sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O sonho

 O sonho

Jeferson Luis de Carvalho

Acordou mais uma vez assustado. Já estava ficando recorrente. Sempre o mesmo sonho. O mesmo restaurante, o mesmo pedido, a mesma garçonete, o mesmo horário, mas principalmente a mesma mulher virando-se lentamente na sua direção. Cabelos escuros, sorriso farto, mirava-lhe diretamente nos olhos. Ele, imediatamente, levantava, caminhava em sua direção, a abordava e sem falar muito a beijava apaixonadamente. Entretanto, o beijo nunca acabava, sempre despertava assustado antes. 
Toda noite era a mesma coisa. Procurou ajuda psiquiátrica, reviveu momentos traumáticos, comprou pílulas milagrosas, nada ajudava, bastava adormecer para o mesmo sonho iniciar. 
Foi a uma cartomante que lhe informou que era um aviso. Uma premonição. Passou a investigar todos os restaurantes da cidade, definitivamente não era dali. Vendeu a casa, seus bens, saiu do emprego e passou a peregrinar por restaurantes pelo país inteiro. Não encontrava.
Descobriu que estava apaixonado por aquele beijo que ocorria todas as noites. Não tinha mais descanso. Tentava pensar em outra coisa, iniciar outros projetos, mas o sonho não o abandonava. Seus recursos financeiros estavam se esgotando. As pesquisas pela internet, as visitas aos mais diversos estabelecimentos, não surtiram efeitos. Não encontrava o restaurante. Após mais uma noite e mais um beijo, decidiu retornar. Pegou sua bagagem e iniciou o caminho de volta.
No ônibus, apoiou a cabeça lentamente no banco e ficou pensando em tudo que havia deixado para trás, na frustração, mas, principalmente, naquele beijo. O beijo mais irreal real que existe. Sim, real. Afinal, pensava, cada fato, cada momento vivido na suposta “vida real”, após a realização, escondia-se no campo da lembrança, dividindo espaço com os sonhos. Portanto, aquele beijo era tão real quanto. 
Absorto em seus pensamentos, entrou no mundo dos sonhos. Como sempre ocorria, à tarde, o restaurante não surgia, a linda morena também não. Na verdade, era apenas à noite, após a meia-noite que ela chegava. Acordou de sobressalto, o ônibus estava fazendo uma parada para o almoço. Desceu a contragosto. Não conhecia aquele restaurante. Apesar do aparente bom movimento externo, o local aparentava uma gradual falta de cuidados estruturais. A tinta estava desbotada e as escadas que levavam para o segundo nível apresentavam buracos em seus degraus. Entretanto, qual não foi a surpresa que teve ao entrar no prédio. O ambiente externo era bem cuidado e lembrava muito um lugar familiar. Não conseguia lembrar qual. Sentou no primeiro banco à esquerda. Nem pensou muito no quer pedir, já sabia há anos. A garçonete ele conhecia muito bem, deixou-a confusa quando deu um olá como se fosse a uma velha amiga. Evitou olhar para frente, teve medo, estava finalmente no restaurante do sonho. 
Ela estava lá. Cabelos escuros, uma indefinição entre o liso e ondulado, como um mar calmo chacoalhado por ondas isoladas. Ela virou e sorriu para ele. Imediatamente, voltou-se novamente para frente. Ele não podia mais esperar, levantou, caminhou até ela. Parou ao seu lado, ela mirou-o de cima a baixo. Ele disse oi. Ela respondeu. Ele a pegou pela mão, ela retirou. Ele pegou a mão novamente, dessa vez ela não recuou. Inclinou o rosto em direção ao rosto dela. Os lábios se tocaram, o beijo guardado é sempre juvenil, intenso em sua primeira liberdade. Foi como no sonho. Entretanto, ele não despertou e pode contemplar o rosto de sua musa com os olhos fechados se afastando lentamente. Ela abriu os olhos, eram como dois furacões atraindo tudo e a todos. 
- Como no sonho, achei que nunca veria você. Estou há três anos pagando cafés nesse mesmo lugar, nessa mesma hora, todos os dias.
 Sonhava com ele há mais de seis anos.

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