O
gato
Chegou
ronronando, mansinho, desconfiado e curioso. Era uma visão nova, aquele ser
enorme, aparado suavemente por uma rede, com uma das pernas suspensas para fora
e o os olhos fixos em um livro. Livre, mas sempre por perto, era a primeira vez
que o gato via a rede sendo utilizada. Era o seu horário de Sol e o seu lugar
de repouso. Agora era presa fácil daquela ameaçadora perna que suspendia-se
para frente e para trás. Banhou apenas as patas da frente naquele feixe de luz
matinal. Poderia mudar de lugar, mas definitivamente não queria. Chegara
primeiro, deveria ter privilégios. O homem notou sua presença, retirou o livro
de seu rosto e resmungou algo do tipo “peguei o seu lugar?” em voz
ridiculamente infantil. Ao menos, havia afastado aquela longa e asquerosa perna
e o gato delicadamente, como um legítimo lorde, pousou seu corpo contra a agora
morna superfície da murada.
A
murada não possuía mais de 50 centímetros de altura, mas, repousado ali, o gato
parecia um faraó contemplando seu reino. O homem desviou levemente o olhar para
ver aquela forma estendida ao Sol. Assim como olhou, voltou a viajar sua viagem
pelas palavras. Adorava ler, sentia-se livre, viajante sem fronteiras, um
explorador munido de um passaporte irrestrito. Estava maravilhando-se com a
leitura de um livro de Borges. Quanta sabedoria em poucas palavras. Na verdade
não lia, degustava, sorvia as palavras, extraía cada paladar. Poderia passar
anos naquele local, daquela maneira. Aquele gato pouco distraiu-o.
O
Sol se pôs, o homem entrou em casa e o gato foi para o local onde os gatos sem
donos repousam. A noite chegou, cresceu, tornou-se corpo, presença e inundou o
mundo com sua forma. Mas ela acabou. O Sol saiu de seu refúgio, o homem saiu de
sua casa de pedra e abrigou-se na rede novamente com seu livro. E novamente o
gato surgiu, sorrateiramente procurou seu espaço. Deteve-se apenas diante da
perna suspensa ameaçadoramente para fora da rede. Apesar de inerte em sua
leitura, o homem recolheu a perna em sinal de respeito pelo espaço sagrado do
bichano, o que fez com que o felino imediatamente ocupasse o local.
E
assim sucederam-se os dias, o Sol saía, o homem sentava a rede e o bichano
sentava na murada. A perna parou com o tempo de ser uma inimiga, e, por vezes,
contatos ocorriam, mas cada um mantinha-se em seu mundo, o homem lendo o mundo
no livro e o gato lendo o livro no mundo. Os que passavam e viam a cena,
juravam que ambos pareciam dois velhos amigos em uma tarde qualquer, outros
afirmavam que eram como dois inimigos confinados em um pequeno espaço, tendo
que conviverem forçadamente com a presença um do outro. A verdade é que não
eram nem um e nem outro. Eram o que eram, sem querem ser. Faziam o que tinham
que fazer, fosse pela natureza ou pela vontade.
O
tempo passou para eles assim como passa para todos. E o que antes era obra do
acaso, agora era obra da providência. Viviam aqueles momentos, homem e gato.
Não passarem por aquele ritual passou a ser algo impensável para ambos. Certo
dia, o gato cansou-se de ser gato, e para a rede saltou. Demorou-se a
reconhecer o terreno, tateou cuidadosamente o livro depositado no interior da
rede. Com dificuldade e contando com suas habilidades, virou uma folha. Não
sabia ler, não como os humanos, mas sabia sentir. Deitou-se sobre as folhas e como
mágica, sentiu as palavras subirem por suas pequenas patas, e adentrarem em sua
cabeça, tornando forma e conteúdo. O homem chegou e viu a cena, teve um ímpeto
de espantá-lo de lá, contudo, viu o que o gato via todos os dias. Então
entendeu, o gato lia por ele, assim como agora ele lia pelo gato. Sentou-se na
murada e ela pareceu-lhe mais alta. O Sol era mais quente ali. O local era
aconchegante, então decidiu esticar as pernas como o gato fazia. Acomodou-se.
Respirou um dos mais serenes ar que já havia respirado. Encostou a cabeça na
pilastra que interrompia o fluxo da murada e ficou a admirar o gato com sua
leitura. Mas gatos não podiam ler, ele pensava. Porém algo lhe ocorreu, alguém
já havia questionado a algum gato esse fato? Viviam os homens a julgar o mundo
sob seus conceitos e verdades. Decidiu
aceitar o fato de que o gato lia.
Daquele
dia em diante, deixava sempre um livro na rede. Revezavam-se nela. Exceto
quando um deles estava sofrendo com uma leitura e precisava urgentemente
continuá-la, a ordem de chegada prevalecia. As pessoas não entendiam essa
relação, mas eles entendiam-se. Liam poemas, filosofias e alguns romances. O
gato gostava de filosofia, e sobre ela versava miados e ronrons firmes e
seguros. Não conseguiam mais distinguir quem era o homem e quem era o gato.
Um
dia, um deles não apareceu. Sem motivo ou explicação, simplesmente não mais se
fez presente. A família entrou em desespero. Queriam chamar as autoridades, mas
não sabiam como explicar o caso. Amigos empenharam-se nas buscas. Aquele que
sobrou, sentou na rede pálido e sem vida. Fora separado de uma parte da vida,
uma parte de si. Quem ali esteve jura até hoje que não se identificava quem
havia sumido. Chegaram à conclusão que o gato desaparecera, e trataram de levar
o homem a um especialista para sair daquele estado. O médico chamou a família e
disse que dessem mais duas semanas que ele voltaria ao normal. E assim ocorreu.
Mas estava diferente, não sentava mais a rede, apenas na murada. Gostava de andar
à noite pela casa com maestria, como se estivesse em um dia claro. Lambia as
mãos constantemente. A mulher desconfiou, mas preferiu aceitar a situação,
tinha filhos e não queira desintegrar a paz da família.
O
que ficou foi o gato.
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