quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Abraços

Abraços

Jeferson Luis de Carvalho

Dobrou pela décima vez o mesmo papel já desgastado nas dobras repetidas. Quando não dobrava o papel, contava de forma infrutífera os azulejos do corredor. Eram muitos, impossível de se contar. Lembrou da velha amarelinha, da emoção de alcançar o “céu” antes de qualquer uma das concorrentes. Levou duas surras, três puxões de orelhas e algumas chineladas “de leve” por chegar atrasada em casa. Onde já se viu uma menina chegar a essas horas? Exclamava sua mãe! De origem alemã, nunca foi dada a abraços. Fazia tudo que uma mãe devia fazer, o algo a mais, fazia escondida, nas sombras. Mostrava apenas a mãe séria e carrancuda, a mãe amorosa e delicada surgia antes de deitar, quando abraçava a filha de forma cuidadosa para não acordá-la. Depois de um tempo, ela fingia dormir, e adorava desfrutar daquele abraço.
         Assim passaram-se os anos. Entre abraços furtivos à noite, saiu para estudar, trabalhar, conhecer o mundo. Teve amores, decepções, amores, decepções, decepções e decepções. Encontrou Roberto em um bar. Olharam-se. Ao fim da noite, de forma tímida, ele pediu seu telefone. Três anos depois, ele estava na frente de seus pais pedindo a sua mão em casamento. O pai estava só alegria, a mãe limitava-se a um abraço rígido e temeroso nos dois enamorados. Quando o noivo foi embora, falou para ela:
- Precisa dar um jeito nas coisas, casamento não é brincar de amarelinha.
                Por que lembrava disso tudo agora? As imagens vinham nítidas em sua mente. Lembrou do vestido no espelho, de sua cara de apavorada com o que estava fazendo, de desabar em uma cadeira com medo de não conseguir dar conta de tudo. Entretanto, lembrou do primeiro abraço caloroso que recebeu da mãe sem que fingisse estar dormindo. Um abraço que disse tudo sem dizer nada. Que não pôde retribuir, já que a mãe afastou-se e ordenou que ela levantasse, pois estava na hora.
          O tempo passou para todos, para ela, para o marido, para sua família. O pai partira vítima de um ataque fulminante. Uma dor lancinante, mas a mãe manteve-se forte. Não fosse por ter visto o pai ser enterrado, poderia acreditar que ele ainda estivesse ali, dada era a atitude da mãe. Apesar disso, naquele tempo, o tempo já cobrava seus tributos na face da sua mãe. Por vezes, desejava ter sua mãe de volta. Olhou novamente para o azulejo branco, depois que se torna mãe, o mundo exige que você deixe de ser filha. Por várias noites, queria estar na velha cama, fingir que estava dormindo e receber um caloroso abraço.
         Ouviu seu nome, as lembranças sumiram como nuvens, era o médico. Falou qualquer coisa sobre fizemos todo possível, que não havia mais nada a ser feito. Será que ele conhecia sua mãe? Será que ele sabia que ela trabalhava todos os dias da mesma forma há 60 anos? Não, ele não sabia, pensou. Não sabia dos abraços furtivos, do abraço na menina medrosa antes dela tornar-se a mulher que era hoje. Foi até o quarto, a mãe estava deitada, serena, em paz. Chegou próxima, era ela, mas parecia não ser, ou melhor, não queria que fosse. Queria abraçá-la, assim o fez. Com todo amor que possuía, com toda força que restava. Será que ela sentia aquele abraço? Chorou.
            Acordou. Novamente sozinha. Eram 5 ou 6 da manhã, não importava, nada importava. Estava velha. Cansada. Já vivera seu fardo, sua vez. Virou a cabeça de lado e sentiu saudade do marido, aquela cara de bobo que a fazia sorrir mesmo quando não queria, velho safado. Quanta saudade, quanta!
            Levantou, uma dor aguda acometeu-a. Deitou novamente, sentia dor, muita dor. Uma falta de ar como se mil mãos apertassem seu pescoço, um vômito súbito irrompeu como um vulcão de dentro de seu corpo. Meu deus, sujei minha cama, pensou antes de ser lembrada da dor e da falta de ar. Precisava chamar alguém, não podia. O vômito, a cama, a tontura, a dor no peito, o vômito, a dor no peito, a tontura, a cama suja, a dor no peito, a dor no peito, a dor no peito, apagou.
            Sonhos confusos, e a filha veio à mente. Amava-a, mais do que tudo. Lamentava não conseguir demonstrar. “Diga que a ama velha rabugenta, ela finge dormir todas as noites e você fingi que não sabe que ela espera o seu abraço. Mostre que a ama!” Discutia consigo mesma, uma luta feroz no mais íntimo do seu ser. “O casamento, ela sentiu, não sentiu? Tem que ter sentido. Abracei a minha menininha assustada com todo o amor do mundo, deve ter sentindo. Visto que tinha uma mãe que a amava. Por favor, diga que ela sentiu, diga...ela casou por causa daquele abraço”. Sorriu, misteriosamente sentiu a presença da filha, um abraço maior que qualquer outro, um abraço com gosto de adeus. Não teve mais medo. Sorriu.
                Silêncio.



                                  

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