terça-feira, 4 de novembro de 2014

A promessa

A promessa

                                                                                                             Jeferson Luis de Carvalho

O parque, ao lado, era o mesmo que lembrava daqueles anos perdidos.  E o campo surpreendentemente ainda apresentava aquela leve inclinação para o lado da “goleira do mercado”. Era domingo, dia de jogo no campo da cidade, e seu filho, “Junior Montanha”, jogaria pela primeira vez um jogo da taça da cidade. Assim que chegou o avistou. Uma cabeça mais alta que a mais alta cabeça em campo. O jogo era entre garotos de onze anos de idade, mas o rapaz aparentava no mínimo quinze. Sentou-se no espaço destinado informalmente aos pais, identificado apenas por uma aglomeração de câmeras fotográficas e rostos vermelhos de orgulho. Acomodou-se ao lado de um senhor miúdo que lhe perguntou qual deles era seu filho, respondeu que era o número 5, recebendo um ar de surpresa causado pelo tamanho do menino.
                O jogo começou. O adversário, um menino ruivo muito inteligente, driblou dois marcadores de uma só vez, deu uma linda “janelinha” no terceiro marcador e... A cena foi forte. O pobre rapaz ameaçou que ia para um lado e foi para outro, porém não contava que Montanha, após ver que perderia a jogada, virasse o corpo, como se estivesse perdido devido ao drible, na direção do habilidoso meio campo. Foi como se o canhoto ruivo encontrasse de frente uma locomotiva, o barulho do rosto no corpo de seu filho foi ouvido da arquibancada. Montanha correu atrás da bola, agora abandonada, e saiu driblando ao seu estilo: levando todos pelo caminho. Os pais do time adversário berravam contra o juiz, mas a verdade é que Montanha fora esperto e maldoso, fez falta sem fazê-la, levantando saudações da torcida.
                Eram 20 minutos de jogo e o placar mostrava 3 x 0, três gols de Montanha, dois meninos adversários machucados e um bravo pequeno guerreiro que jogava com um pedaço de algodão nas narinas devido a uma cotovelada “involuntária” de Montanha. O pai estava abismado com o que via. Seu filho era amado pela torcida do time, movida por um espírito de competição fervoroso, e odiado mortalmente pela torcida adversária. O campo era como o seu domínio, e ali ele era senhor absoluto.
                O segundo tempo começou como terminou o primeiro. Montanha era soberano. A essa altura do jogo, os jogadores adversários já evitavam dividir ou mesmo chegarem próximo de uma bola visada pelo poderoso meio-campo. O jogo já apontava 5 x 0 quando em uma escapada pela esquerda o time adversário conseguiu descontar com o garoto do algodão nas narinas.
                Estranhamente, quando o jogo foi reiniciado, Montanha não correu como uma avalanche monte abaixo atrás da bola, mas sim foi lentamente em direção do artilheiro adversário e falou algo no ouvido do rapaz. Dois minutos depois, o rapaz fez sinal para o banco que estava cansado e precisava sair. 7 x 1, 7 x 1, uma vitória acachapante. Entretanto, o pai não sorria. Entre tapinhas nas costas de outros pais ali presentes, correu em direção ao filho e lhe deu os parabéns. Apenas isso. O filho, por sua vez, sorria orgulhoso de ter feito 7 gols em uma partida.
                Ao entrar no carro, após toda a cerimônia de entrega de troféus, o pai mudou seu semblante. Estava sério e pensativo. O filho radiante pela sua conquista, individual e coletiva, não compreendeu, primeiramente, que o pai estava com um estado de espírito totalmente avesso ao que imaginava. Contudo não haveria cara ou mau humor no mundo que diminuiria sua emoção, ganhara o campeonato, sim, ganhara, com o verbo conjugado na primeira pessoa. Marcara, driblara, fizera todos os gols, era um craque. Brincava distraidamente com um troféu que em sua base apresentava: Melhor jogador da partida! Estava simulando que escrevia as palavras com os dedos, realizando os contornos com o indicador. Em um semáforo, o pai falou:
- Aquele menino, o ruivo, será que se machucou?
- Sei lá, viu como bati e o juiz nem viu?
                O pai olhou de relance para o menino e captou seu sorriso malicioso. Uma lembrança lhe veio à cabeça, uma memória que ele relutava, uma comparação que não queria fazer. O filho perguntou se podiam parar na lanchonete para poder comemorar, o pai afirmou que precisava chegar a casa o quanto antes.
                Antes de entrar em casa, parou na calçada com o carro, um vizinho com seu cachorro aguardava impacientemente o motorista decidir. Falou para Junior descer na frente, precisava ir buscar uma encomenda que havia feito.
                Retornou após duas horas, uma sacola com inúmeros DVD’s. Encontrou a esposa mimando o grande campeão, e pediu para que o filho o acompanhasse até a sala de televisão. O filho correu do lado do pai, troféu de melhor jogador em campo nas mãos. Enquanto o pai colocava o dvd, o filho curioso sentava no sofá.
- O que quer que eu veja?
                E o pai sem dizer nada apertou o play e chaveou a porta. Após duas horas, dez batidas na porta da esposa, o filho saiu com os olhos marejados. A mãe surpresa perguntou o que havia acontecido e o menino sentenciou:
- Não jogo mais futebol! – e correu para o quarto sem ao menos olhar para trás.
                Aflita, a mulher foi ter com o marido, e o encontrou olhando velhas fotos em uma gaveta.
- O que aconteceu com o Junior?
- Mostrei apenas o necessário, a realidade. O futebol é duro, não quero que ele perca o foco nos estudos. Ele tem que fazer uma faculdade, virar doutor, ser alguém na vida, não dá para ficar preso a esse sonho de ser jogador de futebol.
- Mas ele tem apenas onze anos!
- É no início que surgem os sonhos que irão atormentar o futuro. Que farão com que todos os objetivos alcançados sejam pequenos perante o que não foi.
                Incrédula, a mulher saiu do cômodo inconformada com a situação.
                Enquanto ouvia os baques causados pelos passos da esposa no corredor, o homem passou a mão em seu joelho olhando o velho retrato, o time dente de leite do bairro, no qual era a figura mais sorridente, o craque do time. Aquele jogo, aquele drible, a lenta movimentação do volante, a vantagem obtida, a perna surpresa na altura do joelho, a dor lancinante, o sorriso do menino duas cabeças mais alto, a perda do título e de um sonho.  Olhou a cicatriz um pouco acima do início do joelho e lembrou-se da promessa que fez a si mesmo de que nunca mais deixaria que a força prevalecesse diante da técnica. Devia isso ao menino ruivo, ao pequeno lutador e os algodões entancando o sangue nas narinas, mas principalmente, devia ao pequeno menino que nunca mais pode jogar futebol há longínquos 33 anos.

                A bola nunca mais foi vista naquela casa. Junior tornou-se arquiteto e torce para o Fluminense.

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