quarta-feira, 10 de junho de 2015

Uma noite de quarta-feira





- Já levo!
            Amparou-se no balcão em sua frente com as mãos espalmadas sobre a superfície, despejava todo o peso sobre os braços cansados do longo dia de trabalho. Era semana de fechamento da folha de pagamento, e tudo que sua cabeça processava eram horas realizadas, horas extras, atestados médicos, afastamentos e números, definitivamente, muitos números. Olhou para a mesa invadida com as inúmeras compras realizadas no mercado e seu ombro acusou a dor crônica que tanto a incomodava. É o stress diziam os mais próximos, você deve relaxar, tire um tempo para você, curta a sua casa, você pensa muito no trabalho. Queria que todas essas pessoas pudessem acompanhar uma semana da sua vida e, apenas após isso, exprimissem posições a respeito.  Pensar muito em trabalho? Não possuía tempo para “esse luxo”, era a alma daquela casa, sem ela, nada ali teria vida. Desempenhava a função de um coração para o lar, fazendo seu “sangue” circular, fazendo aquilo tudo funcionar. Entretanto, o coração estava cansado.
            Foi ao armário e pegou um copo que encheu com água gelada. Caminhou até o marido que a aguardava no sofá e a recebeu com um sorriso e deu-lhe um beijo amoroso na mão.
- Obrigado, meu amor! O que seria de nós sem você?
            Ela vestiu o mais falso dos sorrisos, retribuiu de maneira tímida o carinho e virou-se para ir à cozinha. Será que ele não notava sua insatisfação? Amava o marido, amava seu filho, mas sentia-se frustrada com a sua vida. Demorara três meses para admitir isso para sua psicóloga, e a constatação estava a matando por dentro. Parecia que os problemas, de forma súbita, passaram a tornarem-se evidentes, gritando a todo instante que estavam ali presentes em sua rotina, em sua frente. Sempre se considerou jovem, mas agora evitava o espelho. Sentia-se surrupiada, roubada, passada para trás, despojada de seu tempo, seu precioso tempo. Ignorou as compras na mesa da cozinha e foi para o quarto.
No caminho, viu a porta do quarto do filho fechada, ele crescera e agora queria espaço. Era quarta-feira, a ausência ocupava aquele cômodo, seu ocupante oficial estava na atual namorada. Sentiu orgulho de si mesma, havia criado uma vida, desenvolvido aquele ser frágil que largara em um distante abril sobre a cama do antigo apartamento e que não conseguia fazer nada além de mexer debilmente braços e pernas. Lembrou da alegria de sentir o toque desastrado daquela pequena mão em seu rosto enquanto o sorriso mais lindo do mundo iluminava aquela pequena face, por um instante desejou poder invadir o quarto e abraçá-lo com força, colocá-lo em seu colo e fazê-lo dormir assistindo televisão. Não, isso não era mais possível, o tempo havia lhe retirado esse direito. Contudo, não era tristeza que sentia, era saudade, uma saudade boa, pois conseguira fazer sua missão de mãe, era um homem forte, saudável, um terror para as meninas – sentia uma ponta de ciúmes disso. Você saberá o que fazer, disse sua mãe, realmente, soube. Fez um carinho na porta do filho como se tocasse ele mesmo e seguiu seu caminho para o quarto.
Sentou-se na cama vazia e olhou o retrato na cabeceira, tinha uma linda família, por que se sentia assim? Não tinha esse direito, deveria ser feliz, seu marido estava no sofá e não na rua, seu filho estava na namorada, estudava e não se envolvia com drogas e criminalidade; era errado, levou o pensamento a Deus, será que ele a perdoava de reclamar com tantas coisas boas acontecendo? Suas colegas queixavam-se da solidão de não ter ninguém ao lado, dos filhos que as faziam perder os cabelos, da falta de dinheiro, das mais diversas enfermidades. Nada disso lhe pertencia, mas o vazio estava ali, sentado ao seu lado, a lembrando que havia algo a mais, algo a ser alcançado, algo a ser almejado. O vazio não tinha cor, mas ela o imaginava como uma sombra, uma presença corporal, que lhe sugava a energia, pesava em seus ombros.
Atirou-se na cama, tentou lembrar do primeiro namorado. Era tão juvenil que a simples recordação a fez rir. Começou a namorar cedo seu atual marido, paixão arrebatadora. Ela impetuosa, forte e um tanto inconsequente; ele sensato, amável, compreensivo e parceiro. Parceiro, parceiro, a palavra reverberava em sua cabeça. Foi em busca de velhas fotos na escrivaninha, achou uma sacola repleta delas. Lá estava eles, dois jovens, em um gramado, banhados pelo sol; em outra, estavam posando como dois seres responsáveis com roupas formais no casamento da tia dele; em todas as fotografias a leveza presente no semblante de ambos. Deteve-se em uma foto em particular, era de uma festa de família, nunca havia atentado para a expressão da mãe, comparou com a sua na foto, ainda adolescente, e conseguia ver a carga de compromissos, preocupações e cansaços depositada em cada parte do rosto de sua mãe, que naquela foto deveria estar com uns 40 anos. Olhou para o marido, um rapazote de 19 anos, será que aquele rapazote sentaria no sofá e esperaria a janta chegar até ele? Deixaria sua mulher chegar em casa e a receberia com apenas um beijo?
Levantou-se, sabia o que a incomodava. Viu o vulto ficar sentado junto à escrivaninha, não voltaria para buscá-lo. Foi ao banheiro e apreciou o reflexo no espelho, retirou a maquiagem com esmero, namorando com cada parte de seu rosto, como uma reconciliação consigo mesma, saudando cada centímetro em uma comunhão com o corpo. Realizou o processo inverso com a mesma preocupação. Desenhou os lábios, realçou os olhos, escureceu levemente as bochechas e colocou seus melhores brincos. Há anos não se sentia assim, estava radiante, a vida percorria as veias de seu corpo com velocidade, seu coração batia novamente, estava ali, viva e forte. Odiou a roupa que usava, correu para o quarto, escolheu sem pressa, como se estivesse fazendo compras, como se houvesse despertado de um coma. Tudo ali lhe era novo, a ansiedade quase acabava com ela, queria chegar logo no andar de baixo, ver o marido, falar com ele.  Existia a presença daquele espírito juvenil novamente, fortalecido pelos anos de experiência, sem as angústias e medos, estava segura e plena, novamente plena. Só existia o melhor de si.
Não caminhou pelo corredor, desfilou, como se as paredes olhassem para ela e a admirassem. Podia ver os olhos de aprovação e sorrisos em sua direção. Desceu as escadas com o peito apertando-a, queria correr, mas teve a preocupação de manter a elegância. Chegou lentamente até a porta da sala, assustou o marido que a vislumbrou linda e onipresente.
- Vai sair? – disse enquanto virava o corpo em sua direção apoiando o queixo e os braços no encosto do sofá. Seus olhos faiscaram como os daquele garoto na foto com a menina.
- Ué, não posso me arrumar para ficar com meu marido?
- Hummmmm... – sussurrou o marido ao mesmo tempo que esticava o corpo para poder beijá-la. O beijo foi quente, juvenil, um retorno de 25 anos no tempo. – Assim que terminar o jogo, podíamos subir. O que acha?
            Ela vacilou, a força lhe abandonou o corpo. Respondeu com uma afirmativa, um sim ensaiado por anos, convencedor, daqueles que passam em qualquer investigação, acima de qualquer suspeita. Ele ainda lhe apertou o corpo e a beijou uma vez mais antes de virar para a televisão enquanto a elogiava, o segundo tempo estava começando.    
            Parada, como uma sombra atrás do sofá, decidiu ir à cozinha. As forças, a presença juvenil, a excitação, sendo despidas enquanto caminhava para a cozinha. Estava como havia deixado, precisava arrumá-la para no fim do jogo estar pronta. Ficou ali com as sacolas de compras e o vulto que que recém chegara. Ao longe, escutou o marido comemorando um gol.


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