terça-feira, 16 de junho de 2015

Ascendência



- Não tem como, lamento.
- Não? Por quê?
            Ela não respondeu mais. Se conheceram da maneira típica, ela amiga da amiga dele. Vislumbrou-se de imediato, paixão arrebatadora. Começaram a se falar, os assuntos fluíam de maneira assustadora, na verdade, nunca encontrara alguém como ela, da mesma forma, ela também nunca havia encontrada tamanha afinidade com uma pessoa. Falavam-se todos os dias, na verdade, todas as horas, pois, quando não se falavam, encontravam-se em pensamento. As conversas duravam horas e horas, sempre com o lamento da necessidade de despedida. Foi em uma dessas conversas que ele levantou a hipótese que martelava em seu peito há muito tempo: declarou-se. Ela não esperava isso e, na verdade, evitava tal assunto, pois, em seu íntimo, desejava o mesmo, e assim sendo, não queria ter que recusá-lo. Sim, recusá-lo, pois havia um entrave entre os dois.
- Não podemos.
- Por que não? Você vê, não vê? Conversamos como velhos conhecidos, eu sei que você sente isso, não negue.
- Não nego, mas não podemos.
- Por quê?
- Você não vai acreditar, mas garanto que não podemos.
- Eu tenho o direito de saber.
- Quer mesmo?
- Quero.
- Então tá, incompatibilidade.
- Incom o quê?
- Incompatibilidade. Seu signo, não combina com o meu. É perda de tempo, você está no meu inferno astral, entendeu?
- Eu não acredito que você...
- Viu? Eu disse, você não entenderia, melhor pararmos com isso tudo, será melhor para os dois.
            Ele ficou atônito. Sem conseguir achar respostas. Era assim, pacato, mais regrado; ela, o oposto. Porém não aceitou o cruel veredito. Pesquisou sobre o assunto, atualizou-se, realmente, não havia ascendência, planeta ou qualquer outra combinação astrológica que o salvasse, eram opostos exemplares, desses de cartilha dos iniciados nas ciências dos astros. Não havia saída, teria que esquecê-la e conviver com o fato. Tentou, mas não conseguiu. Através de um amigo, conheceu o sistema de publicação das previsões astrológicas do jornal da cidade, conseguiu o contato do responsável e enviou um e-mail relatando toda a situação e solicitando que ele publicasse uma publicação favorável ao encontro dois signos. Abaixo do texto, fez questão de deixar claro que não pouparia esforços financeiros para recompensá-lo.
            Pobre vidente, estava com aluguel dois meses atrasados, culpa de seu eterno espírito boêmio e sua falta de tato para investimentos. Diante de tal realidade, teve facilmente seu pobre coração tocado com o pedido desesperado do amante. Esquentou um bule de café, sentou em frente ao computador e fez com que os astros enlouquecessem, planetas cruzassem órbitas alheias, estrelas trocassem de constelações, ascendências fossem criadas e...pronto, no dia seguinte lá estava, o signo dele era o mais indicado para o dela, a felicidade consistia em os dois ficarem juntos.
            O amante nem precisou procurá-la, ela o fez. Alguns relatam que o desejo era tanto que o encontro entre eles foi um acontecimento digno de registro. Afinidade maior não existia, eram dois amigos apaixonados. Tiveram filhos, construíram uma vida juntos e, com o tempo, eram invejados por todos, tal era a afinidade de ambos. Os astros, ela repetia, nunca mentem, não é, meu amor? Sempre que ele ouvia isso, em seu coração uma ponta dolorida de arrependimento surgia. Foi durante uma janta, sob efeito do álcool, que ele contou a história, sorrindo ao relatar o que fora capaz de fazer para ficar com a esposa. Todos sorriram e passaram a relatar casos de loucuras de amor, todos, menos ela. A noite terminou, os convidados se foram e ele despejou-se na cama, entorpecido, acolhido pelo sono dos bêbados, sem sonho e sem vida.
            Acordou no outro dia com a cabeça representando uma quadra de escola de samba, a cada inclinação uma dor diferente. Olhou para o lado e não viu nada, na verdade, não escutava nenhum ruído. Estranhando, desceu até a sala esperando ver os filhos entretidos e hipnotizados pelo vídeo game, mas nada disso, a casa estava deserta, sem vida, sem brinquedos atirados, sem roupas penduradas. Olhou para o relógio, eram 3 da tarde, dormira demais, deveriam ter ido na casa dos avós. Foi ao olhar para a mesa no centro da sala que seu coração abandonou o seu lugar e parou juntos aos seus pés, um bilhete, uma carta, conhecia aquela letra, sabia a quem a carta era endereçada. Tentou remediar o inevitável, ligou para sua mãe na esperança de sua família estar lá, mas não estava, ligou para todos os parentes, nada.
            Decidiu criar coragem, abriu o bilhete, leu devagar, como que saboreando cada amargo liberado por aquelas palavras. “Não posso compactuar com uma mentira”, “Como você pode”, “Os astros não mentem, as pessoas sim” foram alguns exemplos encontrados no texto. Em lágrimas, ainda viu um pequeno adendo na última linha que dizia: cuidado com os próximos dias. Abaixo, o horóscopo da semana estava lá. Em seu signo apenas uma mensagem: “Com Marte na casa de Aquário, cuidado no amor, possível desentendimento com a pessoa amada”.
            Os astros não mentem. Nunca mais se recuperou, nunca mais a viu. Aguarda eternamente Plutão cruzar a rota de Vênus novamente.

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