Cortou. De forma firme e
decisiva. Doeu, não pôde negar, mas conseguira. Olhava vitorioso o órgão
pulsando em suas mãos, vermelho, algumas manchas esbranquiçadas, mas no
conjunto, vermelho. A faca resolvera guardar. Fez ele mesmo os pontos. Como um
ritual de passagem. Aproveitara o feriadão, três dias em casa seriam
suficientes. Passou a antiga mistura da avó, cicatrização rápida. Guardou o
órgão em um desses potes de conservas e colocou na geladeira, ao lado de uma
velha foto. Que ele sofra, que ele veja, eu serei senhor de meus próprios
desejos.
E assim acordou na manhã da segunda-feira.
Não pensou em pegar o telefone, em ligar, não pensou nela. Aliás, pensava com
clareza nunca antes experimentada. Estava avesso aos medos humanos. Resolvera
poupar tempo. Abriu a janela de sua cozinha e meteu o pé direito para fora.
Eram dez andares, mas bastou verificar que a superfície era firme para caminhar
pelas amuradas vizinhas interrompendo o passo apenas para saltar para os
andares inferiores. Assim, em menos de 1 minuto pedia um táxi.
Chegou ao trabalho e nunca
rendera tanto. O chefe, espantado, lhe deu uma promoção imediata. No almoço,
calculou e previu cada movimento, e, antes que os colegas sentassem para comer,
já estava servido e sesteando na salinha da repartição.
Despertou sem precisar de aviso.
Pela manhã era funcionário, à tarde era gerente. À noite, seria presidente. A
cada empreitada, seu sucesso e domínio eram tão extraordinários e evidentes, que
as três promoções seguintes foram lhe passadas pelos antigos ocupantes. Sua
lógica era infalível, um diretor, diante de mais uma tarefa impossível
realizada, entregou-lhe a chave e pediu demissão. Eram 17 horas e já era
diretor. Faltava-lhe a presidência. Estavam há três horas em reunião,
acionistas, presidente e os representantes do maior cliente da empresa. O
impasse parecia impossível de ser resolvido. Entrou na sala, escutou todas as
partes envolvidas, traçou uma saída em menos de 5 minutos. Foi o maior contrato
da história da companhia. Os acionistas sem titubear, nomearam-no presidente.
Um dia, apenas um dia, e seu
procedimento cirúrgico havia lhe dado a presidência. Tentou sentir emoção, mas
tudo que sentia era um não sentir. Uma não existência. Apenas pensava,
raciocinava. Ousou fazer algo irracional, não conseguiu. Tentou escrever algo
sem sentido, mas lhe escaparam versos rigidamente metrificados e frios.
Extremamente frios. Um desespero lhe tomaria o corpo se tivesse tal sentimento.
Lutou para sair da empresa, o corpo não permitiu. Mesmo na rua, a luta corporal
foi terrível. Não estava cansado, poderia trabalhar mais, fazer o que em casa?
Buscar aquele objeto ilógico para quê?
Chegou em casa. Não havia excitação,
raiva, nada. Apenas, razão. Abriu a geladeira e viu a fotografia. O possível
erro, sofrimento, o incorreto. Olhou para seu coração ao lado da fotografia.
Pegou ela e olhou. Uma pontinha de emoção veio-lhe à mente. Era isso,
identificara o problema. Instantaneamente abriu a camisa e cortou os pontos de
forma rápida e direta, lá no fundo, bem no fundo, um pequeno pedaço do que fora
seu coração batia bravamente. Cortou-o. Nunca mais sofreu.
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