terça-feira, 11 de novembro de 2014

A foto


          Cortou. De forma firme e decisiva. Doeu, não pôde negar, mas conseguira. Olhava vitorioso o órgão pulsando em suas mãos, vermelho, algumas manchas esbranquiçadas, mas no conjunto, vermelho. A faca resolvera guardar. Fez ele mesmo os pontos. Como um ritual de passagem. Aproveitara o feriadão, três dias em casa seriam suficientes. Passou a antiga mistura da avó, cicatrização rápida. Guardou o órgão em um desses potes de conservas e colocou na geladeira, ao lado de uma velha foto. Que ele sofra, que ele veja, eu serei senhor de meus próprios desejos.
            E assim acordou na manhã da segunda-feira. Não pensou em pegar o telefone, em ligar, não pensou nela. Aliás, pensava com clareza nunca antes experimentada. Estava avesso aos medos humanos. Resolvera poupar tempo. Abriu a janela de sua cozinha e meteu o pé direito para fora. Eram dez andares, mas bastou verificar que a superfície era firme para caminhar pelas amuradas vizinhas interrompendo o passo apenas para saltar para os andares inferiores. Assim, em menos de 1 minuto pedia um táxi.
          Chegou ao trabalho e nunca rendera tanto. O chefe, espantado, lhe deu uma promoção imediata. No almoço, calculou e previu cada movimento, e, antes que os colegas sentassem para comer, já estava servido e sesteando na salinha da repartição.
           Despertou sem precisar de aviso. Pela manhã era funcionário, à tarde era gerente. À noite, seria presidente. A cada empreitada, seu sucesso e domínio eram tão extraordinários e evidentes, que as três promoções seguintes foram lhe passadas pelos antigos ocupantes. Sua lógica era infalível, um diretor, diante de mais uma tarefa impossível realizada, entregou-lhe a chave e pediu demissão. Eram 17 horas e já era diretor. Faltava-lhe a presidência. Estavam há três horas em reunião, acionistas, presidente e os representantes do maior cliente da empresa. O impasse parecia impossível de ser resolvido. Entrou na sala, escutou todas as partes envolvidas, traçou uma saída em menos de 5 minutos. Foi o maior contrato da história da companhia. Os acionistas sem titubear, nomearam-no presidente.
            Um dia, apenas um dia, e seu procedimento cirúrgico havia lhe dado a presidência. Tentou sentir emoção, mas tudo que sentia era um não sentir. Uma não existência. Apenas pensava, raciocinava. Ousou fazer algo irracional, não conseguiu. Tentou escrever algo sem sentido, mas lhe escaparam versos rigidamente metrificados e frios. Extremamente frios. Um desespero lhe tomaria o corpo se tivesse tal sentimento. Lutou para sair da empresa, o corpo não permitiu. Mesmo na rua, a luta corporal foi terrível. Não estava cansado, poderia trabalhar mais, fazer o que em casa? Buscar aquele objeto ilógico para quê?
               Chegou em casa. Não havia excitação, raiva, nada. Apenas, razão. Abriu a geladeira e viu a fotografia. O possível erro, sofrimento, o incorreto. Olhou para seu coração ao lado da fotografia. Pegou ela e olhou. Uma pontinha de emoção veio-lhe à mente. Era isso, identificara o problema. Instantaneamente abriu a camisa e cortou os pontos de forma rápida e direta, lá no fundo, bem no fundo, um pequeno pedaço do que fora seu coração batia bravamente. Cortou-o. Nunca mais sofreu.       

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