Há aquele sujeito pacato,
cumpridor das tarefas diárias que sempre manteve sua vida incólume, cuidando
dos mínimos detalhes. Trabalhava todos os dias, sempre no mesmo horário,
fazendo o mesmo trajeto de sempre. Com os olhos treinados à loucura incessante
do trânsito das grandes cidades, andava blindado dentro de seu veículo, bem
longe de qualquer intervenção possível que pudesse prejudicá-lo. Isso até o dia
em que uma vaca cruzou seu caminho. Isso mesmo, uma vaca, não fosse sua
considerável cautela, o destino poderia ser outro. Freou a tempo. Incrédulo,
olhou em volta e se deu conta que havia uma fazenda naquele local, fazenda essa
que nunca havia se dado conta da existência. Ou seja, a rotina poderia tê-lo
matado, não a rotina visível, mas aquela invisível, que venda os olhos diante
das cores que nos cercam. E então, vez por outra, surge uma vaca no caminho e
nos faz parar o carro de forma brusca, obrigando-nos a olhar ao redor, a
enxergar o que não víamos.
Desde
1981, tínhamos, ao nosso lado, a Jornada Nacional de Literatura. Profissionais
da área e pessoas simpatizantes à literatura sempre amaram e prestigiaram o
evento. Em contrapartida, para a grande maioria das pessoas, o evento passava
despercebido, como uma vaca na beira de uma estrada que se costuma passar todos
os dias. Com os olhos enferrujados pelas ações das marcas de rotina causadas
pela ação do tempo, o assunto dificilmente saía de algumas poucas chamadas nos
jornais durante a realização do evento e algo em torno de 5 minutos da
programação televisa.
Entretanto,
assim como o pacato cidadão que passou a ver as vacas no entorno da estrada
após uma surgir em sua frente, muitos descobriram que havia uma jornada, que
era de Passo Fundo, que trazia escritores renomados, que movimentava 58 mil
pessoas e que necessitava de recursos financeiros para ocorrer, apenas nos
últimos dias. A questão é que “essas vacas” estão próximas de nós, todos os
dias. Estão quando o sistema transforma as aulas de Literatura em análises
cronológicas e aspectos textuais isolados, quando a leitura é uma prática pouco
incentivada pelos pais, quando R$ 40,00 reais mensais em livros é considerado
um investimento pesado, enquanto R$ 50,00 em um pacote de televisão é um
investimento vantajoso.
Honestamente,
torço para que a vaca permaneça trancando o “trânsito” e demorem para retirá-la
de lá. Que o estorvo seja grande e embaraçoso, que doa constantemente, de
maneira que os olhos não possam mais acostumar-se com a ausência da mágica
propiciada pela leitura e a nossa literatura.
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