A promessa
Jeferson Luis de Carvalho
O parque, ao
lado, era o mesmo que lembrava daqueles anos perdidos. E o campo surpreendentemente ainda
apresentava aquela leve inclinação para o lado da “goleira do mercado”. Era
domingo, dia de jogo no campo da cidade, e seu filho, “Junior Montanha”,
jogaria pela primeira vez um jogo da taça da cidade. Assim que chegou o
avistou. Uma cabeça mais alta que a mais alta cabeça em campo. O jogo era entre
garotos de onze anos de idade, mas o rapaz aparentava no mínimo quinze.
Sentou-se no espaço destinado informalmente aos pais, identificado apenas por
uma aglomeração de câmeras fotográficas e rostos vermelhos de orgulho. Acomodou-se
ao lado de um senhor miúdo que lhe perguntou qual deles era seu filho,
respondeu que era o número 5, recebendo um ar de surpresa causado pelo tamanho
do menino.
O
jogo começou. O adversário, um menino ruivo muito inteligente, driblou dois
marcadores de uma só vez, deu uma linda “janelinha” no terceiro marcador e... A
cena foi forte. O pobre rapaz ameaçou que ia para um lado e foi para outro,
porém não contava que Montanha, após ver que perderia a jogada, virasse o corpo,
como se estivesse perdido devido ao drible, na direção do habilidoso meio
campo. Foi como se o canhoto ruivo encontrasse de frente uma locomotiva, o
barulho do rosto no corpo de seu filho foi ouvido da arquibancada. Montanha
correu atrás da bola, agora abandonada, e saiu driblando ao seu estilo: levando
todos pelo caminho. Os pais do time adversário berravam contra o juiz, mas a
verdade é que Montanha fora esperto e maldoso, fez falta sem fazê-la,
levantando saudações da torcida.
Eram
20 minutos de jogo e o placar mostrava 3 x 0, três gols de Montanha, dois
meninos adversários machucados e um bravo pequeno guerreiro que jogava com um
pedaço de algodão nas narinas devido a uma cotovelada “involuntária” de
Montanha. O pai estava abismado com o que via. Seu filho era amado pela torcida
do time, movida por um espírito de competição fervoroso, e odiado mortalmente
pela torcida adversária. O campo era como o seu domínio, e ali ele era senhor
absoluto.
O
segundo tempo começou como terminou o primeiro. Montanha era soberano. A essa
altura do jogo, os jogadores adversários já evitavam dividir ou mesmo chegarem
próximo de uma bola visada pelo poderoso meio-campo. O jogo já apontava 5 x 0
quando em uma escapada pela esquerda o time adversário conseguiu descontar com
o garoto do algodão nas narinas.
Estranhamente,
quando o jogo foi reiniciado, Montanha não correu como uma avalanche monte
abaixo atrás da bola, mas sim foi lentamente em direção do artilheiro
adversário e falou algo no ouvido do rapaz. Dois minutos depois, o rapaz fez
sinal para o banco que estava cansado e precisava sair. 7 x 1, 7 x 1, uma
vitória acachapante. Entretanto, o pai não sorria. Entre tapinhas nas costas de
outros pais ali presentes, correu em direção ao filho e lhe deu os parabéns.
Apenas isso. O filho, por sua vez, sorria orgulhoso de ter feito 7 gols em uma
partida.
Ao
entrar no carro, após toda a cerimônia de entrega de troféus, o pai mudou seu semblante.
Estava sério e pensativo. O filho radiante pela sua conquista, individual e
coletiva, não compreendeu, primeiramente, que o pai estava com um estado de
espírito totalmente avesso ao que imaginava. Contudo não haveria cara ou mau
humor no mundo que diminuiria sua emoção, ganhara o campeonato, sim, ganhara,
com o verbo conjugado na primeira pessoa. Marcara, driblara, fizera todos os
gols, era um craque. Brincava distraidamente com um troféu que em sua base
apresentava: Melhor jogador da partida! Estava simulando que escrevia as
palavras com os dedos, realizando os contornos com o indicador. Em um semáforo,
o pai falou:
- Aquele menino, o ruivo, será
que se machucou?
- Sei lá, viu como bati e o juiz
nem viu?
O
pai olhou de relance para o menino e captou seu sorriso malicioso. Uma
lembrança lhe veio à cabeça, uma memória que ele relutava, uma comparação que
não queria fazer. O filho perguntou se podiam parar na lanchonete para poder
comemorar, o pai afirmou que precisava chegar a casa o quanto antes.
Antes
de entrar em casa, parou na calçada com o carro, um vizinho com seu cachorro
aguardava impacientemente o motorista decidir. Falou para Junior descer na
frente, precisava ir buscar uma encomenda que havia feito.
Retornou
após duas horas, uma sacola com inúmeros DVD’s. Encontrou a esposa mimando o
grande campeão, e pediu para que o filho o acompanhasse até a sala de
televisão. O filho correu do lado do pai, troféu de melhor jogador em campo nas
mãos. Enquanto o pai colocava o dvd, o filho curioso sentava no sofá.
- O que quer que eu veja?
E
o pai sem dizer nada apertou o play e chaveou a porta. Após duas horas, dez
batidas na porta da esposa, o filho saiu com os olhos marejados. A mãe surpresa
perguntou o que havia acontecido e o menino sentenciou:
- Não jogo mais futebol! – e
correu para o quarto sem ao menos olhar para trás.
Aflita,
a mulher foi ter com o marido, e o encontrou olhando velhas fotos em uma
gaveta.
- O que aconteceu com o Junior?
- Mostrei apenas o necessário, a
realidade. O futebol é duro, não quero que ele perca o foco nos estudos. Ele
tem que fazer uma faculdade, virar doutor, ser alguém na vida, não dá para
ficar preso a esse sonho de ser jogador de futebol.
- Mas ele tem apenas onze anos!
- É no início que surgem os sonhos
que irão atormentar o futuro. Que farão com que todos os objetivos alcançados
sejam pequenos perante o que não foi.
Incrédula,
a mulher saiu do cômodo inconformada com a situação.
Enquanto
ouvia os baques causados pelos passos da esposa no corredor, o homem passou a
mão em seu joelho olhando o velho retrato, o time dente de leite do bairro, no
qual era a figura mais sorridente, o craque do time. Aquele jogo, aquele
drible, a lenta movimentação do volante, a vantagem obtida, a perna surpresa na
altura do joelho, a dor lancinante, o sorriso do menino duas cabeças mais alto,
a perda do título e de um sonho. Olhou a
cicatriz um pouco acima do início do joelho e lembrou-se da promessa que fez a
si mesmo de que nunca mais deixaria que a força prevalecesse diante da técnica.
Devia isso ao menino ruivo, ao pequeno lutador e os algodões entancando o
sangue nas narinas, mas principalmente, devia ao pequeno menino que nunca mais
pode jogar futebol há longínquos 33 anos.
A
bola nunca mais foi vista naquela casa. Junior tornou-se arquiteto e torce para
o Fluminense.
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