De Nandinha muito lembro e nada lembro. Com ela tudo era
assim, era um ter e não ter, um estar sem estar. Conheci-a quando era criança.
Éramos vizinhos na rua 15. Passávamos os dias entre brincadeiras e
traquinagens. A primeira vez que falei com ela foi para pedir desculpas, a
pedido de minha mãe, por ter lhe acertado a cabeça com uma pedra. Pedrinha
pequena, quase um risco, mas o suficiente para que ela acordasse todos os
cachorros da região com seu choro ensurdecedor. Com a cabeça baixa pedi
desculpas, enquanto que ela no colo da mãe me olhava fixamente. Por uma
daquelas imposições de pais cautelosos, fomos obrigados a brincarmos juntos,
como uma espécie de demonstração dos fins das supostas hostilidades. Daquela
brincadeira, a bem da verdade, pouco lembro, apenas de Nandinha falar que não
olhar nos olhos era feio. Nunca mais deixei de olhar em seus olhos.
Menina intrigante, era ela. Passamos a conversar e brincar
todos os dias, com o tempo, a cumplicidade entre nós chamava a atenção. No
primeiro dia de escola, demos as mãos um para o outro como um pai para uma
filha e uma mãe para um filho. Ficamos na mesma classe durante todas as séries
do primeiro grau. Quando iniciou a fase em que meninos ficam de um lado e
meninas de outro, Nandinha constrangia-me entrando no meio da roda dos meninos
para me convidar para comermos o lanche, sentados no banco no canto do pátio.
Hoje, consigo entender que ali já gostava dela. Seus cabelos, sua boca, seus
olhos. Sempre dava um jeito de ficar próximo dela, na saída, na entrada, na
sala, no pátio da escola, em casa, em todos os lugares. Ela irradiava energia.
Crescemos. Quando chegamos aos 14 anos, eu era um garoto
mirrado, com uma voz azeda e falha, com penachos de pêlos no rosto e um
conglomerado de espinhas que tomavam conta de meu rosto reivindicando posse
sobre. Por sua vez, Nandinha era a flor da escola. Os meninos do segundo grau
mantinham seus olhos fixos e vigilantes aos mais sensíveis passos dela. E como
isso me revoltava. Ela continuava a ser a Nandinha de sempre. Nos intervalos
enganchava seus braços nos meus, como noivos a entrar na igreja, e conduzia-me
a um canto do colégio para ficarmos juntos, por vezes apenas olhando um para o
outro. Ela fitava meus olhos como se quisesse perfurar meu crânio através
deles. Quando eu desviava-os, ela sorria debochadamente e dizia que eu era
fraco. Ah, Nandinha! Foi em um desses momentos que ela contou-me que havia
beijado o Israel. Nada demais, ou não, se pensarmos que fora o primeiro beijo
de Nandinha e ela apontava quase 15 anos e era a flor de maior destaque da
escola, mas o coração não respeita lógicas e logo disparei injúrias contra
isso. Como ela teve coragem disso? Beijar um rapaz na boca? Isso devia até ser
pecado, e mais, sem ao menos me contar que já havia cogitado a hipótese!
Nandinha ouviu tudo com a mesma expressão de sempre, colocou sua mão em meu
rosto e disse:
- Calma, foi apenas um beijo – e lentamente se aproximou
de mim, e seus lábios tocaram os meus. Meu coração disparou em ritmo
alucinante, eu não sabia como contê-lo, minhas mãos começaram a formigar, a
cabeça parecia ter sido inundada de milhões de ideias. Inclinou sua boca e
lentamente senti sua língua encostar em minha boca. Liberei minha língua de seu
confinamento de 14 anos, e ela miraculosamente soube o que fazer. Encostamos
língua com língua, eu não sabia o que pensar. Novamente, lenta como uma
sinfonia, ela finalizou o ato com um último contato úmido de lábios e se
afastou. Olhou pra mim, com aquele rosto vivo de sempre, sorriu o mais puro dos
sorrisos – foi apenas um beijo bobo.
Não respondi, e, hoje, pensando bem, acho que toda essa
ação se desenvolveu por apenas uns 15 segundos. Entretanto, esse não foi um
mero beijo assim como o que ela havia dado em Israel. O meu havia cravado a
espada da certeza em mim, estava apaixonado por ela. E o de Israel evoluiu para
outros beijos que evoluíram para um namoro. Israel era o Ás de Copas do
colégio. Seriam juntos o casal perfeito do colégio. Seriam, se não fosse
Nandinha. Nandinha era emoção, não era razão. Continuava a me chamar nos
intervalos, corria como se fosse criança, como se fosse menino. Não era de demonstrações
públicas de afetos, segundo ela dizia, eram mentiras, mentiras sociais. Sonhava
em ser adulta, sim, falava que ser feliz era viver, e viver era não ter planos
e não ser preso. Como era de se esperar seu namoro não vingou e para ela foi
como se apenas houvesse tropeçado na calçada. Nenhuma emoção, nenhum remorso.
Havia perdido a sinceridade há muito tempo, limitou-se a dizer.
Ela crescia e ficava cada vez mais linda e deslumbrante.
Você tem que arrumar uma namorada, você é bonito, simpático, o que mais uma
menina iria querer? Ela repetia isso todos os dias. Ela sempre tinha alguém ao
seu lado. Não queria namorado, não queria vínculo, seu único vínculo era com a
vida. As outras meninas achavam-na ousada e não lhe eram simpáticas, Nandinha
não se importava. Pensando bem, nada importava para ela. Bonito aquele rapaz!
Pronto, eu sabia que em menos de dois dias ela estaria com ele. E que uma
semana depois estaria sem ele. Aquilo me revirava o estômago, tinha vontade de
vomitar toda vez que pressentia que alguém poderia estar com ela.
- Roberto!!...visita – era o berro de minha mãe. A senha
para meu coração dar saltos, as mãos formigarem levemente e a cabeça girar a
mil até vê-la entrando no quarto. Assim eram os dias de minha adolescência.
Nandinha na escola, Nandinha em casa, Nandinha nos sonhos. Uma overdose de
Nandinha. Logicamente que tive meus namoros. Alguns desses namoros por ela
encorajados. E isso deixava-me mais magoado. Como ela podia fazer isso comigo?
Como podia não notar o meu amor?
Estava decidido a me
declarar, estávamos com 17 anos na época. Era uma quinta-feira, a data nunca
esqueci, como sempre ela estava em meu quarto com sua maneira particular de
conversar, com muitos toques e contatos. De maneira brusca segurei-a pelos
ombros, olhou-me como se eu estivesse lhe dado um esbarrão costumeiro, sem
demonstrar nenhuma emoção, mas olhando em meus olhos. Falei para ela que precisava
abrir o jogo. Que não aguentava mais olhar para ela, conversar com ela, rir com
ela, tocar nela, sem poder beijá-la. Não sei por quê, mas meus olhos marejaram,
e, antes que eu continuasse a abrir meu coração, ela sorrindo beijou-me, beijo
molhado, sacana, beijo de provocação. Suas mãos desceram suaves sem pressa em
meu pescoço. Seu corpo pendeu em direção ao meu de modo que sem mim ela cairia
para frente. Agarrou minhas mãos e as guiou como um cão guia um cego em direção
ao seu corpo. Inexplicavelmente eu queria lhe falar, queria continuar nossa
conversa, mas era impossível. Meu corpo era meu senhor, e sua vontade era o
próprio sentido da vida. Com o ímpeto de um sedento em relação a água, sorvi
meus deleites mais secretos. Fomos sem pressa, sem receio, dois desbravadores
no auge da coragem, ainda com a ilusão do oásis alcançar. Minha mãe estava no
grupo de reza, e o tempo correu lentamente, estávamos em um universo paralelo. Lembro
do cheiro, do suor, ainda sinto os estímulos daquela noite. Por vezes, penso
que Nandinha nunca saiu daquele quarto, que ainda estamos lá, juntos; a verdade
é que nunca saí daquele quarto e, talvez, minha vida tenha ficado lá.
Exauridos, não
trocamos palavras, ela era perfeita em seu todo, seu corpo era feito sobre
medida para encantar. Sua nudez lembrava Afrodite saindo das águas, nunca em
minha vida vi outra tão bonita. Seus olhos transitavam entre a calmaria e o
caos, e ela não os tirava dos meus.
Olhá-los era encarar um juiz implacável e ameaçador, julgando-lhe sem
você saber o quê. Todas as minhas tentativas de falar algo foram silenciadas
com um beijo. Passamos longos minutos fitando um o outro, minutos que pareceram
uma vida inteira. Desafiando todos os preceitos de segurança adormeci,
despertei de forma brusca, ainda anestesiado, grogue. Procurei inutilmente por
Nandinha, lembrei de minha mãe, da situação em que estava. Vesti minhas roupas
e vi que minha mãe não estava. Não entendia como eu pude adormecer, e muito
menos o porquê de ela ter partido sorrateiramente.
Sentei na cama e as
imagens ainda vivas inundavam minha mente. Desabei na cama, e era como se ela,
ali, ainda estivesse. Minha mãe chegou em casa, mas sua presença era
etérea, a conversa era distanciada, sentia que ela falava de um outro plano,
algo distante e difícil de ser compreendido. Por que ela havia partido?
Surpresa maior foi no
dia seguinte. Pela manhã, antes de ir à escola, não a encontrei. Meu coração só
pensava na possibilidade de abraçá-la, tocar em sua mão, andar juntinho a ela
como um lindo casal. Meus sonhos foram desfeitos ao chegar na escola. Não
encontrei-a na sala, na hora da chamada, a professora questionou se Nandinha
havia mesmo se mudado para a casa dos avós. Aquela notícia ecoou em minha
cabeça. Casa dos avós? Ela sempre falara que adorava a casa de seus avós, mas
mudar-se para lá? E pior, sem avisar-me de nada?
Aquela manhã andou
morosamente. Minutos eram horas, horas eram dias, eu precisava sair de lá e
correr para a casa de Nandinha. Corri desesperado em direção a sua casa assim
que o sinal soou. Cheguei com o pulmão saindo pela boca, e tão logo apontei no
portão a mãe de Nandinha me recebeu com um sonoro e alegre bom dia. Não precisei nem falar nada, ela olhou para
mim e disse que foi Nandinha que havia pedido que não comentasse nada.
Questionei a razão desse pedido, afinal éramos unha e carne, mais ainda depois
do que havia ocorrido na última noite, mas esse detalhe achei melhor omitir.
Senti-me zonzo, precisei sentar, penso que até vomitei, pois lembro que a mãe
dela me levou para dentro de casa. De nossa conversa pouco me lembro, mas as
palavras “longe”, “correr atrás do sonho de morar na cidade grande” reverberaram
na minha mente. Nandinha se fora e essa era a realidade que eu precisava
encarar.
Os dias foram passando
e as notícias de Nandinha eram escassas.
Após uma ameaça de fugir de casa atrás dela, um grito inconsequente de
um possível suicídio e algumas outras revoltas, meu coração e pensamento
entraram em um período de hibernação. Eu estava e não estava. Tentei engatar um
namoro e não consegui, faltava-me sentimento. Entrei na faculdade de medicina
com a quarta melhor nota entre milhares de alunos. Minha família era só
orgulho, mas para mim foi como ganhar o prêmio de uma rifa chinfrim comprada de
um sobrinho por níqueis.
Na universidade fiz
festas, saí com garotas, bebi com os amigos e ao fim de 5 anos formei-me em
medicina. Durante esse tempo soube que Nandinha trabalhara em uma lanchonete,
em um banco, novamente em uma lanchonete, em um bar, em uma loja de perfumaria
e viajara para a Índia, virando uma itinerante, logo em seguida. Nunca mais a
vi. Sempre tentava encontrá-la, mas, não sei se de forma proposital ou acaso,
nunca conseguia vê-la quando ela visitava seus pais.
Casei com uma boa
mulher, tinha meus 26 anos. Aos 27, minha mulher engravidou e aos 28 eu era
pai. Meu filho cresceu, chegou aos seus 15 anos, começou a namorar, brigou com
a namorada, chorou, iniciou novos relacionamentos, entrou na faculdade e teve meus
netos. Perdi minha esposa e companheira em uma manhã quente de verão, chorei
como criança e fui acalentado por meu neto. A vida seguiu seu curso como deve
seguir. Tentei, inúmeras vezes, desancorar daquele quarto, deixar a correnteza
do rio conduzir-me, mas falhei. Uma gripe bateu forte no peito, sabia que estava
chegando a hora de atracar o meu barco nas areias do desconhecido, já não tinha
minha mulher ao meu lado, meu filho morava longe e sentia cada vez mais saudade
de Nandinha. A doença tomou conta, lembro de meu filho falando comigo ao lado
da cama, não consegui responder qualquer coisa para ele, mas nossos olhos encontraram-se
e nada mais precisou ser dito. Abandonei os vivos e remei meu barco lentamente
para margem, ao tempo de avistar aquela conhecida figura feminina que aguardava
na areia. Os mesmos cabelos, sorrisos e, claro, o mesmo olhar. Meus olhos
marejaram, ela sorriu e recebeu-me com o estender de um braço. Apertei sua mão
e a puxei junto a mim, o beijo foi de anos, juvenil e fresco. Olhei para o
barco ao lado do meu e, então, tudo fez sentido,em seu barco não havia âncora,
não havia lemes.
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