiu-se a minha colega em tom pejorativo, afinal, ela era uma
vergonha para a raça. Aquilo foi como um tapa na cara de meu colega, não suportou,
o soco acertou em cheio e fez com que o oficial despencasse no chão. Eu sabia,
ali, que qualquer diplomacia estava perdida. Ainda hoje escuto os golpes de
rifles ecoando nas costas daquele pobre professor e marido injuriado, escuto os
gritos da esposa assistindo a surra que o homem levava. Lembro do tenente
dirigindo-se lentamente em direção a aglomeração, solicitando que a pancadaria
cessasse; olhando para meus filhos e minha esposa, passando a mão sobre a
cabeça de minha filha e perguntando se eu a amava, se sentia orgulho de tê-la e
que tipos de filhos eu gostaria de criar: amantes de judeus ou alemães
orgulhosos de suas origens? E eu menti, não podia deixar meus filhos, não podia
abandonar minha família, menti a mais grave das mentiras. Abandonei um amigo de
longa data, o neguei uma só vez, mas continuei o negando por todas as noites da
minha vida. Vi os soldados levando os dois para um interrogatório que nunca
terminou, uma averiguação sem descoberta.
No fim daquela noite, estava com minha
família em um caminhão com algumas poucas peças de roupa e dois livros a
caminho da França. Cruzamos o Atlântico 4 anos depois. Nunca mais ouvi falar
daqueles caros amigos. Segui minha vida do jeito que pude, assombrado pela
mentira que minha boca havia proferido, marcado pela lembrança dos colegas que
para sempre conviveram em meus pensamentos. E, assim, paguei a pior das
sentenças, aquela em que o carcereiro não é estranho e não carece de chave,
aquela em que as grades que o prendem são suas. Sem chance de escapatória ou
redução de pena. Nem mesmo direito a um alento.
Entretanto, a vida surpreende, o
confiante tenente estava novamente na minha frente. Não era mais jovem, mas
quem ainda era? Levantei da cadeira, saí lentamente do bar, saboreando o ar que
há anos não arfava, ele estava ali, de posse de minhas mentiras, exibindo-as,
alimentando-as. Precisava libertá-las, dizer que preferia filhos que
valorizassem o melhor amigo que já tive e um dos melhores professores que
conheci, filhos que não medissem um ser humano por qualquer motivo que não o
seu caráter e índole. Ele cambaleava a frente, apertei a faca que carregava.
-
Meus filhos! – gritei o mais alto que pude em alemão.
Ele virou-se. Talvez pensando o que
seria aquilo, do que afinal eu estava falando.
-
Eles aprenderam a não ter ódio! – berrei enquanto agia. Ele não esboçou reação,
nem um sentimento, nem uma emoção. Quem sabe culpa da bebida, do sol em seu
rosto, da ausência de memórias suficientes para evocar minha feição ou, quem
sabe, da culpa que carregava consigo. Ficou ali parado, esperando.
“Os rifles abandonaram meus
companheiros, dirigiram-se a mim. O primeiro golpe foi na cabeça, acompanhados
de inúmeros golpes que iniciaram uma sinfonia em meu corpo. Uma sinfonia de dor
e de intolerância. Entretanto, não sentia medo, receio, dor ou desespero;
apenas, alegria”.
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