quinta-feira, 16 de julho de 2015

A última sinfonia



            Era apenas uma pacata cidade do interior. Não imaculada e manchada por estradas negras ou prédios que riscassem o céu de forma acintosa, mantinha intacta a antiga arquitetura, sem a influência das revoluções. Janelas nas ruas ao alcance de mãos que nunca as tocavam sem o consentimento de seus donos. Defronte à igreja, bancos ostentavam longos debates sob o Sol matutino. Aos domingos, a praça ao lado da igreja ganhava um colorido todo especial das conversas, rodas de chimarrão e brincadeiras que ali ocorriam. Entretanto, o melhor lugar da cidade, para alguns, estava em frente à estação de ônibus: o velho bar de Seu Tomé.
            Seu Tomé não era doutor em nenhuma universidade, dizem as lendas que abandonou no colegial, a família afirmava que foi no ginásio, mas, na verdade, aprendera a ler e escrever e só, apenas isso, nunca comentava isso com ninguém, não possuía nem ao menos a terceira série. Entretanto, conseguiu, aos poucos, consolidar-se primeiro nos negócios e depois na sociedade. Conseguiu casamento com Dona Rita, que dizem as más línguas, antes não era Dona e se chamava Ritinha. Ninguém nunca questionou tal fato com Seu Tomé. Era feliz ao seu modo, e deixava feliz uma parcela da população. Em sua maioria, os homens que ali apareciam, manhã após manhã, foram a juventude de outrora. Deslocavam-se com dificuldades até as mesas onde jogavam conversa fora e jogavam os mais variados jogos, sempre com muita cortesia.
            Foi em uma manhã que chegou aquele alemão. Olhar bondoso, emanando ternura, daqueles sujeitos que, quando se coloca os olhos, já se cria o desejo de compartilhar momentos sentados à mesa. E de fato, era cortês e agradável aquele senhor que já pedia o quarto copo de “pinga”. Conversava sobre sua infância sofrida na Alemanha, da pobreza que chegara a presenciar, e, principalmente, da viagem para o novo mundo, para a terra desconhecida, para uma vida nova. Contou que escolhera uma cidade próxima para prosperar, iniciou trabalhando com arrendamentos, trabalhou duro no campo, inúmeras safras até ganhar o direito de um pedaço de terra que pudesse chamar de seu. Nesse meio tempo, casou-se com uma moça, neta de alemães que haviam cruzado o atlântico no final do século XIX. Relatava a sua vida expondo-a como um livro. Casaram com a benção do Senhor e prosperaram juntos, pelo menos no campo financeiro e profissional, pois nunca conseguiram ter filhos. Nesse momento, ele travou, engoliu de um só gole o restante em seu copo, ninguém ousou solicitar mais detalhes, há coisas que não deveriam ser detalhadas, dores que deveriam ser resumidas, esquecidas, insignificantes tanto quanto um copo de trago. Relatou que estava na pousada de Seu Schaller; todos os proprietários, além do imóvel, possuíam o Seu antes do nome; resolvera conhecer a região após a morte da esposa. Mencionou ter 65 anos, carregava um forte sotaque alemão, não tão incomum para aquela região, afinal, grande parte dos moradores possuíam em suas raízes a origem germânica.
            Apesar de tudo, em diversos momentos, aquele senhor simples deixava escapar, por sob a carapaça de simplicidade, um ar aristocrata, um deslumbre de soberba, de alguém que, em um mundo distante, havia sido importante, ocupado lugar de destaque. Com o passar dos copos, contou de suas façanhas em Munique, as bebedeiras em Berlim e a saída da Alemanha destruída pela guerra. Apesar de muitos “alemães” ali presentes serem netos do velho Império Alemão e apenas terem ouvido falar da Alemanha do passado recente, poucos ousavam indagar sobre os anos de guerra. E assim os assuntos revezavam entre passagens cômicas do novo integrante do bar de Seu Tomé a alguns “pitacos” sobre o futuro das seleções brasileira e alemã ocidental na copa que ocorreria no ano seguinte na Inglaterra. Foi uma tarde agradável para todos os presentes, e o velho alemão, cambaleante, saiu pela porta do bar sendo saudado por todos, menos por um, por mim.
            Já contava, naquela época, meus 78 anos. Apesar disso, havia, em meu velho corpo, disposição e muita vitalidade. Exatamente o oposto de quando cheguei da Alemanha 33 anos antes. Fora um professor de uma conceituada escola em Frankfurt, lecionava Literatura, possuía uma vida estabilizada, esposa, dois filhos e uma boa casa. Foi com tristeza que presenciei o crescimento do ódio e da intolerância. Quando as primeiras orientações educacionais chegaram às escolas, tive certeza do que estava por acontecer, adverti meus amigos para que advertissem seus amigos judeus. A Alemanha começava a ferver. Na época em que os primeiros “impuros” foram retirados de suas casas sob os mais esdrúxulos preceitos, encontrei-me em uma encruzilhada. O cerco fechava-se sobre as minorias e só existiam dois caminhos a se tomar: conviver com a situação ou partir do país. Foi sentado em minha sala, assistindo as crianças brincarem, que cheguei à conclusão de que não poderia lutar, havia muito a perder. Organizamo-nos, minha família e dois colegas da escola para partirmos, abandonando tudo que havíamos construído por anos.
Foi no meio do percurso que uma patrulha nos abordou. Solicitaram nossos documentos, indagaram nossa procedência, informamos sermos professores. Meu colega era judeu, estava há um ano desempregado devido à impossibilidade de um judeu poder lecionar, sua esposa, também professora, equilibrava as contas da casa e passara o último ano fazendo-o abandonar seus ideais e deixar o país. Nada demais teríamos ali, não fosse a proibição da relação entre arianos e judeus. Um tenente, com olhar arrogante e presunçoso, referiu-se a minha colega em tom pejorativo, afinal, ela era uma vergonha para a raça. Aquilo foi como um tapa na cara de meu colega, não suportou, o soco acertou em cheio e fez com que o oficial despencasse no chão. Eu sabia, ali, que qualquer diplomacia estava perdida. Ainda hoje escuto os golpes de rifles ecoando nas costas daquele pobre professor e marido injuriado, escuto os gritos da esposa assistindo a surra que o homem levava. Lembro do tenente dirigindo-se lentamente em direção a aglomeração, solicitando que a pancadaria cessasse; olhando para meus filhos e minha esposa, passando a mão sobre a cabeça de minha filha e perguntando se eu a amava, se sentia orgulho de tê-la e que tipos de filhos eu gostaria de criar: amantes de judeus ou alemães orgulhosos de suas origens? E eu menti, não podia deixar meus filhos, não podia abandonar minha família, menti a mais grave das mentiras. Abandonei um amigo de longa data, o neguei uma só vez, mas continuei o negando por todas as noites da minha vida. Vi os soldados levando os dois para um interrogatório que nunca terminou, uma averiguação sem descoberta.
No fim daquela noite, estava com minha família em um caminhão com algumas poucas peças de roupa e dois livros a caminho da França. Cruzamos o Atlântico 4 anos depois. Nunca mais ouvi falar daqueles caros amigos. Segui minha vida do jeito que pude, assombrado pela mentira que minha boca havia proferido, marcado pela lembrança dos colegas que para sempre conviveram em meus pensamentos. E, assim, paguei a pior das sentenças, aquela em que o carcereiro não é estranho e não carece de chave, aquela em que as grades que o prendem são suas. Sem chance de escapatória ou redução de pena. Nem mesmo direito a um alento.
            Entretanto, a vida surpreende, o confiante tenente estava novamente na minha frente. Não era mais jovem, mas quem ainda era? Levantei da cadeira, saí lentamente do bar, saboreando o ar que há anos não arfava, ele estava ali, de posse de minhas mentiras, exibindo-as, alimentando-as. Precisava libertá-las, dizer que preferia filhos que valorizassem o melhor amigo que já tive e um dos melhores professores que conheci, filhos que não medissem um ser humano por qualquer motivo que não o seu caráter e índole. Ele cambaleava a frente, apertei a faca que carregava.
- Meus filhos! – gritei o mais alto que pude em alemão.
            Ele virou-se. Talvez pensando o que seria aquilo, do que afinal eu estava falando.
- Eles aprenderam a não ter ódio! – berrei enquanto agia. Ele não esboçou reação, nem um sentimento, nem uma emoção. Quem sabe culpa da bebida, do sol em seu rosto, da ausência de memórias suficientes para evocar minha feição ou, quem sabe, da culpa que carregava consigo. Ficou ali parado, esperando.
            “Os rifles abandonaram meus companheiros, dirigiram-se a mim. O primeiro golpe foi na cabeça, acompanhados de inúmeros golpes que iniciaram uma sinfonia em meu corpo. Uma sinfonia de dor e de intolerância. Entretanto, não sentia medo, receio, dor ou desespero; apenas, alegria”.

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