terça-feira, 7 de abril de 2015

Apenas uma manhã




            A chaleira assobiando era a prova de seu estado de espírito. Não conseguia pensar em nada naquela manhã. Sua cabeça era uma festa de mal gosto em que as músicas são trocadas constantemente sem aviso prévio. Os pensamentos iam e viam em uma constante desconexa que a fazia não conseguir concentrar sua atenção. Com a água fervida, seu chá havia sido cancelado e sentia-se novamente sozinha e abandonada.
Olhou para o celular que repousava sobre o estofado como um hóspede indesejado, mas necessário. Queria poder fechar os olhos e acordar em outro lugar, outra cidade, outras pessoas e, principalmente, sem a presença, mesmo que não física, dele. Os flashes da noite anterior ainda surgiam em seus olhos sem serem solicitados. O grito no ouvido, as palavras jogadas em direção a seu rosto como setas que rasgavam a cada ataque, o furor da despedida e os 15 reais do táxi para casa; lembranças de mais uma noite que se repetia, contudo, pela última vez. Pensava que, talvez, fosse mais fácil lidar com tudo isso anos atrás. Hoje, a noite fatídica espalha seus ecos por muitos dias. Sentou em frente ao computador e iniciou o dolorido processo de retirada de tudo que a pudesse ligar ainda com ele. Abriu a rede social e, imediatamente, visualizou as inúmeras mensagens que tratou de deletar antes que pudessem construir qualquer sentido. Deletar as fotos era um processo de autoflagelação, como se estivesse, a cada excluir, realizando um sabotar da possibilidade de felicidade.
Nunca havia dado motivo algum para criar dúvidas, mas elas sempre surgiam através de um amigo em uma festa, um vizinho antigo, um esbarrar involuntário ou olhar casual. Bastava uma dessas situações ocorrerem, que logo um inquérito era instaurado, sem ordem, sem espaço para defesa ou argumentação, sem possibilidade de recesso. Era colocada contra a parede, uma criminosa capaz de algo hediondo, uma pária. Logo ela, formada, bem empregada, sujeitar-se a esse tipo de situação, esse nível de constrangimento, mas havia sido a última vez, ouviria os conselhos da mãe, tia, avó e amigas. Daria um basta nisso tudo, a última noite fora um divisor de águas, uma vida nova, um rompimento com 6 anos navegando em um mar revolto e inconstante. Entre lágrimas, sorriu, seria forte, precisava ser forte, a vida seguiria seu curso e, logo, tudo não passaria de mais um dos tantos aprendizados que as pessoas precisam passar.
Manuseou o celular, iria ligá-lo, mas sabia o que ele a contaria. Inúmeras mensagens de ligações não respondidas, mensagens com promessas de vida nova tão vazias e mentirosas quanto a xícara apenas com o sachê de chá sobre a mesa esperando a água que fervera, decidiu não utilizá-lo e o deixou novamente desamparado uma vez mais no canto do estofado. Voltou a sua árdua tarefa de apagar a existência do inapagável.
  Foi interrompida de sua tarefa pelo som ensurdecedor e repentino da companhia, pensou se poderia ser ele, não, não poderia ser ele, não teria coragem. Levantou de mãos dadas com o receio, olhou pelo olho mágico, era ele, parado, estático, imensas olheiras, havia sofrido; quem sabe passara a noite em claro; talvez nem mesmo fora para a casa, ficara na esquina, lamentando sua ação e a injustiça que cometera. Enquanto assistia o brotar de inúmeros pensamentos, ele implorava por seu nome. Ajoelhado, pedia para que abrisse o portão e que deixasse ele entrar. Neste momento, não era mais o receio que a acompanhava, estava abraçada com a dúvida que a fazia levar o dedo ao botão do interfone para libertar o portão. Ele ainda teria que passar pela porta, pensou, em uma clara tentativa de justificar o ato de abrir o obstáculo que o mantinha do lado de fora.
Abriu o portão e ele entrou acanhado como um gato adentrando um ambiente estranho, atravessou o espaço entre o portão e a casa levando muito mais tempo do que o normal. Chegou junto à porta e ela podia sentir sua presença. Ele falou baixinho seu nome, durante longos 20 minutos justificou a reação que tivera na noite anterior, entre cada justificativa exclamava “eu te amo!”. Seu coração a traía, palpitava idiotamente cada vez que ouvia “amo”. Lentamente o passional coração tomou posse do braço, do corpo, conduziu a mão até a chave virando-a vagarosamente, girando também, dessa forma, a fechadura que havia colocado para resguardar sua alma. Ao entrar, ele foi cauteloso, encostou a mão de forma delicada na mão dela, aproximou o rosto sem pretensão já prevendo a possível rejeição, implorou por desculpas junto ao ouvido delicado deslocando os cabelos que caíam como proteção. Ela tremeu, tentou se afastar não se afastando. As palavras ignoravam sua mente e pareciam ecoar diretamente em seu peito, sentiu seu perfume, de repente suas mãos, antes resistentes, retribuíram o carinho proposto por aquelas mãos conhecidas, suas tropas defensivas provaram-se ineficazes diante do ataque sorrateiro que sofrera, os lábios encontraram-se e o destino estava selado.
O que sabiam sua mãe, tia, avós e amigas? A manhã passou lenta e confundiu-se com a tarde. Conversaram por horas e promessas quebradas inúmeras vezes foram reparadas. Sentia-se completa outra vez, tinha novamente um futuro, uma razão e um destino; lamentou apenas um fato, precisariam tirar novas fotos.

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