quinta-feira, 7 de abril de 2016

Metamorfose

           Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Jorge Silva deu por si, no colchão do chão, transformado em uma espécie de político. Estava deitado sobre um paletó sobre medida, oriundo de mãos habilidosas de um costureiro italiano, inspirado por um famoso designer premiado no último salão da moda de Paris. Olhou para os pés, repousavam em um confortável par de sapatos tão italianos quanto o costureiro do paletó. Na verdade, seus pés estavam diferentes, não guardavam as camadas das ruas quentes e frias, estavam finos e macios, suas mãos estavam sedosas e bem cuidadas.
            Que me aconteceu ? — pensou. Não era nenhum sonho. O quarto ainda era um vulgar e pobre santuário de repouso de um simples trabalhador brasileiro. Sentiu asco daquele local, um sentimento repugnante inexplicável, foi direto ao bolso direito do paletó, lá estava um telefone de última geração. Precisando consertar aquele constrangimento, rapidamente, como se aquilo lhe fosse habitual, foi aos seus contatos e escreveu “Pássaro, com ninho estragado, necessita reforma.”. Não compreendia muito bem aqueles sentimentos, desejos e ações. Um instinto estranho ao seu ser lhe dominava, foi interrompido de seu devaneio pelo soar do telefone que há pouco utilizara, era uma empreiteira que lhe informava que a reforma de seu ninho seria realizada, e, além disso, ele receberia uma diferença referente a palestras motivacionais que seriam ministradas em um dia a combinar.
            Estranhamente satisfeito, saiu do quarto e se viu na calçada. Olhou-se perante a luz do sol, estava radiante, seu cabelo lustrado com gel fazia um bonito par com os sapatos que calçava. Ao olhar para o pulso, consultou a hora em um lindo Rolex, sem medo de perdê-lo, pois um grupo de seguranças o aguardava do outro lado da rua em seu carro governamental. Ajustou os óculos e atravessou a rua com a certeza de ser intocável. No carro, sentiu-se em uma fortaleza, distante de todos, incólume em um mundo blindado e confortável. Avistou o palácio do poder, pessoas aguardavam por ele, aos poucos, foi entendendo que era o responsável por um processo político em andamento. Deveria decidir o futuro de um colega de profissão que desviara verbas, desceu do carro decidido, passos largos e confiantes, microfones o cercaram, todos ignorados.
            O telefone em seu bolso vibrou: “os ovos estavam no ninho”, sorriu satisfeito, a cadeira da presidência da comissão estava à sua disposição, alguém ao longe gritou algo sobre corrupção envolvendo seu nome, ele virou-se enfurecido em direção ao grito abafado pelos seguranças e gritou sobre a sua idoneidade e proeminência, berrava toda uma sorte de termos pomposos ao cidadão anônimo, enquanto lembrava que precisava ligar para um correligionário a respeito de uma verba que ficara de receber e ainda não havia entrado na conta. Encerrou os xingamentos sem nem ao menos lembrar o estopim.
Entrou na sala escoltado por seus assessores e aliados, sim, possuía aliados. Iniciou o discurso lembrando do papel de um político e da importância de uma conduta índole e séria. Assim, sem interrupções, realizou um enorme monólogo repleto de hipérboles e outras figuras de linguagem, e, após 2 horas de pronunciamento, autorizou o início da cassação do mandato de seu governante. Saiu triunfante da sala, passos firmes, ovacionado por seus aliados. O sol já escondia-se ao final daquele dia, e uma sombra cresceu dentro de si: o receio de deixar de ser Vossa Excelência Jorge Silva e voltar a ser o Silva. Não queria se desfazer do Rolex, do sapato italiano, do poder que, agora, detinha. Foi escoltado para uma janta com partidários para comemorar o resultado, as provas eram irrefutáveis, a votação fora uma barbada. Esticaram à noite para comemorar com um grupo de empresários que compartilhavam das mesmas ideias.

            Na madrugada, Jorge Silva repousou a cabeça em um travesseiro de penas de ganso, em uma confortável cobertura que descobrira ter, e pensou, por um instante, no 3 x 4 com um colchão e um banheiro lá no morro, e implorou aos céus que a metamorfose que sofrera não findasse. Com a companhia do medo e do receio, adormeceu, entrando em um sonho conturbado em que olhava no espelho e via aquelas mãos calejadas e pés grossos o perseguindo. Acordou em pânico, suando em bicas, apalpou seu corpo e tranquilizou-se, a metamorfose não fora desfeita, continuava a ser, para seu alívio, Vossa Excelência Jorge Silva.

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