quarta-feira, 24 de junho de 2015

O homem atemporal



- Cinema quarta...
- Oi!
- Oi!
- O que você está fazendo aqui?
- Nos conhecemos?
- Sou eu, está lembrado?
- Sinceramente?
- Sim.
- Não lembro, apenas vi você passar e...olha, nunca vi ninguém tão linda quanto você. Tive que conhecê-la.
- Olha, eu estou acompanhada. Você está sozinho?
- Claro!
- Ai, meu Deus!
- Algum problema, querida?
- Olha quem está aqui.
- Olá, o que você está fazendo aqui?
- Ah, você que é o acompanhante dela?
- Carlos, escute, melhor se acalmar...
- Me acalmar? Como você sabe meu nome?
- Carlos, calma, somos amigos. Eu e ele, queremos ajudá-lo.
- Por que está com esse sujeito engomadinho? Você merece alguém como eu. Garanto que posso fazê-la feliz.
- Ele não sabe onde está.
- Ligamos para alguém?
- Espera, Carlos, vamos sentar ali naquele banco.
- Eu não entendo...
- Calma, vamos ali. Vem comigo.
- Somos seus amigos. Conhecemos você há anos.
- Conhecem de onde?
- Somos amigos da família. Onde está seu filho?
- Meu filho? Eu não sei. Não lembro.
- Paaaiii! Paaaii!
- Olha ali, seu filho.
- Pai, onde você se meteu?
- Como você perdeu seu pai, Roberto?
- Ele foi no banheiro mã...quer dizer, moça. Estava bem, achei que não faria mal.
- Está bem, cuide dele então, conversamos à noite. -  afirmou a mulher enquanto se afastava.
- Sem problemas...Pai, você não pode sair tão longe. Já disse para tomar cuidado.
- Desculpa, filho. É que vi aquela moça, como ela é linda, olhe, a maneira de caminhar, os gestos, o olhar, o sorriso. Você sentiu o cheiro? Cheiro de mistério, cheiro do que vem pela frente, do que está prometido e esperado, cheiro de paraíso. Que mulher!
- Pai, você não lembra dela?
- Ah, meu filho, não esqueceria uma mulher como aquela. Mulher como essa, se já tivesse conhecido, estaria casado. É mulher para duas vidas, pois uma é curta demais para desfrutá-la. Mulher para mimar, chamar de sua e agradecer aos mestres do Universo por tê-la em seus braços.
- Pai...
- O que foi? Nunca sentiu nada assim antes?
- Na verdade, não.
- Que lástima, meu filho; Que lástima!
            Não pode mais encarar o pai, os olhos queimavam, teimavam em iniciar o processo de liberação de líquidos que ele diria ser fruto da irritação causada por essa poluição desenfreada. Nunca ouvira do pai palavras dessa natureza, o mais amável que ouvira foi certa vez que conseguiu a façanha de acertar uma bolinha de gude na lataria do Ford Galaxie impecável que ele mantinha na garagem. Lembra como hoje do revirar do estômago, da simulação mental da surra que levaria e do reconfortante afago daquelas mãos enormes sobre sua cabeça informando que não precisava chorar, mas que deveria tomar cuidado da próxima vez. Era esse pai que agora estava diante dele, e por um instante, pode entrar em um túnel do tempo, falar com seu pai não esquecido, sem a maldita doença devoradora de memórias. Seu pai que não havia se entregado a bebida depois que perdeu o emprego, que não havia perdido aquela mulher, que mesmo após anos, ainda fascinava aquela mente.
A única coisa que a maldita doença, diagnosticada em um dia que o pai levou a xícara e o café solúvel para dentro do banheiro diante de todos atônitos, fez de positivo foi devorar o homem amargurado com seu destino, com tudo que não foi. Ali, estava um homem que olhava a vida como um campo de colheita, repleto de possibilidades e oportunidades a serem exploradas. Por vezes, sentia desejo de dizer ao pai que o campo era de mentira, que aquelas frutas secaram e as árvores murcharam, mas desistia, assim como não diria agora que a mulher que o pai se apaixonara era sua mãe, e que ele a perdeu há anos. Olhou nos olhos do pai, faiscavam.
- Desculpe, meu filho. Quando o coração bate forte...não há o que fazer. Um dia ela há de ser minha. Você a conhece, certo? Fale-me um pouco dela.
            Que se dane os remédios, que se dane o tratamento, queria curtir seu pai, que segundo o médico, sabotava os diagnósticos a cada dia que ficava vivo.
- Conto tudo, mas, apenas, se tomar um choop comigo.
- Então vamos!
            Um estava em 1999, o outro em algum lugar entre o tempo e o espaço que a ciência desconhece e os homens não podem alcançar sem abrir mão da sanidade. Conversaram por horas, não como pai e filho, mas, sim, como dois grandes amigos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário