quarta-feira, 1 de julho de 2015

Final



- Fim?
- O que foi?
- O livro.
- O que tem ele?
- Não tem fim?
- Claro que tem.
- Onde?
- No final do livro, meu amor.
- Mas eu estou no final.
- E?
- Não tem nada, a história parou do nada.
- Daqui esse livro, deixa eu ver...está aqui, “acordou religiosamente às 6 para mais um dia, de mais um ano. Era a vida retomando seu lugar.”
- Então, cadê o final?
- Está aqui, esse é o final.
- Não! Eu não fiquei até agora lendo para isso.
- Haha, o que você estava esperando?
- Uma morte, um crime, um porquê, qualquer coisa.
- Mas amor, é exatamente por esse motivo que isso é literatura, uma obra de arte. Não é feita para responder, mas sim para criar problemas, fazer com que o leitor saia do lugar comum, sem respostas prontas.
- E eu lá tô interessado nisso? Eu não pedi um livro bom? Isso aqui não é livro. Quanto tempo perdido.
- O que você faria no lugar?
- Eu?
- É, você está aí, reclamando, contestando. O que faria melhor?
- Sei lá. Terminaria o livro. Faria ele abandonar o serviço; ora, se não está gostando, troca. Simples assim.
- Não é você que vive reclamando da sua função?
- Não, não, não. Adoro o que eu faço, apenas reclamo da falta de reconhecimento que recebo. Se fizesse o que faço em qualquer outro lugar seria rei, você sabe disso.
- Então por que não sai de lá?
- Está me comparando com o livro?
- Não, apenas lhe questionando. Por que não sai de lá?
- Estabilidade, salário bom perto do que pagam por aí.
- Hum...
- Hum, o quê?
- Nada.
- Fez a boca.
- Que boca?
- Boca me desdenhando.
- Fiz nada.
- Fez sim. Tá pensando: ele está falando do livro, mas faz igual.
- Não disse nada, meu querido.
- Não disse, mas quis dizer. Pois fique sabendo, não aceitaria viver dessa maneira. Se estivesse infeliz com o emprego, casamento e família, mudava tudo e...o que foi agora?
- Nada.
- Você não faria o mesmo?
- Não sei, não tenho tanta certeza quanto você.
- Você é feliz no seu emprego, não é?
- Sim, faço o que gosto.
- Ok, e se não gostasse?
- Nunca faria algo que não gostasse.
- Supondo.
- Não posso supor algo que não faria.
- Você também não facilita.
- Facilitar o quê, homem?
- A conversa.
- Acho que você gostou do livro e não sabe.
- Gostar? Fiquei três semanas lendo um livro que acaba sem acabar. Como vou gostar? Gosto de coisas práticas, verdade sobre verdade. Você conseguiria ficar comigo caso não fosse feliz? Que cara foi essa?
- Lá vem você de novo.
- Que cara foi essa, pode falar. Você não é feliz comigo?
- Estou cansada, amor. Tenho que trabalhar amanhã. Boa noite, te amo!
- Não vai responder?
- Boa noite! Amanhã, juro que compro outro livro para você, com final bonitinho e tudo.
            A mulher dormiu sob protestos do marido, como sempre, às 23:30 para mais uma noite, de mais um ano. Era a noite retomando seu lugar. 

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