sábado, 4 de abril de 2015

O homem que apostava com Deus



Era mais uma quarta-feira de verão, ou seria de primavera. Poderia ser até de inverno, dada a inconsistência do tempo atualmente. Quando dizem que chove, faz sol; quando dizem que fará sol, chove; no verão, faz frio; no inverno, calor. Na verdade, era uma injustiça muito grande isso tudo, imaginou o que aconteceria se errasse tanto, também, em seu serviço. Era demissão com a tal da justa causa. Disperso nesses pensamentos, quase tropeçou em um homem acanhado no canto da calçada.
- Tem um trocadinho, meu senhor?
- Não tenho, meu amigo.
- Uma moedinha.
- Já disse que não tenho.
- Cuidado! Posso ser Jesus fazendo um teste.
- Se fosse mesmo ele, não falaria. E outra, não estou muito inclinado em crer nessas coisas.
- Coisas?
- Sim, misticismo, magia, religião, essa tal de fé.
- Temos um cético.
- Como é que é?
- Um cético.
- Olha aqui, eu não sou obrigado a dar-lhe dinheiro não, meu amigo. Cético é a sua mãe! Primeiro de tudo é respeito!
- Meu senhor, eu não quis ser desrespeitoso, talvez o senhor não tenha compreendido, mas o que disse é que o senhor é uma pessoa que duvida de aspectos não comprovados. Entende?
- Hum...Olha, para um sujeito de rua, você até que fala bem.
- Já disse, posso ser muito mais do que aparento.
- Ok, “Jesus”, mas eu tenho que ir que estou atrasado.
- Sempre estão.
- O quê?
- Vocês, sempre estão atrasados para alguma coisa, para algum compromisso inadiável. Aceleram a vida que deveria ser desacelerada, fazem, sempre, exatamente o contrário que o bom senso indica.
- Como assim vocês? Nós trabalhamos, temos compromissos, responsabilidades. Não ficamos sentados em uma calçada esperando alguém fazer algo por nós. É tão mais fácil ficar sentado aí, sem trabalho, sem horário, sem esforço.
- Tem certeza?
- Do quê?
- Disso que você está afirmando.
- Como assim?
- Esperar sentado a boa vontade de uma pessoa requer uma escolha. Requer um posicionamento. Não ter uma casa confortável para aconchegar-se à noite, relegar um sofá para descansar o corpo dolorido e cansado das agruras do dia, não importar-se em estar em uma posição de submissão em relação aos demais. Você estaria disposto a isso?
- Sou trabalhador. Saí do nada, estudei, trabalhei, tudo que tenho consegui com o meu próprio suor.
- Fabuloso. Não há nada de errado em conduzir sua vida dessa maneira, meu amigo.
- Lógico que não.
- Então, em nome da sua bonança, consiga um trocado para um menos favorecido que optou por uma vida sem compromisso e responsabilidades pagando o preço de viver pelo resto dos mais favorecidos.
- Já lhe disse, não darei nada.
- Sabe quantos já disseram isso hoje?
- Não faço a mínima ideia.
- Você é o primeiro.
- Você não está exatamente no melhor ponto da cidade.
- É verdade, mas o centro é muito distante. Prefiro ficar mais perto.
- Perto do quê? Você por acaso tem casa?
- Não, infelizmente não.
- Quer ficar perto do que, afinal?
- Perto do local em que acordei. Aquele amontoado de cobertas sob aquela marquise.
- Um mendigo com preguiça até para pedir esmola. Essa eu ainda não tinha visto.
- Está aí, proporcionei para você um momento único, mereço um troquinho.
- Você é insistente, hein?
- Não se ganha nada sem insistência. Se aceitasse as primeiras respostas, teria morrido de fome há muitos anos. Estamos em uma boa época.
- Boa época? Você enlouqueceu? Estamos em meio a uma crise.
- Crise? Precisava ver a idade média, momento difícil.
- Como é que é? Ah...esqueci, “Jesus”, né?
- Sim, mas cansado. Ou melhor, cansando.
- O que pode cansar alguém que fica sentado esperando?
- Tudo, os humanos, os problemas, os pisos gelados. Tudo é pedra e ferro. Está complicado viver no mundo.
- Mas se você é Jesus, por que não resolve sua situação?
- Não posso.
- Por quê?
- Aposta é aposta.
- Aposta?
- Sim, caí na asneira de apostar com meu pai que sobreviveria por 2000 anos na Terra sem a ajuda divina em troca da redenção dos homens. Tudo estava indo bem, mas tinha que aparecer uma serpente, apóstolos, não me contive, passei a pregar e fazer milagres. Transformar aquela água toda em vinho foi a gota d’água. Para não pagar a aposta, falei que daria adeus àquele corpo terreno e pegaria outro. Ele aceitou.
- Opa, opa!! Mas vocês não são a mesma coisa. A tal da santíssima trindade?
- Somos e não somos. É mais complicado.
- É sempre assim.
- O quê?
- Complicado, é assim mesmo, um mistério. Respostas convenientes.
- Mas é mesmo um mistério.
- Está bem, se você é mesmo quem diz, faz um milagre.
- Não posso.
- Conveniente.
- Creia homem, estou lhe dizendo, sou eu mesmo. Estou aqui pagando pelos pecados dos homens.
- E a aposta?
- Digamos que é apenas para fazer a coisa ser mais intrigante.
- Tá bom. Então, me diz uma coisa, se aposta é 2000 anos, então está quase...
- Sim, faltam 18 anos.
- Então, estou com Deus.
- Como é que é?
- Acho que não vai aguentar até o final. A coisa está feia, a crise está grande.
- Cuidado homem, vai apostar contra Deus?
- Não, não. Vou apostar com ele.
- É só o que faltava. Vai apostar contra mim e toda a humanidade?
- Oportunidade única, o senhor me desculpe! Além do mais, a humanidade já aposta contra si mesma há muito tempo.
- Mas..
            Iria explicar novamente sobre a santíssima trindade, que apostar contra ele era apostar contra Deus, porém desistiu. Não adiantaria de nada. Eles nunca compreendem.
- Tenho que ir agora, minha família me espera.
- Vá em paz, meu filho. Cuide bem daquela criança.
- Como você...ah...esqueci, onipresente. Truque bacana.
            O aperto de mão foi mais forte do que o habitual.
- Boa sorte em sua tarefa.
- Obrigado, meu amigo.
- Então, até daqui muitos anos, “vossa majestade”
- Ei, espera um pouco, vai conseguir um troquinho?
- Bah, sabe como é, família, crise...e a aposta. Perdão, “meu senhor”!
            Homens. Bons e ruins, ou seja, homens, os amava com toda a força que possuía. Conseguiu sorrir enquanto assistia o homem afastando-se. Enxergava a dúvida em seu coração: - Um dia, meu amigo, um dia – murmurou baixinho para si mesmo. A fome do corpo carnal estava lhe matando. Olhou para a pedra ao lado, passou a mão sobre ela, poderia transformá-la em um pãozinho, um mísero e delicioso pãozinho. Olhou para o céu estrelado e pensou “A aposta, não esqueça da aposta, dorme que passa”.           
            Enquanto se acomodava nos papelões no chão frio, ergueu a mão em direção a silhueta que andava longe e abençoou, uma vez mais, aquela vida.
            Sonhou algo divino com vinhos e muitos pães. Acordou ainda com fome.

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