quinta-feira, 9 de julho de 2015

Vazamento




            Nunca possuíra nada além do comum. Na época de escola, tentara ser jogador de futebol, logo descobriu que, assim como o gato não foi feito para a água, não havia nascido para o esporte bretão. Aventurou-se nas lutas, principalmente após levar um safanão do valentão da escola, outro fracasso. Entrou no clube de xadrez, foram 30 dias de derrotas e jogadas que nunca havia ouvido falar, desistiu. Foi em um intervalo da aula que descobriu seu único talento: pingue-pongue. Aquele vai e volta da bolinha fazia sentido para ele, antecipava as jogadas dos adversários, executava verdadeiros malabarismos com a pequena raquete. Todos aguardavam o intervalo para vê-lo flutuar ao redor da mesa. Entretanto, o esporte não lhe trouxe dinheiro, e ele estudou por quatro anos de forma afinco e tornou-se funcionário público.
            Graças as compensações e gratificações ofertadas àqueles que cumprem certas atividades para com o governo, adquiriu um confortável apartamento no centro da cidade. Boa vizinhança, segurança, silencioso, porém vazio. Precisava preencher o espaço, fazer com que as paredes ganhassem vida, decidiu que a sua vida precisava de uma mulher.
            Virou assíduo frequentador da vida noturna da cidade, desfrutou de seus prazeres e de suas tristezas. Conheceu inúmeras pretendentes, pés feios, famílias difíceis, unhas por fazer, possessivas, entre outros fatores afastavam-no de seu intuito. Foi quando conheceu Camila. Bonita, inteligente, simpática e de boa família. Gostaram-se de imediato. Ele relutou olhar para os pés dela, sempre que surgia a oportunidade ele virava o rosto, sabendo o quanto idolatrava e considerava tal parte da anatomia humana, não queria colocar por terra o que estava sentindo.
            Era um domingo, acordaram com o desejo do abraço matinal acompanhado do receio de sentir o gosto da noite na boca do outro. Ele fechou os olhos um pouco mais, Camila levantou-se. Pouco mais do que 5 minutos passaram-se até ela chamá-lo, ele virou e confrontou um pé, um lindo pé posando somente para ele, ela havia feito a armadilha, exibia o pé que ele relutava ver. E ele era lindo. Passou o domingo mimando e acariciando aquele pé, ao final do dia sentenciou em frente ao espelho enquanto escovava os dentes: essa é para casamento.
            O casamento foi simples e sem tantas pompas. As famílias foram bem servidas e alimentadas em um restaurante famoso e um tanto distinto da cidade. Todos muitos felizes, principalmente o jovem casal. Casara pelo pé.
            Foi no segundo ano de casamento que alguns colegas de escritório o convidaram para uma farra. Elaboraram o álibi perfeito e esbaldaram-se na noite. A primeira vez fora o abre-alas, viciou-se. A farra virou caso sério, arrumou uma amante do outro lado da cidade e passou a trabalhar nos domingos. Camila questionava por que tanto trabalho, contas ele dizia, “a vida de um casal de classe média trabalhador fica cada vez mais difícil”. Os amigos avisavam que ele estava extrapolando, entretanto, como em todo momento de euforia, estava cego e surdo para o bom senso.  
            Era mais um domingo com plantão extraordinário. Saiu cedo de casa para atravessar a cidade até a casa que não era casa, na rua que não era rua para encontrar a mulher que não era mulher, uma vez que nada daquilo existia ou era suposto pelo mundo real. Era feliz em seu universo. Passou mais um domingo maravilhoso. Quando a tarde já se afastava e a noite reclamava seu espaço, dirigiu-se tranquilamente a seu apartamento; normalmente, nesses dias de plantão, costumava chegar somente à noite, porém, naquele domingo, faria um agrado em casa. Estacionou seu carro, desceu lentamente e dirigiu-se ao elevador. Lá dentro, revisou o visual no espelho a procura de qualquer vestígio que pudesse denunciá-lo, mas não encontrou. Desceu no quarto andar como sempre e deslocou-se até a porta do 403, tudo normal até a chave entrar ruidosa na fechadura e ele ouvir, além do barulho causado pela chave, um estalo acompanhado de movimentos bruscos vindo da área interna do apartamento. Abriu a porta e deu de cara com um rapaz jovem, transpirando absurdamente, a esposa surgindo da cozinha igualmente ofegante. Ficou ali, perplexo, sem reação. Camila tratou de agradecer o jovem pelo serviço realizado e disse que ligaria se precisasse novamente. O rapaz saiu constrangido, diante de um marido furioso e paralisado.
O bater da porta foi o despertar para ele, questionou a esposa o que ela estava pensando, que ele não era um desse cornos mansos por aí, que história era aquela de serviço. Ela, enquanto sentava delicadamente na poltrona, informou que se tratava de um encanador que resolverá um vazamento. Ele não aceitou, não havia vazamento algum, não havia marcas de serviço realizado, atirou o cinzeiro na parede, tirou a lixa de unhas incessante das mãos da mulher, chamou-a de todos os nomes que pudesse utilizar para mulheres que não respeitam a integridade do matrimônio. Por fim, berrou que sairia de casa, no que Camila, com toda a tranquilidade dada por Deus a algumas mulheres, falou “vai sair? ”.
            Negligenciara a esposa, naquele instante, isso ficara claro. Os avisos dos colegas da empresa, as conversas frias todos os dias, os domingos ausentes, era o culpado, o verdadeiro e único culpado. Tentou reconstruir sua linha de raciocínio, havia um homem em sua casa, um suposto encanador sem instrumentos, sem vestígio algum de obra realizada, mas, sempre que retomava os fatos, via-se saindo de casa aos domingos, a esposa sentada em casa, esperando. Esforçou-se em retirar algo a mais de Camila sobre o rapaz em seu apartamento, contudo ela não cedia, mantinha a história do serviço. Olhou para as paredes e lembrou o quanto eram silenciosas antes da esposa, lembrou dos pés que o conquistaram, não podia jogar fora tudo isso por algo que fosse de sua responsabilidade, talvez fosse um encanador, com toda essa tecnologia, quem sabe não se realizam mais serviços como antigamente, as cirurgias hoje já não deixam mais cicatrizes, por que um trabalho hidráulico deixaria?
            Resolveu ficar, não foi embora, não suportaria o apartamento vazio outra vez. Nunca mais falaram sobre aquele domingo, os plantões na empresa cessaram, e os serviços emergenciais em casa também. Nunca encontrou o vazamento.




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