A
chaleira assobiando era a prova de seu estado de espírito. Não conseguia pensar
em nada naquela manhã. Sua cabeça era uma festa de mal gosto em que as músicas
são trocadas constantemente sem aviso prévio. Os pensamentos iam e viam em uma
constante desconexa que a fazia não conseguir concentrar sua atenção. Com a
água fervida, seu chá havia sido cancelado e sentia-se novamente sozinha e
abandonada.
Olhou para o celular que
repousava sobre o estofado como um hóspede indesejado, mas necessário. Queria
poder fechar os olhos e acordar em outro lugar, outra cidade, outras pessoas e,
principalmente, sem a presença, mesmo que não física, dele. Os flashes da noite
anterior ainda surgiam em seus olhos sem serem solicitados. O grito no ouvido,
as palavras jogadas em direção a seu rosto como setas que rasgavam a cada ataque,
o furor da despedida e os 15 reais do táxi para casa; lembranças de mais uma
noite que se repetia, contudo, pela última vez. Pensava que, talvez, fosse mais
fácil lidar com tudo isso anos atrás. Hoje, a noite fatídica espalha seus ecos
por muitos dias. Sentou em frente ao computador e iniciou o dolorido processo
de retirada de tudo que a pudesse ligar ainda com ele. Abriu a rede social e,
imediatamente, visualizou as inúmeras mensagens que tratou de deletar antes que
pudessem construir qualquer sentido. Deletar as fotos era um processo de
autoflagelação, como se estivesse, a cada excluir, realizando um sabotar da
possibilidade de felicidade.
Nunca havia dado motivo algum
para criar dúvidas, mas elas sempre surgiam através de um amigo em uma festa,
um vizinho antigo, um esbarrar involuntário ou olhar casual. Bastava uma dessas
situações ocorrerem, que logo um inquérito era instaurado, sem ordem, sem
espaço para defesa ou argumentação, sem possibilidade de recesso. Era colocada
contra a parede, uma criminosa capaz de algo hediondo, uma pária. Logo ela,
formada, bem empregada, sujeitar-se a esse tipo de situação, esse nível de
constrangimento, mas havia sido a última vez, ouviria os conselhos da mãe, tia,
avó e amigas. Daria um basta nisso tudo, a última noite fora um divisor de
águas, uma vida nova, um rompimento com 6 anos navegando em um mar revolto e
inconstante. Entre lágrimas, sorriu, seria forte, precisava ser forte, a vida
seguiria seu curso e, logo, tudo não passaria de mais um dos tantos
aprendizados que as pessoas precisam passar.
Manuseou o celular, iria ligá-lo,
mas sabia o que ele a contaria. Inúmeras mensagens de ligações não respondidas,
mensagens com promessas de vida nova tão vazias e mentirosas quanto a xícara
apenas com o sachê de chá sobre a mesa esperando a água que fervera, decidiu
não utilizá-lo e o deixou novamente desamparado uma vez mais no canto do
estofado. Voltou a sua árdua tarefa de apagar a existência do inapagável.
Foi
interrompida de sua tarefa pelo som ensurdecedor e repentino da companhia,
pensou se poderia ser ele, não, não poderia ser ele, não teria coragem.
Levantou de mãos dadas com o receio, olhou pelo olho mágico, era ele, parado,
estático, imensas olheiras, havia sofrido; quem sabe passara a noite em claro;
talvez nem mesmo fora para a casa, ficara na esquina, lamentando sua ação e a
injustiça que cometera. Enquanto assistia o brotar de inúmeros pensamentos, ele
implorava por seu nome. Ajoelhado, pedia para que abrisse o portão e que
deixasse ele entrar. Neste momento, não era mais o receio que a acompanhava,
estava abraçada com a dúvida que a fazia levar o dedo ao botão do interfone
para libertar o portão. Ele ainda teria que passar pela porta, pensou, em uma
clara tentativa de justificar o ato de abrir o obstáculo que o mantinha do lado
de fora.
Abriu o portão e ele entrou
acanhado como um gato adentrando um ambiente estranho, atravessou o espaço
entre o portão e a casa levando muito mais tempo do que o normal. Chegou junto
à porta e ela podia sentir sua presença. Ele falou baixinho seu nome, durante
longos 20 minutos justificou a reação que tivera na noite anterior, entre cada
justificativa exclamava “eu te amo!”. Seu coração a traía, palpitava
idiotamente cada vez que ouvia “amo”. Lentamente o passional coração tomou
posse do braço, do corpo, conduziu a mão até a chave virando-a vagarosamente,
girando também, dessa forma, a fechadura que havia colocado para resguardar sua
alma. Ao entrar, ele foi cauteloso, encostou a mão de forma delicada na mão
dela, aproximou o rosto sem pretensão já prevendo a possível rejeição, implorou
por desculpas junto ao ouvido delicado deslocando os cabelos que caíam como
proteção. Ela tremeu, tentou se afastar não se afastando. As palavras ignoravam
sua mente e pareciam ecoar diretamente em seu peito, sentiu seu perfume, de
repente suas mãos, antes resistentes, retribuíram o carinho proposto por
aquelas mãos conhecidas, suas tropas defensivas provaram-se ineficazes diante
do ataque sorrateiro que sofrera, os lábios encontraram-se e o destino estava selado.
O que sabiam sua mãe, tia,
avós e amigas? A manhã passou lenta e confundiu-se com a tarde. Conversaram por
horas e promessas quebradas inúmeras vezes foram reparadas. Sentia-se completa
outra vez, tinha novamente um futuro, uma razão e um destino; lamentou apenas
um fato, precisariam tirar novas fotos.
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