Rabiscou mais uma vez no canto da
folha, definitivamente o mataria, não havia saída. Tomou mais um gole de café
que queimou levemente a sua boca. Entretanto, nada suplantava, naquele momento,
o calor que irradiava dos braços e subia veloz à cabeça. Nos últimos dois
meses, transformara-se em seu melhor amigo, uma amizade que poucos entendiam,
mas que tornou-se tão forte quanto laços sanguíneos. Consolidou-se entre
xícaras quentes de café e tragadas lentas e pensativas de cigarros. Conhecia os
seus segredos mais secretos, assim como ele conhecia os seus. Como matar alguém
assim?
A verdade é que esse sentimento
foi ganhando força como uma tempestade que se aproxima imensa, lenta e
imparável. Chegou, alojou-se em seu intelecto, sim, em seu intelecto, pois o
coração não faria gesto tão premeditado. Enfim, a ideia, que chegou como uma
tempestade de verão, criou corpo, desceu dos céus no terceiro mês e, desde
então, nunca mais o abandonou. Estava ali, sentada na varanda da mente, visível
e intransigente, esperando para acontecer.
Escutou um barulho em suas costas,
virou e deu com a esposa entregando-lhe um pratinho com algumas bolachas.
- Come um lanchinho.
- Não estou com fome.
- É aquela situação novamente?
- Infelizmente. Entretanto, já decidi, irei matá-lo.
- Sério? Uma pena, esperava que não fizesse isso, mas
se tem que ser feito, que faça logo. Matará como? Não precisa ser muito cruel.
- Preciso. Devo.
- Por quê?
- Estarei matando um pouco de mim junto com ele. Deve
ser doloroso, cruel, marcante, para que tenha um significado maior. Um “eu”
estará deixando de existir. Um companheiro de longas tardes.
- Ai, amor. Eu ainda acho que não precisava de nada
disso.
- Não? – sua voz cresceu subitamente – Ele perdeu o
controle, fez com que eu escrevesse coisas horríveis. Tomou vida própria, vazou
pela minha existência, assumiu o controle de minhas vontades. Morrerá!
- Você que sabe, eu nem sei por que ainda discuto
essas coisas com você.
- Desculpa, amor. É que...- era tarde, ela havia
deixado o aposento isolado da casa.
Olhou
para a mesa. Teria coragem de matá-lo? Agora, que, realmente, o fratricídio
aproximava-se, sim, fratricídio, pois era da família, menos vontade e,
principalmente, coragem o acompanhavam. Abriu um litro de Whisky e serviu um
copo de forma lenta e meticulosa. Acompanhou o deslizar do líquido no copo,
tomando o volume, ocupando o espaço antes vazio da mesma forma que a ideia de
morte subjugou seus outros pensamentos. Degustou o primeiro gole, a ideia de possuir
o poder sobre a vida e a morte em suas mãos começava a lhe trazer
formigamentos. Será que tinha algum fetiche secreto? Lembrou de Causa Secreto
de Machado de Assis, instantaneamente, censurou a si mesmo, era uma pessoa boa
e integra. Não poderia lutar contra a lei da natureza, contra seu chamado, o
universo pedia aquele desfecho e ele seria naquela noite. Ele era apenas um
instrumento de uma vontade maior, soberana. Não mais postergaria.
Saiu
de seu quartel general e foi tomar um banho. Descarregar a tensão existente
naquele momento. Cada uma das inúmeras gotas que despencavam do chuveiro
preparavam e relaxavam o corpo para tarefa que deveria ser feita, adiara
demasiadamente essa decisão. Trocou de roupa, nada especial, uma roupa casual
como qualquer outra. Desejou um boa noite para a esposa, iria partir para sua missão.
Enquanto deixava o quarto, a mente preparava-se para coordenar o corpo que iria
concretizar o frio assassinato inúmeras vezes planejado.
Sentou
em frente a ele, imaginou como poderia ser diferente, mas não havia mais o que
dizer, pensar ou lamentar. Despediu-se uma vez mais do amigo e iniciou o
assassinato, escreveu no espaço em branco da página: o tiro veio rápido e súbito,
antecedido por um forte estampido.
Era,
agora, o mais vil dos assassinos.
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