Nunca
possuíra nada além do comum. Na época de escola, tentara ser jogador de
futebol, logo descobriu que, assim como o gato não foi feito para a água, não
havia nascido para o esporte bretão. Aventurou-se nas lutas, principalmente
após levar um safanão do valentão da escola, outro fracasso. Entrou no clube de
xadrez, foram 30 dias de derrotas e jogadas que nunca havia ouvido falar,
desistiu. Foi em um intervalo da aula que descobriu seu único talento: pingue-pongue.
Aquele vai e volta da bolinha fazia sentido para ele, antecipava as jogadas dos
adversários, executava verdadeiros malabarismos com a pequena raquete. Todos
aguardavam o intervalo para vê-lo flutuar ao redor da mesa. Entretanto, o
esporte não lhe trouxe dinheiro, e ele estudou por quatro anos de forma afinco
e tornou-se funcionário público.
Graças
as compensações e gratificações ofertadas àqueles que cumprem certas atividades
para com o governo, adquiriu um confortável apartamento no centro da cidade.
Boa vizinhança, segurança, silencioso, porém vazio. Precisava preencher o
espaço, fazer com que as paredes ganhassem vida, decidiu que a sua vida
precisava de uma mulher.
Virou
assíduo frequentador da vida noturna da cidade, desfrutou de seus prazeres e de
suas tristezas. Conheceu inúmeras pretendentes, pés feios, famílias difíceis,
unhas por fazer, possessivas, entre outros fatores afastavam-no de seu intuito.
Foi quando conheceu Camila. Bonita, inteligente, simpática e de boa família.
Gostaram-se de imediato. Ele relutou olhar para os pés dela, sempre que surgia a
oportunidade ele virava o rosto, sabendo o quanto idolatrava e considerava tal
parte da anatomia humana, não queria colocar por terra o que estava sentindo.
Era
um domingo, acordaram com o desejo do abraço matinal acompanhado do receio de
sentir o gosto da noite na boca do outro. Ele fechou os olhos um pouco mais,
Camila levantou-se. Pouco mais do que 5 minutos passaram-se até ela chamá-lo,
ele virou e confrontou um pé, um lindo pé posando somente para ele, ela havia
feito a armadilha, exibia o pé que ele relutava ver. E ele era lindo. Passou o
domingo mimando e acariciando aquele pé, ao final do dia sentenciou em frente
ao espelho enquanto escovava os dentes: essa é para casamento.
O
casamento foi simples e sem tantas pompas. As famílias foram bem servidas e
alimentadas em um restaurante famoso e um tanto distinto da cidade. Todos
muitos felizes, principalmente o jovem casal. Casara pelo pé.
Foi
no segundo ano de casamento que alguns colegas de escritório o convidaram para
uma farra. Elaboraram o álibi perfeito e esbaldaram-se na noite. A primeira vez
fora o abre-alas, viciou-se. A farra virou caso sério, arrumou uma amante do
outro lado da cidade e passou a trabalhar nos domingos. Camila questionava por
que tanto trabalho, contas ele dizia, “a vida de um casal de classe média
trabalhador fica cada vez mais difícil”. Os amigos avisavam que ele estava
extrapolando, entretanto, como em todo momento de euforia, estava cego e surdo
para o bom senso.
Era
mais um domingo com plantão extraordinário. Saiu cedo de casa para atravessar a
cidade até a casa que não era casa, na rua que não era rua para encontrar a
mulher que não era mulher, uma vez que nada daquilo existia ou era suposto pelo
mundo real. Era feliz em seu universo. Passou mais um domingo maravilhoso.
Quando a tarde já se afastava e a noite reclamava seu espaço, dirigiu-se
tranquilamente a seu apartamento; normalmente, nesses dias de plantão,
costumava chegar somente à noite, porém, naquele domingo, faria um agrado em
casa. Estacionou seu carro, desceu lentamente e dirigiu-se ao elevador. Lá
dentro, revisou o visual no espelho a procura de qualquer vestígio que pudesse
denunciá-lo, mas não encontrou. Desceu no quarto andar como sempre e
deslocou-se até a porta do 403, tudo normal até a chave entrar ruidosa na
fechadura e ele ouvir, além do barulho causado pela chave, um estalo
acompanhado de movimentos bruscos vindo da área interna do apartamento. Abriu a
porta e deu de cara com um rapaz jovem, transpirando absurdamente, a esposa
surgindo da cozinha igualmente ofegante. Ficou ali, perplexo, sem reação.
Camila tratou de agradecer o jovem pelo serviço realizado e disse que ligaria
se precisasse novamente. O rapaz saiu constrangido, diante de um marido furioso
e paralisado.
O bater da porta foi o despertar
para ele, questionou a esposa o que ela estava pensando, que ele não era um
desse cornos mansos por aí, que história era aquela de serviço. Ela, enquanto
sentava delicadamente na poltrona, informou que se tratava de um encanador que
resolverá um vazamento. Ele não aceitou, não havia vazamento algum, não havia
marcas de serviço realizado, atirou o cinzeiro na parede, tirou a lixa de unhas
incessante das mãos da mulher, chamou-a de todos os nomes que pudesse utilizar
para mulheres que não respeitam a integridade do matrimônio. Por fim, berrou
que sairia de casa, no que Camila, com toda a tranquilidade dada por Deus a
algumas mulheres, falou “vai sair? ”.
Negligenciara
a esposa, naquele instante, isso ficara claro. Os avisos dos colegas da empresa, as conversas
frias todos os dias, os domingos ausentes, era o culpado, o verdadeiro e único
culpado. Tentou reconstruir sua linha de raciocínio, havia um homem em sua
casa, um suposto encanador sem instrumentos, sem vestígio algum de obra realizada,
mas, sempre que retomava os fatos, via-se saindo de casa aos domingos, a esposa
sentada em casa, esperando. Esforçou-se em retirar algo a mais de Camila sobre o rapaz
em seu apartamento, contudo ela não cedia, mantinha a história do serviço.
Olhou para as paredes e lembrou o quanto eram silenciosas antes da esposa,
lembrou dos pés que o conquistaram, não podia jogar fora tudo isso por algo que
fosse de sua responsabilidade, talvez fosse um encanador, com toda essa
tecnologia, quem sabe não se realizam mais serviços como antigamente, as
cirurgias hoje já não deixam mais cicatrizes, por que um trabalho hidráulico
deixaria?
Resolveu
ficar, não foi embora, não suportaria o apartamento vazio outra vez. Nunca
mais falaram sobre aquele domingo, os plantões na empresa cessaram, e os
serviços emergenciais em casa também. Nunca encontrou o vazamento.
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