O matador
de serpentes
No
princípio criou Deus os céus e a terra.E a terra era sem forma e vazia; e havia
trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das
águas. E disse Deus: Haja luz; e houve luz. Após alguns ajustes complementares,
que por agora não se fazem necessários justificarem ou relatarem, realizou Deus
sua grande obra: E criou Deus o homem à sua imagem: à imagem
de Deus o criou; homem e mulher os criou. Mas por artífices do destino comeu do
fruto proibido a mulher. E pagaram por esse feito todos os seres humanos desde
então. Do gramado leve e macio do jardim do Éden, ficamos reféns da aridez e
aspereza do restante da Terra. E para agüentar os solavancos o homem criou os
sapatos. E viu que era bom e útil. A mulher viu que era bom, mas não útil, pois
ficava em casa e não necessitava transpor grandes distâncias, e sim belo. E
desde então para o homem o sapato é útil, e para a mulher é belo.
- O
que acha amor?
-
Hum...bonito!
-
Também achei.
- Vai
comprar?
-
Não sei...ah, moça, deixa eu ver aquele ali – e largou o par de sapatos junto
de outros quatro pares que havia separado. Estavam ambos há mais de quarenta e
cinco minutos dentro da loja. O marido já havia decorado a ordem de disposição
dos tênis masculinos há pelo menos vinte minutos e estava terminando de obter o
valor total em mercadorias no espaço destinado aos pobres homens. Queria ir
embora, contudo a última vez que fez isso, ouviu um risonho “tudo bem” da
esposa, que se transformou em um leve mal estar no caminho para casa, que se
transformou em pequeno desentendimento em casa, que se transformou em porta do
quarto batendo e um discurso de como ele não podia ficar junto com ela em uma
loja de sapatos por quarenta minutos se ela mantinha-se fiel por noventa
minutos toda quarta-feira à noite assistindo a vinte e dois homens correndo
atrás de um objeto redondo. Sem argumentos riscou a opção de sua agenda.
- Amor, olha esse!
-
Bonito, porque não compra esse?
- É
que preciso de um sapato alto, e esse é baixo. Mas é tão bonito.
- É
tem que escolher um deles – falou isso como que alguém que olha para o céu azul
e diz que tem que chover. Certamente que a esposa quereria levar os dois.
A
mulher viu que a árvore era bonita e que suas frutas eram boas de se comer. E
ela pensou como seria bom ter entendimento. Aí apanhou uma fruta e comeu.
A
esposa sorridente veio ter com o marido explicando e justificando a necessidade
de ter os dois pares de sapatos. O marido irredutível disse que não. Foi como
uma bofetada na cara da mulher. Agora sim ela iria arrumar emprego, o filho que
fosse para a creche. Depender de marido jamais. O homem remoia por dentro,
estava comprando um sapato, porque todo essa revolta. Passou seu cartão como
sempre fizera e se dirigiram ambos para o carro. Ela emburrada com uma sacola
de compras, ele emburrado com a chave do carro e uma dor na ponta do calcanhar
que o irritava muito, e pelo andar da carruagem não ganharia massagem ao final
do dia.
Entraram
no carro e não trocaram uma só palavra. Dirigia o carro como se esse lhe fosse
inimigo, raios de carro automático, não podia nem ao menos judiar do cambio de
marchas. Avistou um objeto se movendo na rua, era uma cobra, não, era a
serpente, a culpada de tudo. Não reduziu, concentrou todas as suas energias
naquele ato. A humanidade parou por um segundo esperando o desfecho. Não errou,
passou certeiro por cima da cabeça da serpente. Vingou anos e anos de
sofrimento. Horas e horas de lojas entupidas de atendentes e sapatos. A
serpente não teve tempo de saber o que lhe acertou, morreu instantaneamente. Freou
bruscamente o carro, a esposa se assustou. Desceu do carro e foi até o local
onde estava o corpo esmagado da serpente. Queria mostrar seu rosto, para que
soubesse quem havia lhe tirado a vida, que pensasse duas vezes em oferecer um
fruto que fosse proibido a uma mulher. Estava agora de alma lavada, voltou para
dentro do carro, olhou para esposa assustada e disse:
- Semana
que vem comprou um muito mais bonito para você! Você vai ver – encostou de leve
a mão nas coxas da mulher, ela deixou, um sorriso escapou, pequeno, mas tão
anunciador como um raio de sol após uma tempestade anuncia um lindo dia. Ligou
o seu carro e agradeceu por não ter uma embreagem para pisar, pois a dor no
calcanhar se acentuará.
Agora o homem se tornou como um de nós, por
isso Deus expulsou o homem do jardim do Éden e fez com que ele sofresse na
terra da qual havia sido formado.
Jeferson
Luis de Carvalho
-
Hum...bonito!
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