terça-feira, 10 de março de 2015

Assassinato

Rabiscou mais uma vez no canto da folha, definitivamente o mataria, não havia saída. Tomou mais um gole de café que queimou levemente a sua boca. Entretanto, nada suplantava, naquele momento, o calor que irradiava dos braços e subia veloz à cabeça. Nos últimos dois meses, transformara-se em seu melhor amigo, uma amizade que poucos entendiam, mas que tornou-se tão forte quanto laços sanguíneos. Consolidou-se entre xícaras quentes de café e tragadas lentas e pensativas de cigarros. Conhecia os seus segredos mais secretos, assim como ele conhecia os seus. Como matar alguém assim?
A verdade é que esse sentimento foi ganhando força como uma tempestade que se aproxima imensa, lenta e imparável. Chegou, alojou-se em seu intelecto, sim, em seu intelecto, pois o coração não faria gesto tão premeditado. Enfim, a ideia, que chegou como uma tempestade de verão, criou corpo, desceu dos céus no terceiro mês e, desde então, nunca mais o abandonou. Estava ali, sentada na varanda da mente, visível e intransigente, esperando para acontecer.
Escutou um barulho em suas costas, virou e deu com a esposa entregando-lhe um pratinho com algumas bolachas.
- Come um lanchinho.
- Não estou com fome.
- É aquela situação novamente?
- Infelizmente. Entretanto, já decidi, irei matá-lo.
- Sério? Uma pena, esperava que não fizesse isso, mas se tem que ser feito, que faça logo. Matará como? Não precisa ser muito cruel.
- Preciso. Devo.
- Por quê?
- Estarei matando um pouco de mim junto com ele. Deve ser doloroso, cruel, marcante, para que tenha um significado maior. Um “eu” estará deixando de existir. Um companheiro de longas tardes.
- Ai, amor. Eu ainda acho que não precisava de nada disso.
- Não? – sua voz cresceu subitamente – Ele perdeu o controle, fez com que eu escrevesse coisas horríveis. Tomou vida própria, vazou pela minha existência, assumiu o controle de minhas vontades. Morrerá!
- Você que sabe, eu nem sei por que ainda discuto essas coisas com você.
- Desculpa, amor. É que...- era tarde, ela havia deixado o aposento isolado da casa.
         Olhou para a mesa. Teria coragem de matá-lo? Agora, que, realmente, o fratricídio aproximava-se, sim, fratricídio, pois era da família, menos vontade e, principalmente, coragem o acompanhavam. Abriu um litro de Whisky e serviu um copo de forma lenta e meticulosa. Acompanhou o deslizar do líquido no copo, tomando o volume, ocupando o espaço antes vazio da mesma forma que a ideia de morte subjugou seus outros pensamentos. Degustou o primeiro gole, a ideia de possuir o poder sobre a vida e a morte em suas mãos começava a lhe trazer formigamentos. Será que tinha algum fetiche secreto? Lembrou de Causa Secreto de Machado de Assis, instantaneamente, censurou a si mesmo, era uma pessoa boa e integra. Não poderia lutar contra a lei da natureza, contra seu chamado, o universo pedia aquele desfecho e ele seria naquela noite. Ele era apenas um instrumento de uma vontade maior, soberana. Não mais postergaria.
          Saiu de seu quartel general e foi tomar um banho. Descarregar a tensão existente naquele momento. Cada uma das inúmeras gotas que despencavam do chuveiro preparavam e relaxavam o corpo para tarefa que deveria ser feita, adiara demasiadamente essa decisão. Trocou de roupa, nada especial, uma roupa casual como qualquer outra. Desejou um boa noite para a esposa, iria partir para sua missão. Enquanto deixava o quarto, a mente preparava-se para coordenar o corpo que iria concretizar o frio assassinato inúmeras vezes planejado.
                Sentou em frente a ele, imaginou como poderia ser diferente, mas não havia mais o que dizer, pensar ou lamentar. Despediu-se uma vez mais do amigo e iniciou o assassinato, escreveu no espaço em branco da página: o tiro veio rápido e súbito, antecedido por um forte estampido.

                Era, agora, o mais vil dos assassinos.

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