Abraços
Dobrou pela décima vez o mesmo
papel já desgastado nas dobras repetidas. Quando não dobrava o papel, contava
de forma infrutífera os azulejos do corredor. Eram muitos, impossível de se
contar. Lembrou da velha amarelinha, da emoção de alcançar o “céu” antes de
qualquer uma das concorrentes. Levou duas surras, três puxões de orelhas e
algumas chineladas “de leve” por chegar atrasada em casa. Onde já se viu uma
menina chegar a essas horas? Exclamava sua mãe! De origem alemã, nunca foi dada
a abraços. Fazia tudo que uma mãe devia fazer, o algo a mais, fazia escondida,
nas sombras. Mostrava apenas a mãe séria e carrancuda, a mãe amorosa e delicada
surgia antes de deitar, quando abraçava a filha de forma cuidadosa para não
acordá-la. Depois de um tempo, ela fingia dormir, e adorava desfrutar daquele
abraço.
Assim
passaram-se os anos. Entre abraços furtivos à noite, saiu para estudar,
trabalhar, conhecer o mundo. Teve amores, decepções, amores, decepções,
decepções e decepções. Encontrou Roberto em um bar. Olharam-se. Ao fim da
noite, de forma tímida, ele pediu seu telefone. Três anos depois, ele estava na
frente de seus pais pedindo a sua mão em casamento. O pai estava só alegria, a
mãe limitava-se a um abraço rígido e temeroso nos dois enamorados. Quando o
noivo foi embora, falou para ela:
- Precisa dar um jeito nas coisas, casamento não é
brincar de amarelinha.
Por
que lembrava disso tudo agora? As imagens vinham nítidas em sua mente. Lembrou
do vestido no espelho, de sua cara de apavorada com o que estava fazendo, de desabar
em uma cadeira com medo de não conseguir dar conta de tudo. Entretanto, lembrou
do primeiro abraço caloroso que recebeu da mãe sem que fingisse estar dormindo.
Um abraço que disse tudo sem dizer nada. Que não pôde retribuir, já que a mãe afastou-se e ordenou que ela levantasse, pois estava na hora.
O
tempo passou para todos, para ela, para o marido, para sua família. O pai
partira vítima de um ataque fulminante. Uma dor lancinante, mas a mãe
manteve-se forte. Não fosse por ter visto o pai ser enterrado, poderia
acreditar que ele ainda estivesse ali, dada era a atitude da mãe. Apesar disso,
naquele tempo, o tempo já cobrava seus tributos na face da sua mãe. Por vezes,
desejava ter sua mãe de volta. Olhou novamente para o azulejo branco, depois
que se torna mãe, o mundo exige que você deixe de ser filha. Por várias noites,
queria estar na velha cama, fingir que estava dormindo e receber um caloroso
abraço.
Ouviu
seu nome, as lembranças sumiram como nuvens, era o médico. Falou qualquer coisa
sobre fizemos todo possível, que não havia mais nada a ser feito. Será que ele
conhecia sua mãe? Será que ele sabia que ela trabalhava todos os dias da mesma
forma há 60 anos? Não, ele não sabia, pensou. Não sabia dos abraços furtivos,
do abraço na menina medrosa antes dela tornar-se a mulher que era hoje. Foi até
o quarto, a mãe estava deitada, serena, em paz. Chegou próxima, era ela, mas
parecia não ser, ou melhor, não queria que fosse. Queria abraçá-la, assim o
fez. Com todo amor que possuía, com toda força que restava. Será que ela sentia
aquele abraço? Chorou.
Acordou.
Novamente sozinha. Eram 5 ou 6 da manhã, não importava, nada importava. Estava
velha. Cansada. Já vivera seu fardo, sua vez. Virou a cabeça de lado e sentiu
saudade do marido, aquela cara de bobo que a fazia sorrir mesmo quando não
queria, velho safado. Quanta saudade, quanta!
Levantou,
uma dor aguda acometeu-a. Deitou novamente, sentia dor, muita dor. Uma falta de
ar como se mil mãos apertassem seu pescoço, um vômito súbito irrompeu como um
vulcão de dentro de seu corpo. Meu deus, sujei minha cama, pensou antes de ser
lembrada da dor e da falta de ar. Precisava chamar alguém, não podia. O vômito,
a cama, a tontura, a dor no peito, o vômito, a dor no peito, a tontura, a cama
suja, a dor no peito, a dor no peito, a dor no peito, apagou.
Sonhos
confusos, e a filha veio à mente. Amava-a, mais do que tudo. Lamentava não
conseguir demonstrar. “Diga que a ama velha rabugenta, ela finge dormir todas
as noites e você fingi que não sabe que ela espera o seu abraço. Mostre que a
ama!” Discutia consigo mesma, uma luta feroz no mais íntimo do seu ser. “O
casamento, ela sentiu, não sentiu? Tem que ter sentido. Abracei a minha
menininha assustada com todo o amor do mundo, deve ter sentindo. Visto que
tinha uma mãe que a amava. Por favor, diga que ela sentiu, diga...ela casou por
causa daquele abraço”. Sorriu, misteriosamente sentiu a presença da filha, um
abraço maior que qualquer outro, um abraço com gosto de adeus. Não teve mais
medo. Sorriu.
Silêncio.
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