terça-feira, 28 de abril de 2015

Um conto de Natal



- Uma cerveja.
- 350 ou 500?
- O quê?
- Senhor, 350 ml ou 500 ml?
- Santo Cristo, eu só quero uma cerveja, não uma aula de física.
- Desculpa, senhor, mas é que preciso da informação para saber o que servir. E, ah propósito, se não for lhe ofender, acho que quem estuda isso é a matemática.
- Que seja! Quero o copo maior.
- 500?
- O maior.
- Então, tá! 500.
                O homem estava prestes a esbravejar, entretanto repeliu o ímpeto no último instante.
- Noite difícil, amigo?
- Não sabe o quanto.
- Ânimo, homem. É véspera de Natal.
- Diga isso para a ciência e aquele maldito do Darwin.
- Quem?
- Darwin! Ah, se eu soubesse o que ele iria fazer. Menino danado, peguei mais de quatro vezes dissecando os pobres dos sapos do jardim onde ele morava. Crianças, deixa elas, não sabem o que fazem. Deu no que deu.
- E esse Darwin, faz o que agora?
- Agora? Nada mais, o que tinha para fazer já fez. Maldita teoria da evolução.
- Está falando de Charles Darwin?
- O próprio. Conheceu?
- Sim, li alguns livros da teoria dele. Principalmente na escola.
- Até isso, material publicitário gratuito. Ô moleque insolente...
- Como senhor?
- Darwin! Refiro-me a Darwin. Os pais viviam brigando com ele, ficou mais de dois natais sem ganhar presente. Sujeitinho arrogante.
- O senhor, visivelmente, bebeu demais.
- Bebi? Descobriu como? Investigação empírica? Baseado em dados estatísticos?
- Não, eu...
- Ou acha que estou bêbado por lembrar da infância de Darwin? Quer que eu lembre da sua? Da surra que levou do brutamontes do Dedé na sexta série?
- Como o senhor...
- Como eu sei? Como sei que você guardava revistas escondidas debaixo da cama? Como sei de tudo isso?
                O dono do estabelecimento deixou o copo cair. Nunca contara aquilo a ninguém.
- Sei de tudo e de todos!
                Ele tinha barba branca, cabelos desalinhados formando uma espessa cortina branca e uma presença onipresente graças a seu corpo corpulento. De repente, um estalo rompeu no homem. Deus! Estava diante de Deus!
- Você é...Deus?
- Deus? Eu tenho cara de Deus? Misericórdia! É Natal, estamos em um bar a quilômetros de qualquer residência, você não ouviu barulho de automóvel, eu apareço de barba branca, cabelo branco e falo tudo que aconteceu na sua infância e você acha que sou Deus? Estou dizendo...Francamente, Deus?
- Ãã...desculpe, não quis ofendê-lo. Mas se você não é Deus, eu estou falando com...
- Diga!
- Sei lá, Moisés, Noé, São Pedro, alguma autoridade bíblica?
- Só pode ser brincadeira, você está sendo gravado? Eu posso descobrir, hein!!
- Eu? Não, não, eu apenas trabalho aqui, senhor.
- Nada é o que parece, perdemos a inocência, desconfiamos de tudo e de todos. Há quanto tempo você trabalha aqui?
- Eu, ãã...acho que 6 anos, sou o dono.
- Acho? Como assim acho? Quero dados, informações.
- Olha, eu não sei ao certo, tá legal? Acho que 5 anos, mas quem é o senhor?
- Não digo, mas sei que escondeu o patinho à pilha de sua irmã nos fundos do pátio.
                O barman recuou subitamente. Esbarrou na prateleira produzindo uma sinfonia de copos e vidros batendo. Nunca havia contado isso para ninguém, nem mesmo para o psiquiatra que o tratara pelo trauma de ficar 2 anos sem receber presentes de Natal...Não podia ser, não podia. Pensou que havia berrado, mas, na verdade, balbuciou. O homem sem entender questionou:
- O que você falou?
                Criou forças para dizer:
- Papai...
- O quê?
- Você...é Papai Noel?
- Costumava ser.
- Está de brincadeira!
- Estou? Você sabe o que é as pessoas desacreditarem de você? Você deixar de existir. Ver umas teorias de umas crianças que corriam em direção da árvore de natal uns anos antes com suas pantufas coloridas destruir . Vê mais uma cerveja.
- 300 ou...
- 500!
- Posso falar uma coisa para o senhor?
- Adianta dizer que não? Estou em um bar deserto, na noite de véspera de Natal, você acha que estou em condições de recusar algo?
- Você foi responsável por eu ficar como eu estou.
- Ficar como? Um garçom?
- Não, fiz três anos de sessões psiquiátricas para superar o fato de ser rejeitado em pleno Natal.
- Ah, isso. Você não se comportava.
- Eu era uma criança.
- Uma criança endemoniada.
- Mas uma criança! Você acha justo uma criança pagar por isso?
- Justiça? Sabe há quantos anos que eu não estou sóbrio? Sabe? 45 anos, isso mesmo, 45 anos!!
                Não havia dúvidas, era ele.
- O que aconteceu com você?
- Darwin, Conte, Marx, tudo passou a ser teoria. Com o tempo, o que vale é aquilo que pode ser comprovado. Logo, eu deixei de ser.
- Mais uma cerveja?
- Claro!
- Por quê?
- Por que o quê?
- Por que deixar uma criança sem presente?
- Olha só, regras do jogo. Regras são regras. Todos sabiam, para ganhar presente, era preciso se comportar.
- Preferia não acreditar.
- Como?
- Isso mesmo, preferia não acreditar, crer que meus pais haviam negligenciado suas obrigações como pais é mais humano do que saber que foi preterido por aquele que não exclui a ninguém. Como um pária, ou pior, um renegado de sua própria espécie. Sabe o que foram aqueles dois anos para mim? Aguardar ansiosamente o sono chegar para acordar e ver o presente e nada, absolutamente, nada! Você não sabe...
                Parou. Falava apenas para o restante do bar vazio. Ali, sobre o balcão, esparramava-se como uma montanha um emaranhado de cabelo e barbas. Foi despertá-lo, mas o braço deteve-se.  Não foi a compaixão ou medo que o deteve, não, foi o mais selvagem dos sentimentos, aquele que desperta o mais frio dos corações, a pura e simples Vingança. Chegara de súbito e já dominava todas as forças daquele ser, foi Ela que agarrou a garrafa de whisky do balcão e direcionou o golpe diretamente na junção entre o pescoço e a cabeça, entre outras palavras, a nuca. O estalo foi mais alto do que imaginava, o fundo da garrafa, apesar de reforçado, sofreu uma pequena rachadura que, em instantes, evoluiu para um dano irreparável ao vidro deixando fluir o líquido de cor flamejante que, em contato com o vermelho encorpado oriundo do ferimento, tornavam as, antes, brancas madeixas uma miscelânea de cores. Largou de súbito a garrafa, como se pudesse, por meio desse ato, desvincular-se do crime. Estava sozinho novamente, a Vingança, fortuita, deixou-o apenas com o Remorso de mãos dadas com a Culpa. Precisava livrar-se do corpo, era pesado, por cinco vezes foi ao chão junto com o corpo. Ao fim de intermináveis minutos, que não saberia precisar, chegou até os fundos. Lá, em uma hora cavou uma vala de boa profundidade onde enterrou o corpo. Era véspera de Natal, portanto, não se preocupou em abandonar o posto de trabalho, não havia ninguém.
                Sujo, encharcado de suor, terminou de limpar os resquícios do recente crime. Ao terminar a limpeza, olhou o esqueleto da garrafa no lixo: que prejuízo teria, era um 18 anos. A vingança custara-lhe cara. O desânimo estava lhe abatendo quando escutou relinchos e fortes pisadas na frente do bar. E tudo mudou, ele não havia chegado ao bar de carro.
                A carne comercializada no bar ficou famosa, artigo raro, o quilograma caríssimo, caravanas vinham de longe para poderem desfrutar daquele sabor. Nunca divulgou a procedência da carne e poucos perguntaram. O estoque no freezer durou o bastante para deixá-lo rico. O momento mais tenso foram os dias seguintes e o forte cheiro que originava do enterro pagão. “Gambás, sempre morrem por aí” respondia aos que questionavam.
                O melhor de tudo, porém, não foi em bens materiais, afinal, pobre do homem que baseia sua felicidade em objetos e criações compostas pelas falhas humanas. Sua felicidade era mais plena, sua recompensa era perene, curara o trauma de Natal. Agora, reunia a família em festas que iniciavam no dia 23 e terminavam apenas no dia 02.
                Como o Natal era mágico.

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