Aquele
sorriso. Por que ele tem que sorrir daquele jeito? Hipnotiza a cada gesto, na
maneira como segura o copo, gesticula com o amigo ao lado, dança debilmente sem
ritmo algum no mesmo lugar e, até mesmo, como desloca-se para ir ao banheiro.
Tudo nele está em seu lugar. Não é lindo, mas também não é feio, é o que precisa
ser para me afetar. Aqueles, irritantemente, lindos olhos castanhos,
repentinamente, encontram os meus e sorriem, sim, os olhos sorriem. Sorrisos de
olhos são os melhores, autênticos e não passíveis de fraudes. Os olhos não
mentem, não se adequam a convenções e nem a imposições. Uma menina em um
vestido justo passa em sua frente e suga toda a atenção daqueles olhos, que cedem
a investida e direcionam seu feixe de sedução para cada parte daquele corpo
moldado por horas e horas de academia e privações alimentares.
Sinto
raiva. Despejo o copo que tenho na mão em minha boca, seu conteúdo desce
gritando pela minha garganta, uma queimação alastra-se das profundezas até
próximo de minha boca. Uma tontura fugaz e uma sensação de coragem e poder
irrompem. Sinto-me livre e giro ao ritmo da música no mesmo lugar. Olhos
acompanham os meus movimentos, azuis, cobiçosos, perdidos e curiosos como os
meus. Ignoro-os de forma proposital. Eles não desistem, perseguem meus movimentos.
Meu copo está cheio novamente, bebo, não há mais gritos nem queimação, apenas
tontura e euforia. Os olhos ganham mãos, que ganham braços, que ganham cheiro,
corpo, boca e palavras. Vou beijá-lo. Ele se apresenta, faz o que se espera e
eu igualmente, convenções. Ele poderia me beijar naquele exato instante, sem
apresentações, sem formalizações, não iremos casar. Ele é bonito, tem corpo atlético
e chama muito a atenção de umas meninas que tentam, em vão, não mirá-lo a cada
dez segundos enquanto dançam admirando seus próprios corpos, em uma espécie de
transe libertador.
Já
é a terceira música de danças e conversas ao pé do ouvido, conversas que irão
durar na memória o tempo suficiente para pedir outra dose. Ele percebe e me
rouba um beijo, saboroso, com gosto de menta do chiclete que mascava
freneticamente. O beijo é longo, como se dois náufragos encontrassem um bote
seguro para agarrarem-se após dias à deriva. A festa não está perdida. Iniciamos
uma rotina de danças, copos, beijos, copos, beijos, danças, beijos, beijos e
danças, copos, beijos. A rotina muda para copos, copos, copos, beijos, copos,
copos. Ele pergunta se está tudo bem, eu minto que sim. Afinal, o que posso
dizer? Contar que dois olhos castanhos me perseguem? Que eles estão de forma demoníaca
próximos? Que meus olhos teimam em procurá-los? Não, a mentira é melhor. Ele a
aceita, as pessoas costumam aceitar a mentira como a uma velha amiga que as conforta
e compreende. A mentira move a todos de forma suave, a verdade não, é dolorosa,
cruel e insensível. Finalizo a mentira com um sorriso que apenas olhos treinados
visualizam inverdade. Ele não olha meus olhos como deveria, como os olhos
castanhos fariam, e, assim, compra a ilusão.
Meus
pés começam a doer, preciso da vodka. O corpo rejeita, informa que não
compactuará mais com meus excessos, as dores da semana de trabalho surgem como
estrelas no início da noite, pontilhando cada parte do meu corpo.
Viro para depositar o
copo na mesa próxima, sou interrompida por um oi. Os dois olhos castanhos estão
ali, parados diante de mim. Por que me afetam tanto? Retribuo a saudação. Os
olhos azuis envolvem meu ombro, reagindo a possibilidade de um invasor. Puro
instinto, vestígio da irracionalidade, uma prova da origem animal de todos os
seres humanos. Imagino-me saltando daqueles braços, saltando em direção aqueles
olhos castanhos que atormentam meu sono, que habitam os meus sonhos. Não, não
posso, evoluímos, construímos cidades, criamos a medicina, as artes,
controlamos o mundo. Permaneço onde estou, respeitando a evolução e a
racionalidade. Ele pergunta quem é, digo que é um amigo. Mais uma vez ele
acredita, tento acompanhá-lo e acreditar também.
Olho para ele, é como se
uma capa cinza tivesse sido acrescentada sobre a antes perfeita feição. Os
olhos castanhos fazem isso, possuem o poder de desfazer qualquer mágica que
possa lhes ameaçar. São ditadores, dominam o reino que antes me pertencia.
Os olhos azuis oferecem carona, sei que não
é exatamente isso que eles querem, não me importo com isso, mas não consigo,
simplesmente não posso. A magia se foi. Até aceito sair com o pretexto de uma
carona, sabendo que não irei para casa, que talvez ele não me ligue amanhã,
contudo não aceito nada sem o mínimo de magia, e os azuis a perderam por conta
da ação dos castanhos.
Minto
que marquei com uma amiga, finjo interesse em seu telefone, ele me passa, apago
o número dentro do táxi. Mentiras e mais mentiras, convenço-me que são
verdades. Sinto os efeitos da bebida, o motorista parece estar em uma
competição daqueles off roads que
aparecem na televisão saltando em estradas de chão a alta velocidade. O carro
chacoalha intermitentemente, tenho a impressão que meus órgãos trocam de lugar
a cada curva realizada. Minha amiga pergunta se está tudo bem, minto pela décima
vez e digo que está sim, ela acredita. Despeço-me dela, digo que ligarei mais
tarde, eles aguardam eu entrar em casa, assim conseguem assistir a luta que
travo primeiramente com o portão e logo após com a porta de casa.
Entro. Caminho até o
banheiro, a ânsia emerge com um vulcão, minto para mim mesma que isso fará com
que a tontura passe. O vômito é demorado e incessante, sinto a garganta arder,
a tontura, mas não sinto coragem nem euforia, apenas frio, muito frio.
Arrasto-me para a cama, meus travesseiros, amanhã, estarão com os vestígios da
noite em forma de cores e brilho. Por um instante penso que deveria ter ido com
aqueles olhos azuis, mas logo vejo que não consigo lembrar deles, foram passageiros.
Uma vez mais minto e digo em voz alta que foi uma noite agradável.
Fecho os olhos, a
consciência vai me abandonando, tudo vai ficando silencioso, e lá no fundo,
lentamente, eles surgem, castanhos, alegres e hipnotizantes. O sonho chega mais
rápido que o normal. Minto que não lembrarei.
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