- Uma cerveja.
- 350 ou 500?
- O quê?
- Senhor, 350 ml ou 500 ml?
- Santo Cristo, eu só quero uma
cerveja, não uma aula de física.
- Desculpa, senhor, mas é que
preciso da informação para saber o que servir. E, ah propósito, se não for lhe
ofender, acho que quem estuda isso é a matemática.
- Que seja! Quero o copo maior.
- 500?
- O maior.
- Então, tá! 500.
O
homem estava prestes a esbravejar, entretanto repeliu o ímpeto no último
instante.
- Noite difícil, amigo?
- Não sabe o quanto.
- Ânimo, homem. É véspera de
Natal.
- Diga isso para a ciência e
aquele maldito do Darwin.
- Quem?
- Darwin! Ah, se eu soubesse o
que ele iria fazer. Menino danado, peguei mais de quatro vezes dissecando os
pobres dos sapos do jardim onde ele morava. Crianças, deixa elas, não sabem o
que fazem. Deu no que deu.
- E esse Darwin, faz o que agora?
- Agora? Nada mais, o que tinha
para fazer já fez. Maldita teoria da evolução.
- Está falando de Charles Darwin?
- O próprio. Conheceu?
- Sim, li alguns livros da teoria
dele. Principalmente na escola.
- Até isso, material publicitário
gratuito. Ô moleque insolente...
- Como senhor?
- Darwin! Refiro-me a Darwin. Os
pais viviam brigando com ele, ficou mais de dois natais sem ganhar presente.
Sujeitinho arrogante.
- O senhor, visivelmente, bebeu
demais.
- Bebi? Descobriu como?
Investigação empírica? Baseado em dados estatísticos?
- Não, eu...
- Ou acha que estou bêbado por
lembrar da infância de Darwin? Quer que eu lembre da sua? Da surra que levou do
brutamontes do Dedé na sexta série?
- Como o senhor...
- Como eu sei? Como sei que você
guardava revistas escondidas debaixo da cama? Como sei de tudo isso?
O
dono do estabelecimento deixou o copo cair. Nunca contara aquilo a ninguém.
- Sei de tudo e de todos!
Ele
tinha barba branca, cabelos desalinhados formando uma espessa cortina branca e
uma presença onipresente graças a seu corpo corpulento. De repente, um estalo
rompeu no homem. Deus! Estava diante de Deus!
- Você é...Deus?
- Deus? Eu tenho cara de Deus?
Misericórdia! É Natal, estamos em um bar a quilômetros de qualquer residência,
você não ouviu barulho de automóvel, eu apareço de barba branca, cabelo branco
e falo tudo que aconteceu na sua infância e você acha que sou Deus? Estou
dizendo...Francamente, Deus?
- Ãã...desculpe, não quis
ofendê-lo. Mas se você não é Deus, eu estou falando com...
- Diga!
- Sei lá, Moisés, Noé, São Pedro,
alguma autoridade bíblica?
- Só pode ser brincadeira, você
está sendo gravado? Eu posso descobrir, hein!!
- Eu? Não, não, eu apenas
trabalho aqui, senhor.
- Nada é o que parece, perdemos a
inocência, desconfiamos de tudo e de todos. Há quanto tempo você trabalha aqui?
- Eu, ãã...acho que 6 anos, sou o
dono.
- Acho? Como assim acho? Quero
dados, informações.
- Olha, eu não sei ao certo, tá
legal? Acho que 5 anos, mas quem é o senhor?
- Não digo, mas sei que escondeu
o patinho à pilha de sua irmã nos fundos do pátio.
O
barman recuou subitamente. Esbarrou na prateleira produzindo uma sinfonia de
copos e vidros batendo. Nunca havia contado isso para ninguém, nem mesmo para o
psiquiatra que o tratara pelo trauma de ficar 2 anos sem receber presentes de
Natal...Não podia ser, não podia. Pensou que havia berrado, mas, na verdade,
balbuciou. O homem sem entender questionou:
- O que você falou?
Criou
forças para dizer:
- Papai...
- O quê?
- Você...é Papai Noel?
- Costumava ser.
- Está de brincadeira!
- Estou? Você sabe o que é as
pessoas desacreditarem de você? Você deixar de existir. Ver umas teorias de
umas crianças que corriam em direção da árvore de natal uns anos antes com suas
pantufas coloridas destruir . Vê mais uma cerveja.
- 300 ou...
- 500!
- Posso falar uma coisa para o
senhor?
- Adianta dizer que não? Estou em
um bar deserto, na noite de véspera de Natal, você acha que estou em condições de
recusar algo?
- Você foi responsável por eu
ficar como eu estou.
- Ficar como? Um garçom?
- Não, fiz três anos de sessões
psiquiátricas para superar o fato de ser rejeitado em pleno Natal.
- Ah, isso. Você não se
comportava.
- Eu era uma criança.
- Uma criança endemoniada.
- Mas uma criança! Você acha
justo uma criança pagar por isso?
- Justiça? Sabe há quantos anos
que eu não estou sóbrio? Sabe? 45 anos, isso mesmo, 45 anos!!
Não
havia dúvidas, era ele.
- O que aconteceu com você?
- Darwin, Conte, Marx, tudo
passou a ser teoria. Com o tempo, o que vale é aquilo que pode ser comprovado.
Logo, eu deixei de ser.
- Mais uma cerveja?
- Claro!
- Por quê?
- Por que o quê?
- Por que deixar uma criança sem
presente?
- Olha só, regras do jogo. Regras
são regras. Todos sabiam, para ganhar presente, era preciso se comportar.
- Preferia não acreditar.
- Como?
- Isso mesmo, preferia não
acreditar, crer que meus pais haviam negligenciado suas obrigações como pais é
mais humano do que saber que foi preterido por aquele que não exclui a ninguém.
Como um pária, ou pior, um renegado de sua própria espécie. Sabe o que foram
aqueles dois anos para mim? Aguardar ansiosamente o sono chegar para acordar e
ver o presente e nada, absolutamente, nada! Você não sabe...
Parou.
Falava apenas para o restante do bar vazio. Ali, sobre o balcão, esparramava-se
como uma montanha um emaranhado de cabelo e barbas. Foi despertá-lo, mas o
braço deteve-se. Não foi a compaixão ou
medo que o deteve, não, foi o mais selvagem dos sentimentos, aquele que
desperta o mais frio dos corações, a pura e simples Vingança. Chegara de súbito
e já dominava todas as forças daquele ser, foi Ela que agarrou a garrafa de
whisky do balcão e direcionou o golpe diretamente na junção entre o pescoço e a
cabeça, entre outras palavras, a nuca. O estalo foi mais alto do que imaginava,
o fundo da garrafa, apesar de reforçado, sofreu uma pequena rachadura que, em
instantes, evoluiu para um dano irreparável ao vidro deixando fluir o líquido
de cor flamejante que, em contato com o vermelho encorpado oriundo do
ferimento, tornavam as, antes, brancas madeixas uma miscelânea de cores. Largou
de súbito a garrafa, como se pudesse, por meio desse ato, desvincular-se do
crime. Estava sozinho novamente, a Vingança, fortuita, deixou-o apenas com o
Remorso de mãos dadas com a Culpa. Precisava livrar-se do corpo, era pesado,
por cinco vezes foi ao chão junto com o corpo. Ao fim de intermináveis minutos,
que não saberia precisar, chegou até os fundos. Lá, em uma hora cavou uma vala
de boa profundidade onde enterrou o corpo. Era véspera de Natal, portanto, não se
preocupou em abandonar o posto de trabalho, não havia ninguém.
Sujo,
encharcado de suor, terminou de limpar os resquícios do recente crime. Ao
terminar a limpeza, olhou o esqueleto da garrafa no lixo: que prejuízo teria, era
um 18 anos. A vingança custara-lhe cara. O desânimo estava lhe abatendo quando
escutou relinchos e fortes pisadas na frente do bar. E tudo mudou, ele não havia
chegado ao bar de carro.
A
carne comercializada no bar ficou famosa, artigo raro, o quilograma caríssimo, caravanas
vinham de longe para poderem desfrutar daquele sabor. Nunca divulgou a
procedência da carne e poucos perguntaram. O estoque no freezer durou o
bastante para deixá-lo rico. O momento mais tenso foram os dias seguintes e o
forte cheiro que originava do enterro pagão. “Gambás, sempre morrem por aí” respondia
aos que questionavam.
O
melhor de tudo, porém, não foi em bens materiais, afinal, pobre do homem que
baseia sua felicidade em objetos e criações compostas pelas falhas humanas. Sua
felicidade era mais plena, sua recompensa era perene, curara o trauma de Natal.
Agora, reunia a família em festas que iniciavam no dia 23 e terminavam apenas
no dia 02.
Como
o Natal era mágico.
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