quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O gato

O gato

Jeferson Luis de Carvalho 

Chegou ronronando, mansinho, desconfiado e curioso. Era uma visão nova, aquele ser enorme, aparado suavemente por uma rede, com uma das pernas suspensas para fora e o os olhos fixos em um livro. Livre, mas sempre por perto, era a primeira vez que o gato via a rede sendo utilizada. Era o seu horário de Sol e o seu lugar de repouso. Agora era presa fácil daquela ameaçadora perna que suspendia-se para frente e para trás. Banhou apenas as patas da frente naquele feixe de luz matinal. Poderia mudar de lugar, mas definitivamente não queria. Chegara primeiro, deveria ter privilégios. O homem notou sua presença, retirou o livro de seu rosto e resmungou algo do tipo “peguei o seu lugar?” em voz ridiculamente infantil. Ao menos, havia afastado aquela longa e asquerosa perna e o gato delicadamente, como um legítimo lorde, pousou seu corpo contra a agora morna superfície da murada.
A murada não possuía mais de 50 centímetros de altura, mas, repousado ali, o gato parecia um faraó contemplando seu reino. O homem desviou levemente o olhar para ver aquela forma estendida ao Sol. Assim como olhou, voltou a viajar sua viagem pelas palavras. Adorava ler, sentia-se livre, viajante sem fronteiras, um explorador munido de um passaporte irrestrito. Estava maravilhando-se com a leitura de um livro de Borges. Quanta sabedoria em poucas palavras. Na verdade não lia, degustava, sorvia as palavras, extraía cada paladar. Poderia passar anos naquele local, daquela maneira. Aquele gato pouco distraiu-o.   
O Sol se pôs, o homem entrou em casa e o gato foi para o local onde os gatos sem donos repousam. A noite chegou, cresceu, tornou-se corpo, presença e inundou o mundo com sua forma. Mas ela acabou. O Sol saiu de seu refúgio, o homem saiu de sua casa de pedra e abrigou-se na rede novamente com seu livro. E novamente o gato surgiu, sorrateiramente procurou seu espaço. Deteve-se apenas diante da perna suspensa ameaçadoramente para fora da rede. Apesar de inerte em sua leitura, o homem recolheu a perna em sinal de respeito pelo espaço sagrado do bichano, o que fez com que o felino imediatamente ocupasse o local.
E assim sucederam-se os dias, o Sol saía, o homem sentava a rede e o bichano sentava na murada. A perna parou com o tempo de ser uma inimiga, e, por vezes, contatos ocorriam, mas cada um mantinha-se em seu mundo, o homem lendo o mundo no livro e o gato lendo o livro no mundo. Os que passavam e viam a cena, juravam que ambos pareciam dois velhos amigos em uma tarde qualquer, outros afirmavam que eram como dois inimigos confinados em um pequeno espaço, tendo que conviverem forçadamente com a presença um do outro. A verdade é que não eram nem um e nem outro. Eram o que eram, sem querem ser. Faziam o que tinham que fazer, fosse pela natureza ou pela vontade.
O tempo passou para eles assim como passa para todos. E o que antes era obra do acaso, agora era obra da providência. Viviam aqueles momentos, homem e gato. Não passarem por aquele ritual passou a ser algo impensável para ambos. Certo dia, o gato cansou-se de ser gato, e para a rede saltou. Demorou-se a reconhecer o terreno, tateou cuidadosamente o livro depositado no interior da rede. Com dificuldade e contando com suas habilidades, virou uma folha. Não sabia ler, não como os humanos, mas sabia sentir. Deitou-se sobre as folhas e como mágica, sentiu as palavras subirem por suas pequenas patas, e adentrarem em sua cabeça, tornando forma e conteúdo. O homem chegou e viu a cena, teve um ímpeto de espantá-lo de lá, contudo, viu o que o gato via todos os dias. Então entendeu, o gato lia por ele, assim como agora ele lia pelo gato. Sentou-se na murada e ela pareceu-lhe mais alta. O Sol era mais quente ali. O local era aconchegante, então decidiu esticar as pernas como o gato fazia. Acomodou-se. Respirou um dos mais serenes ar que já havia respirado. Encostou a cabeça na pilastra que interrompia o fluxo da murada e ficou a admirar o gato com sua leitura. Mas gatos não podiam ler, ele pensava. Porém algo lhe ocorreu, alguém já havia questionado a algum gato esse fato? Viviam os homens a julgar o mundo sob seus conceitos e verdades.  Decidiu aceitar o fato de que o gato lia.
Daquele dia em diante, deixava sempre um livro na rede. Revezavam-se nela. Exceto quando um deles estava sofrendo com uma leitura e precisava urgentemente continuá-la, a ordem de chegada prevalecia. As pessoas não entendiam essa relação, mas eles entendiam-se. Liam poemas, filosofias e alguns romances. O gato gostava de filosofia, e sobre ela versava miados e ronrons firmes e seguros. Não conseguiam mais distinguir quem era o homem e quem era o gato.
Um dia, um deles não apareceu. Sem motivo ou explicação, simplesmente não mais se fez presente. A família entrou em desespero. Queriam chamar as autoridades, mas não sabiam como explicar o caso. Amigos empenharam-se nas buscas. Aquele que sobrou, sentou na rede pálido e sem vida. Fora separado de uma parte da vida, uma parte de si. Quem ali esteve jura até hoje que não se identificava quem havia sumido. Chegaram à conclusão que o gato desaparecera, e trataram de levar o homem a um especialista para sair daquele estado. O médico chamou a família e disse que dessem mais duas semanas que ele voltaria ao normal. E assim ocorreu. Mas estava diferente, não sentava mais a rede, apenas na murada. Gostava de andar à noite pela casa com maestria, como se estivesse em um dia claro. Lambia as mãos constantemente. A mulher desconfiou, mas preferiu aceitar a situação, tinha filhos e não queira desintegrar a paz da família.

O que ficou foi o gato. 

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